“ABRACADABRA”
Carolina era uma moça de 24 anos, moderna em tudo que se podia imaginar. Seus cabelos curtos, piercings e tatuagens, seu trabalho na agência de publicidade, suas músicas, seus hobbys, seus amores.
- Monogamia é uma invenção do patriarcado! – dizia a moça acendendo seu cigarro eletrônico – Eu não respeito essa mentira, não mesmo! Eu sou livre para viver meus afetos do jeito que eu quiser, sem regulamentação do estado nem da Igreja, nem de ninguém!
O grupo reunido em pé em torno de uma mesinha de bar, tomando cerveja, fazia gestos de concordância, até que Paulo, o mais velho do grupo, puxou um brinde:
- À liberdade!
Naquela noite Paulo a levou até em casa e resolveu passar a noite lá. Uma noite de tórrido sexo, seguido de um baseado para relaxar. O assunto, até então evitado, apareceu:
- Então quer dizer que você é casado...
- Sou sim. Mas parece que não tem problema pra você, certo?
- Definitivamente! Eu não acredito em casamento, não respeito essa palhaçada que a igreja inventou pra controlar a gente! Pra mim não existem fronteiras para o amor.
Paulo sorriu, entusiasmado. Pôs-se a falar como concordava com todas aquelas ideias, que casara muito jovem, com uma mulher que não amava, que o casamento só se mantinha por causa dos filhos. Carolina argumentou:
- Que motivo mais estúpido para ficar com alguém. Você quer que seus filhos cresçam nesse ambiente de mentiras? Eles irão sofrer no início, mas a vida é assim mesmo. Hoje em dia a maioria das crianças é filha de pais separados, elas se adaptam muito bem. Eu mesma preferi que meus pais se separassem a ficarem brigando sem parar.
- Mas eu e a Luciana não brigamos não. É só, sabe... uma coisa morna, sem paixão. Sinto falta de paixão, disso que temos.
No dia seguinte Paulo foi embora. Não apareceu segunda no trabalho. Na terça veio, com ar abatido. Procurou Carolina:
- Eu terminei com a Luciana.
- Nossa, que máximo!!! Como está se sentindo?
- Não sei, é meio estranho. To processando as coisas ainda. Vou me mudar no fim de semana.
- Vai ser melhor, você vai ver! Sua vida vai ganhar qualidade, agora você vai poder viajar, conhecer o mundo, amar quem quiser, livre daquela farsa!
Paulo sacudiu a cabeça, em uma animação meio falsa, se despediu e foi pra sala dele trabalhar.
Chegando em casa, naquela noite, Carolina recebeu uma entrega: um enorme buquê de rosas vermelhas. No cartão, uma única palavra, escrita à mão:
“Que brega”, ela pensou. Paulo seria do tipo tiozão romântico? Será que ele achava que estavam namorando, ou algo assim? Carolina jogou fora as flores, ela as odiava! Flores eram um símbolo do amor romântico que escraviza as pessoas. Elas eram arrancadas do pé para simbolizar um sentimento efêmero, morriam e murchavam, deixando em lugar apenas uma água mal cheirosa! Pegou aquilo e levou ao lixo do prédio, amassou com força o buquê para caber na portinha da lixeira. Furou o dedo em algum espinho. Praguejando, voltou pra casa para procurar um band-aid.
No dia seguinte, de manhã muito cedo, o porteiro interfonou para comunicar uma entrega. Inferno! Sete horas da manhã? Não era claro que o mundo só acorda às nove? Mandou o porteiro guardar que ela pegaria mais tarde.
Já que levantara mais cedo, resolveu fazer sua rotina de Yoga matinal, que quase sempre esquecia. Tomou seu shake detox, e saiu para o trabalho. Na saída, lá estava a caixa de encomenda em cima do balcão. Ela cumprimentou o porteiro que, distraído, nem se virou. “Mal-educado!”, ela pensou. “Depois perde o emprego e fica reclamando.” Resolveu abrir o pacote: era um livro usado, com carimbo de sebo. Dentro, mais um bilhete escrito à mão:
Definitivamente Paulo era um esquisito! Arrependeu-se de ter trocado energia com ele, deveria ter conhecido um pouco mais antes de se envolver com um “vampiro energético”, pensou.
Dona Matilde, a síndica desceu o elevador com aquele cachorrinho esquisito. Olhou pra ela com o habitual desdém e deu um bom dia insosso. O cachorro pinsher latia esganiçadamente, como sempre, retesando a guia, tentando avançar sobre a moça. Carolina lembrou por que odiava cães e amava gatos. Cães são criaturas submissas e dependentes, pessoas que possuem cães gostam de relacionamentos estranguladores, de gente submissa e dependente como os cães. Não sabem lidar com criaturas sagazes e livres, como os gatos. Seres humanos não possuem gatos, eles convivem com gatos: o gato tem a liberdade de ir e vir, se ele fica é porque gosta do ser humano. Diferente dos cachorros, que gostam de proteger e servir...
Foi pensando nisso até chegar ao trabalho, pedalando pela ciclovia. Pensava também como ia lidar com o grude de Paulo, tinha que cortar aquilo pela raiz. Será que ele tava achando que ia se mudar pra casa dela? Nem pensar!!! Ter alguém atrapalhando sua rotina, regulando seus horários, onde já se viu? Além do mais nem tinha espaço...
Mas ao chegar ao trabalho, nem sinal de Paulo. Ele estava presente, mas na sala dele, concentrado nos seus assuntos. Chegando à sua estação de trabalho, um post-it colado sobre o mouse chamou a atenção de Carolina. Nele, escito à mão, estava:
- Mas que diabos?! – soltou Carolina em voz alta. Bianca, sua colega da estação de trabalho ao lado perguntou o que acontecera:
- O Paulo, ele está me perseguindo!
- Como assim, o que ele fez?!
- Você viu ele colocando isso aqui?
- Não, eu cheguei bem cedo e isso já estava aí. Achei que você tinha colocado um lembrete pra si mesma, eu faço isso direto!
- Se isso não parar ele vai ver! Você é minha testemunha, isso está passando dos limites!
Bianca franziu a testa, não entendeu nada, mas preferiu não se meter...
Hora do almoço não existia naquela empresa, todos pediam comida delivery. Isto era o acordo feito para poderem entrar uma hora mais tarde ou sair uma hora mais cedo. Carolina pediu uma salada Caesar com peito de frango e recebeu meia hora depois. Ao abrir o pacote de guardanapo de papel, se deparou com algo escrito neles:
Indignada, foi até a sala de Paulo:
- Escuta aqui, estou incomodada, isso tem que parar!
- Do que você está falando? – perguntou Paulo perplexo.
- Disso! - Ela mostrou o post-it e o guardanapo. Ele fez uma expressão confusa, e então ela continuou: - E as flores, e o livro. O que você está pensando?!
- Desculpa eu realmente não sei de flores nenhumas, do que do você está falando? E o que é “ABRACADA”? Uma fruta...?
- Olha Paulo eu quero deixar uma coisa muito clara: nós não estamos namorando, ok?!
- Tá...
- Não é porque a gente dormiu junto, não é porque seu casamento tava uma merda que a gente tem alguma coisa, ficou claro isso?
- Ok, mas...
- E se eu receber mais um bilhete escroto, ou presente, ou flores, eu vou abrir um Boletim de Ocorrência e exigir uma ordem de segurança conta você!
- Você está maluca Carolina?
- Ah, agora o Gasligth... Muito bem: experimenta!
E saiu batendo a porta.
Paulo passou o dia inteiro em sua sala de porta fechada. “Entendeu o recado”, ela pensou. É assim que se reage ao assédio. Voltando ao prédio o porteiro mal educado novamente não lhe deu boa noite. A Síndica, no saguão, também nem se esforçou em cumprimentá-la. Esse mundo de relações tóxicas e superficiais é um saco, ela ponderou. O maldito pinsher, porém, rosnava e latia para ela, realizando sua única função no mundo.
Em casa, foi recebida com festas por Tygra, a gatinha que resgatara há meses atrás. Serviu-lhe a ração e foi para um longo e merecido banho quente. Depois, quando foi pentear o cabelo, passou a toalha para desembaçar o espelho e notou que o mesmo continuava embaçado. Era difícil discernir os traços de seu rosto, e ela anotou mentalmente: “Comprar espelho novo”.
Ligou a televisão para assistir seu seriado enquanto esperava o delivery, e pensou ter visto por poucos segundo na tela:
Seu sangue gelou, mas aquilo logo sumiu, deve ter sido impressão. Pensou em Paulo, em como ele era tóxico e abusivo, e resolveu que procuraria o RH da empresa no dia seguinte. Assistiu vários episódios, comeu a comida japonesa, não se esquecendo de dividir o sashimi de atum com Tygra, sua fiel companheira. Acabou adormecendo no sofá, perdendo a hora no dia seguinte.
Acordara com uma forte dor de cabeça e náuseas, perto do meio dia. Resolveu informar a empresa por e-mail que não se sentia bem e procurar um médico. No pronto atendimento, o de sempre: perguntas impessoais, como se o paciente nem existisse. O médico considerou um caso de intoxicação alimentar leve, escreveu uma receita em letra ilegível e deu para a moça, sem olhar para ela uma vez sequer. Na farmácia, o balconista:
- Moça, não temos esse remédio. Tem certeza que é esse o nome?
- Que nome? Deixa eu ver.
Carolina ficou tonta e saiu imediatamente da farmácia, deixando a receita para trás. Aquilo não fazia sentido, uma completa insanidade! Voltando ao prédio, a portaria estava tranqüila, o porteiro conversando calmamente com a síndica e o Pinsher sentado. Ela deu boa tarde, mas não obteve nenhuma resposta. “Ignorantes!” ela pensou. Pelo menos dessa vez o cachorro também a ignorou.
Resolveu fazer um chá preto com biscoitos, a única coisa que agüentaria comer naquela situação. Serviu a ração de Tygra, que serpeava carinhosamente a seus pés. Entrou no instagram para ver as novidades. Ficou olhando os Histories até topar com um muito estranho, só uma palavra:
Já começara a surtar quando surgiu o seguinte: “Associação Brasileira de Amantes do Cinema convida você!”
Precisava de alguém pra dividir aquela história toda, o que estava acontecendo com ela?! Ligou para a colega do escritório:
- Alô Bianca?
- Oi. Quem ta falando?
- Como assim, sou eu, a Carolina.
- Carolina...
- Da agência Luminus.
- Ah, oi! Claro, A Carolina... Como eu posso te ajudar?
- É que ontem eu passei mal aqui em casa, aí eu não fui à agência hoje...
- Ah foi é? Nem percebi! O dia foi corrido, sabe?
- É sim...
- Tá, mas você está bem, melhorou?
- Melhorei sim. Só queria saber se deu algum problema com a minha ausência lá.
- Ah não, acho que cuidamos de tudo, tranqüilo! Se cuida ta? Bjs! – e desligou o telefone.
Bianca era uma de suas melhores amigas. Entraram juntas como estagiárias, pediam o almoço juntas todos os dias. Carolina até foi convidada pro casamento da amiga, mas no dia tinha uma chopada imperdível então dera uma desculpa qualquer. Ela não entendia porque aquela frieza de repente. Resolveu assistir séries deitada no sofá até pegar no sono. No meio da noite, foi acordada repentinamente com uma cena muito barulhenta de um filme de terror. Na cena, pintado a sangue em uma porta, estava:
Desligou, foi pra varanda fumar um baseado para se acalmar. Tygra veio lhe fazer companhia.
No dia seguinte acordou, tomou seu chá com biscoitos e foi se arrumar. Notou que o espelho do banheiro continuava embaçado, e lembrou que tinha que providenciar outro. Resolveu anotar no calendário na porta da geladeira para não esquecer, quando se deparou com grandes letras vermelhas:
Era apenas o mês corrente, mas Carolina já havia perdido completamente o equilíbrio: pegou aquela porcaria e jogou longe, quase acertando a gata. O bicho pulou, miou alto, a dona tentou se achegar com um carinho, mas ele se esquivou. Ela chorou, estava ficando louca, nada mais fazia sentido. Nesse momento, um envelope é colocado sob a porta. Um cartão com letras escritas à mão:
Carolina gritou, rasgou o papel. Queria ligar para a mãe, mas não lembrava o número de cabeça. Procurou na agenda do celular, ligou. Caiu na caixa-postal. Desesperada, ela se lembrou de um livro que lera quando adolescente, em que o autor em meio a um surto psicótico conseguia pôr a mente no lugar durante o banho. Resolveu tentar: ligou o chuveiro na água quente, entrou de roupa e tudo. Ficou por minutos que pareceram horas, até ir se acalmando, parando de soluçar, e depois parando de chorar. Se enxugou, trocou de roupa. Quando saiu, o espelho embaçado tinha algo escrito no vapor:
Desesperada, ela apagou aquilo para se deparar com a mais aterradora das cenas: seu reflexo desaparecera! Correu até o espelho do quarto, apenas para se deparar com a mesma cena insólita. Sentiu vontade de vomitar, não conseguiu se segurar. Ela olhava desesperada as mãos e tocava no próprio corpo, estava tudo no lugar, mas nada aparecia no espelho. Tygra entrou no quarto e se acomodou sobre a cama, totalmente indiferente. Ela foi até a gata, chamou, a pegou no colo, o animal deixou, mas não esboçou nenhuma reação.
Carolina saiu, pegou o elevador. Igualmente, nenhum reflexo nos espelhos. Alguém chamara o elevador no quinto andar e ele fez uma parada, a vizinha entrou no elevador com um carrinho de bebê enorme, obrigando Carolina a se imprensar no fundo. Carolina deu bom dia: nenhuma resposta. A vizinha continuou falando com o bebê naquela língua que na opinião de Carolina retardava as crianças, e a ignorou completamente.
No saguão o pinsher não rosnou. No trânsito nenhum carro lhe buzinou e os pedestres não saiam da frente com o som da sineta da bicicleta. Chegando à agência ninguém percebeu o fato dela estar usando pijama, nem que já era meio dia e ela estava muito atrasada. Na folha de ponto não havia sequer falta para ela no dia anterior.
Andava pelos corredores estranhando tudo: as pessoas passavam e esbarravam nela, murmuravam um “desculpe” automático e seguiam em frente. Resolveu ir até a sala de Paulo, a porta estava aberta. Chamou por ele, ele respondeu automaticamente:
- Sim?
- Você se lembra de mim?
Paulo lhe olhou com estranheza, franziu a testa e apenas respondeu:
- Desculpe moça, não estamos aceitando estagiários no momento. – e voltou a trabalhar em seu projeto.
Carolina ficou estarrecida. Os olhos se encheram de água, mas tentou manter a compostura. Pediu licença e saiu. Foi até sua estação de trabalho. Estava tudo exatamente como deixara. Bianca, na mesa ao lado, preenchia planilhas concentrada e não notou sua presença. No escaninho ela notou algo que não estava lá quando saíra: um envelope pardo. Dentro dele, sua foto de perfil do Instagram estava impressa, com nome completo, data e local de nascimento. E sobre seu rosto, escrito à mão, estava:
Carolina era uma moça de 24 anos, moderna em tudo que se podia imaginar. Seus cabelos curtos, piercings e tatuagens, seu trabalho na agência de publicidade, suas músicas, seus hobbys, seus amores.
- Monogamia é uma invenção do patriarcado! – dizia a moça acendendo seu cigarro eletrônico – Eu não respeito essa mentira, não mesmo! Eu sou livre para viver meus afetos do jeito que eu quiser, sem regulamentação do estado nem da Igreja, nem de ninguém!
O grupo reunido em pé em torno de uma mesinha de bar, tomando cerveja, fazia gestos de concordância, até que Paulo, o mais velho do grupo, puxou um brinde:
- À liberdade!
Naquela noite Paulo a levou até em casa e resolveu passar a noite lá. Uma noite de tórrido sexo, seguido de um baseado para relaxar. O assunto, até então evitado, apareceu:
- Então quer dizer que você é casado...
- Sou sim. Mas parece que não tem problema pra você, certo?
- Definitivamente! Eu não acredito em casamento, não respeito essa palhaçada que a igreja inventou pra controlar a gente! Pra mim não existem fronteiras para o amor.
Paulo sorriu, entusiasmado. Pôs-se a falar como concordava com todas aquelas ideias, que casara muito jovem, com uma mulher que não amava, que o casamento só se mantinha por causa dos filhos. Carolina argumentou:
- Que motivo mais estúpido para ficar com alguém. Você quer que seus filhos cresçam nesse ambiente de mentiras? Eles irão sofrer no início, mas a vida é assim mesmo. Hoje em dia a maioria das crianças é filha de pais separados, elas se adaptam muito bem. Eu mesma preferi que meus pais se separassem a ficarem brigando sem parar.
- Mas eu e a Luciana não brigamos não. É só, sabe... uma coisa morna, sem paixão. Sinto falta de paixão, disso que temos.
No dia seguinte Paulo foi embora. Não apareceu segunda no trabalho. Na terça veio, com ar abatido. Procurou Carolina:
- Eu terminei com a Luciana.
- Nossa, que máximo!!! Como está se sentindo?
- Não sei, é meio estranho. To processando as coisas ainda. Vou me mudar no fim de semana.
- Vai ser melhor, você vai ver! Sua vida vai ganhar qualidade, agora você vai poder viajar, conhecer o mundo, amar quem quiser, livre daquela farsa!
Paulo sacudiu a cabeça, em uma animação meio falsa, se despediu e foi pra sala dele trabalhar.
Chegando em casa, naquela noite, Carolina recebeu uma entrega: um enorme buquê de rosas vermelhas. No cartão, uma única palavra, escrita à mão:
“ABRACADABRA”
“Que brega”, ela pensou. Paulo seria do tipo tiozão romântico? Será que ele achava que estavam namorando, ou algo assim? Carolina jogou fora as flores, ela as odiava! Flores eram um símbolo do amor romântico que escraviza as pessoas. Elas eram arrancadas do pé para simbolizar um sentimento efêmero, morriam e murchavam, deixando em lugar apenas uma água mal cheirosa! Pegou aquilo e levou ao lixo do prédio, amassou com força o buquê para caber na portinha da lixeira. Furou o dedo em algum espinho. Praguejando, voltou pra casa para procurar um band-aid.
No dia seguinte, de manhã muito cedo, o porteiro interfonou para comunicar uma entrega. Inferno! Sete horas da manhã? Não era claro que o mundo só acorda às nove? Mandou o porteiro guardar que ela pegaria mais tarde.
Já que levantara mais cedo, resolveu fazer sua rotina de Yoga matinal, que quase sempre esquecia. Tomou seu shake detox, e saiu para o trabalho. Na saída, lá estava a caixa de encomenda em cima do balcão. Ela cumprimentou o porteiro que, distraído, nem se virou. “Mal-educado!”, ela pensou. “Depois perde o emprego e fica reclamando.” Resolveu abrir o pacote: era um livro usado, com carimbo de sebo. Dentro, mais um bilhete escrito à mão:
“ABRACADABR”
Definitivamente Paulo era um esquisito! Arrependeu-se de ter trocado energia com ele, deveria ter conhecido um pouco mais antes de se envolver com um “vampiro energético”, pensou.
Dona Matilde, a síndica desceu o elevador com aquele cachorrinho esquisito. Olhou pra ela com o habitual desdém e deu um bom dia insosso. O cachorro pinsher latia esganiçadamente, como sempre, retesando a guia, tentando avançar sobre a moça. Carolina lembrou por que odiava cães e amava gatos. Cães são criaturas submissas e dependentes, pessoas que possuem cães gostam de relacionamentos estranguladores, de gente submissa e dependente como os cães. Não sabem lidar com criaturas sagazes e livres, como os gatos. Seres humanos não possuem gatos, eles convivem com gatos: o gato tem a liberdade de ir e vir, se ele fica é porque gosta do ser humano. Diferente dos cachorros, que gostam de proteger e servir...
Foi pensando nisso até chegar ao trabalho, pedalando pela ciclovia. Pensava também como ia lidar com o grude de Paulo, tinha que cortar aquilo pela raiz. Será que ele tava achando que ia se mudar pra casa dela? Nem pensar!!! Ter alguém atrapalhando sua rotina, regulando seus horários, onde já se viu? Além do mais nem tinha espaço...
Mas ao chegar ao trabalho, nem sinal de Paulo. Ele estava presente, mas na sala dele, concentrado nos seus assuntos. Chegando à sua estação de trabalho, um post-it colado sobre o mouse chamou a atenção de Carolina. Nele, escito à mão, estava:
“ABRACADAB”
- Mas que diabos?! – soltou Carolina em voz alta. Bianca, sua colega da estação de trabalho ao lado perguntou o que acontecera:
- O Paulo, ele está me perseguindo!
- Como assim, o que ele fez?!
- Você viu ele colocando isso aqui?
- Não, eu cheguei bem cedo e isso já estava aí. Achei que você tinha colocado um lembrete pra si mesma, eu faço isso direto!
- Se isso não parar ele vai ver! Você é minha testemunha, isso está passando dos limites!
Bianca franziu a testa, não entendeu nada, mas preferiu não se meter...
Hora do almoço não existia naquela empresa, todos pediam comida delivery. Isto era o acordo feito para poderem entrar uma hora mais tarde ou sair uma hora mais cedo. Carolina pediu uma salada Caesar com peito de frango e recebeu meia hora depois. Ao abrir o pacote de guardanapo de papel, se deparou com algo escrito neles:
“ABRACADA”
Indignada, foi até a sala de Paulo:
- Escuta aqui, estou incomodada, isso tem que parar!
- Do que você está falando? – perguntou Paulo perplexo.
- Disso! - Ela mostrou o post-it e o guardanapo. Ele fez uma expressão confusa, e então ela continuou: - E as flores, e o livro. O que você está pensando?!
- Desculpa eu realmente não sei de flores nenhumas, do que do você está falando? E o que é “ABRACADA”? Uma fruta...?
- Olha Paulo eu quero deixar uma coisa muito clara: nós não estamos namorando, ok?!
- Tá...
- Não é porque a gente dormiu junto, não é porque seu casamento tava uma merda que a gente tem alguma coisa, ficou claro isso?
- Ok, mas...
- E se eu receber mais um bilhete escroto, ou presente, ou flores, eu vou abrir um Boletim de Ocorrência e exigir uma ordem de segurança conta você!
- Você está maluca Carolina?
- Ah, agora o Gasligth... Muito bem: experimenta!
E saiu batendo a porta.
Paulo passou o dia inteiro em sua sala de porta fechada. “Entendeu o recado”, ela pensou. É assim que se reage ao assédio. Voltando ao prédio o porteiro mal educado novamente não lhe deu boa noite. A Síndica, no saguão, também nem se esforçou em cumprimentá-la. Esse mundo de relações tóxicas e superficiais é um saco, ela ponderou. O maldito pinsher, porém, rosnava e latia para ela, realizando sua única função no mundo.
Em casa, foi recebida com festas por Tygra, a gatinha que resgatara há meses atrás. Serviu-lhe a ração e foi para um longo e merecido banho quente. Depois, quando foi pentear o cabelo, passou a toalha para desembaçar o espelho e notou que o mesmo continuava embaçado. Era difícil discernir os traços de seu rosto, e ela anotou mentalmente: “Comprar espelho novo”.
Ligou a televisão para assistir seu seriado enquanto esperava o delivery, e pensou ter visto por poucos segundo na tela:
“ABRACAD”
Seu sangue gelou, mas aquilo logo sumiu, deve ter sido impressão. Pensou em Paulo, em como ele era tóxico e abusivo, e resolveu que procuraria o RH da empresa no dia seguinte. Assistiu vários episódios, comeu a comida japonesa, não se esquecendo de dividir o sashimi de atum com Tygra, sua fiel companheira. Acabou adormecendo no sofá, perdendo a hora no dia seguinte.
Acordara com uma forte dor de cabeça e náuseas, perto do meio dia. Resolveu informar a empresa por e-mail que não se sentia bem e procurar um médico. No pronto atendimento, o de sempre: perguntas impessoais, como se o paciente nem existisse. O médico considerou um caso de intoxicação alimentar leve, escreveu uma receita em letra ilegível e deu para a moça, sem olhar para ela uma vez sequer. Na farmácia, o balconista:
- Moça, não temos esse remédio. Tem certeza que é esse o nome?
- Que nome? Deixa eu ver.
“ABRACA”
1 cp 12/12
1 cp 12/12
Carolina ficou tonta e saiu imediatamente da farmácia, deixando a receita para trás. Aquilo não fazia sentido, uma completa insanidade! Voltando ao prédio, a portaria estava tranqüila, o porteiro conversando calmamente com a síndica e o Pinsher sentado. Ela deu boa tarde, mas não obteve nenhuma resposta. “Ignorantes!” ela pensou. Pelo menos dessa vez o cachorro também a ignorou.
Resolveu fazer um chá preto com biscoitos, a única coisa que agüentaria comer naquela situação. Serviu a ração de Tygra, que serpeava carinhosamente a seus pés. Entrou no instagram para ver as novidades. Ficou olhando os Histories até topar com um muito estranho, só uma palavra:
“ABRAC”
Já começara a surtar quando surgiu o seguinte: “Associação Brasileira de Amantes do Cinema convida você!”
Precisava de alguém pra dividir aquela história toda, o que estava acontecendo com ela?! Ligou para a colega do escritório:
- Alô Bianca?
- Oi. Quem ta falando?
- Como assim, sou eu, a Carolina.
- Carolina...
- Da agência Luminus.
- Ah, oi! Claro, A Carolina... Como eu posso te ajudar?
- É que ontem eu passei mal aqui em casa, aí eu não fui à agência hoje...
- Ah foi é? Nem percebi! O dia foi corrido, sabe?
- É sim...
- Tá, mas você está bem, melhorou?
- Melhorei sim. Só queria saber se deu algum problema com a minha ausência lá.
- Ah não, acho que cuidamos de tudo, tranqüilo! Se cuida ta? Bjs! – e desligou o telefone.
Bianca era uma de suas melhores amigas. Entraram juntas como estagiárias, pediam o almoço juntas todos os dias. Carolina até foi convidada pro casamento da amiga, mas no dia tinha uma chopada imperdível então dera uma desculpa qualquer. Ela não entendia porque aquela frieza de repente. Resolveu assistir séries deitada no sofá até pegar no sono. No meio da noite, foi acordada repentinamente com uma cena muito barulhenta de um filme de terror. Na cena, pintado a sangue em uma porta, estava:
“ABRA”
Desligou, foi pra varanda fumar um baseado para se acalmar. Tygra veio lhe fazer companhia.
No dia seguinte acordou, tomou seu chá com biscoitos e foi se arrumar. Notou que o espelho do banheiro continuava embaçado, e lembrou que tinha que providenciar outro. Resolveu anotar no calendário na porta da geladeira para não esquecer, quando se deparou com grandes letras vermelhas:
“ABR”
Era apenas o mês corrente, mas Carolina já havia perdido completamente o equilíbrio: pegou aquela porcaria e jogou longe, quase acertando a gata. O bicho pulou, miou alto, a dona tentou se achegar com um carinho, mas ele se esquivou. Ela chorou, estava ficando louca, nada mais fazia sentido. Nesse momento, um envelope é colocado sob a porta. Um cartão com letras escritas à mão:
“AB”
Carolina gritou, rasgou o papel. Queria ligar para a mãe, mas não lembrava o número de cabeça. Procurou na agenda do celular, ligou. Caiu na caixa-postal. Desesperada, ela se lembrou de um livro que lera quando adolescente, em que o autor em meio a um surto psicótico conseguia pôr a mente no lugar durante o banho. Resolveu tentar: ligou o chuveiro na água quente, entrou de roupa e tudo. Ficou por minutos que pareceram horas, até ir se acalmando, parando de soluçar, e depois parando de chorar. Se enxugou, trocou de roupa. Quando saiu, o espelho embaçado tinha algo escrito no vapor:
“A”
Desesperada, ela apagou aquilo para se deparar com a mais aterradora das cenas: seu reflexo desaparecera! Correu até o espelho do quarto, apenas para se deparar com a mesma cena insólita. Sentiu vontade de vomitar, não conseguiu se segurar. Ela olhava desesperada as mãos e tocava no próprio corpo, estava tudo no lugar, mas nada aparecia no espelho. Tygra entrou no quarto e se acomodou sobre a cama, totalmente indiferente. Ela foi até a gata, chamou, a pegou no colo, o animal deixou, mas não esboçou nenhuma reação.
Carolina saiu, pegou o elevador. Igualmente, nenhum reflexo nos espelhos. Alguém chamara o elevador no quinto andar e ele fez uma parada, a vizinha entrou no elevador com um carrinho de bebê enorme, obrigando Carolina a se imprensar no fundo. Carolina deu bom dia: nenhuma resposta. A vizinha continuou falando com o bebê naquela língua que na opinião de Carolina retardava as crianças, e a ignorou completamente.
No saguão o pinsher não rosnou. No trânsito nenhum carro lhe buzinou e os pedestres não saiam da frente com o som da sineta da bicicleta. Chegando à agência ninguém percebeu o fato dela estar usando pijama, nem que já era meio dia e ela estava muito atrasada. Na folha de ponto não havia sequer falta para ela no dia anterior.
Andava pelos corredores estranhando tudo: as pessoas passavam e esbarravam nela, murmuravam um “desculpe” automático e seguiam em frente. Resolveu ir até a sala de Paulo, a porta estava aberta. Chamou por ele, ele respondeu automaticamente:
- Sim?
- Você se lembra de mim?
Paulo lhe olhou com estranheza, franziu a testa e apenas respondeu:
- Desculpe moça, não estamos aceitando estagiários no momento. – e voltou a trabalhar em seu projeto.
Carolina ficou estarrecida. Os olhos se encheram de água, mas tentou manter a compostura. Pediu licença e saiu. Foi até sua estação de trabalho. Estava tudo exatamente como deixara. Bianca, na mesa ao lado, preenchia planilhas concentrada e não notou sua presença. No escaninho ela notou algo que não estava lá quando saíra: um envelope pardo. Dentro dele, sua foto de perfil do Instagram estava impressa, com nome completo, data e local de nascimento. E sobre seu rosto, escrito à mão, estava:
“Desapareça como esta palavra!”