A Bruxa
Muitos a evitavam. Era preferível enfrentar a grande volta pela estrada da antiga pedreira a adentrar a trilha que encurtaria o caminho pela metade. Não era, necessariamente, medo de algo sobrenatural. O fato é que, com frequência, marginais eram ali avistados, usando drogas, ou esperando que surgisse alguém disposto a ser assaltado. Aquela mata era bastante fechada , o que tornava difícil orientar-se, pois as árvores mais altas teciam um pesado telhado sobre seus visitantes. Pouco sol penetrava.
Ignorou os conselhos da velha e sábia mãe. Ganharia pelo menos trinta minutos se usasse aquele atalho. Estava com sua bicicleta e bastaria seguir a trilha para economizar tempo e terreno. Seria arriscado? Talvez. Mas o ímpeto e a ousadia adolescentes falaram mais alto. Depois, diria à mãe ter feito o costumeiro contorno, evitando a mata.
A trilha era muito estreita. Podia-se perceber que, havia tempos, ninguém por ali passava. A vegetação que a margeava, em determinados pontos, se tocava. Sorte do garoto só estar indo visitar o pai. Aquela roupa estaria, em instantes, imprestável. À medida que avançava pela trilha percebeu que ela ia, cada vez mais, sumindo. Apesar de ser ainda dia, pouca claridade do sol penetrava e a mata já encontrava-se parcialmente escura. Árvores de grande porte, misturadas à vegetação mais rasteira, alternavam-se com algumas poucas clareiras. Começou a preocupar-se porque, cada vez mais, a velha trilha enfraquecia. Sem ela, poderia perder-se. Era a primeira vez que desobedecia às ordens da mãe, e sua insubordinação poderia custar-lhe caro.
O que tanto temia aconteceu. Viu-se, de repente, sem trilha alguma a sua frente. Tudo o que via era mata, mata fechada. Olhando para cima, somente o telhado formado pelas árvores mais frondosas. Sentiu o rosto arder, provavelmente arranhado pela vegetação. Pensou que não deveria entrar em pânico, pois poderia ficar girando sem rumo dentro da mata. Tornou-se difícil até mesmo arrastar consigo a bicicleta. E havia insetos, muitos deles, indesejáveis mosquitos que lhe tiravam o sangue em doses homeopáticas. Ouvia muitos ruídos, cantos de aves, e questionou-se se poderia existir, ali, algum animal perigoso. Havia quem dissesse já ter visto onças naquela região. Redobrou a atenção, afinal cobras e aranhas também não eram uma opção agradável, e também poderia encontrar um enxame de vespas. Estava mesmo encrencado.
As histórias que sempre ouvira, agora, lhe vinham à mente. Diziam que aquela mata era habitada por uma velha bruxa que sequestrava crianças e as usava em seus rituais diabólicos. Arrancava-lhes as vísceras e ossos, e os oferecia ao diabo, em meio a rituais satânicos. Ora... com certeza somente crendices, afinal não lembrava de crianças desaparecidas naquela região e, mesmo que tais lendas tivessem algum fundamento, com certeza já teriam revirado a mata atrás das supostas vítimas e, consequentemente, encontrado a velha bruxa. Aliás, pelo tempo que aquela história existia, a bruxa, se ainda viva fosse, deveria ter uns cento e cinquenta anos.
A vegetação triscava seu rosto e braços, e pernas. Arrastava com dificuldade a bicicleta, e já admitia estar totalmente perdido. Para qualquer lado que olhasse, era uma coisa só. Perdera qualquer senso de orientação que ainda poderia ter. Há quanto tempo estaria andando no meio da mata? Tinha que ser rápido, se anoitecesse estaria em maus lençóis, aliás, ironias à parte, lençóis era justamente algo que não teria, no meio daquele mato todo.
O cansaço começava a tomar conta do pobre Francisco. Arrastava a bicicleta, amassando a vegetação baixa, e percebeu, pelo mato amassado, que já teria passado por aquele local. Estaria andando em círculos? A tarde findava e, no meio da mata fechada, a noite começava a se mostrar. Subitamente, o garoto percebeu que houve um silêncio maior. Aves, insetos, não se ouvia mais nada. Aquela calmaria toda poderia ser um mau sinal, assim era nos filmes de terror e suspense que assistia. Parou e permaneceu imóvel por alguns instantes, ouvindo. Em meio à calmaria que se instaurara na mata, ouviu um estalar de gravetos, como se alguém neles pisasse. E outro, em seguida. Tomado pelo pavor, largou a bicicleta que ainda insistia em arrastar e pôs-se a correr. Alguém estaria em seu encalço. Lembrou da lenda da bruxa, que pegaria crianças e as usaria em rituais macabros no meio daquela mata. Uma bruxa de cento e cinquenta anos... corria sem direção definida, afastando a vegetação com as mãos. Caiu uma, duas, três vezes, levantando-se em seguida e voltando a correr. A mochila que trazia às costas, nem sabia onde a perdera.
Caiu novamente e, ao levantar, limpando sujeira dos olhos, percebeu ser observado, à meia distância, por um animal. Já havia quase nenhuma claridade e, com isso, tornava-se difícil precisar o que era. Pensou ser um lobo, mas não existiam lobos ali. Talvez um cachorro de porte grande. Pelagem clara. Ele olhava fixamente para o jovem, que encontrava-se numa situação delicada, pois pensava que, se corresse, ele o atacaria, e atrás ainda ouvia aqueles passos... Mas o animal o encarava com aparente calma. Estavam a dez metros de distância um do outro. Sentiu, finalmente, que ele não lhe faria mal. Ouviu com atenção e não havia mais barulho algum atrás de si. Tudo era silêncio. O animal, então, embrenha-se na mata, tranquilamente. O jovem resolve segui-lo. Ele andava lentamente, como a desejar que não perdessem contato visual. “Siga-me!” Sussurrou a voz em seu ouvido, o que fez seu corpo ser tomado de calafrios. Mas assim o fez. Seguiu o animal, que se embrenhava por entre troncos e arbustos, na mata cada vez mais escura.
Diante de seus olhos, subitamente, uma grande clareira se fez no meio da mata e, no meio dela, uma pequena cabana. O animal rondava o casebre, demonstrando algum tipo de impaciência. Teria aquele animal guiado o menino até aquele lugar? Haveria alguém habitando aquela pequena construção de finos troncos no meio do nada? ele se fazia muitas perguntas. A Cabana tinha uma porta frontal que estava fechada. Não havia luzes de nenhuma natureza. O grande cão continuava circulando, impacientemente, sob a porta, até que dirigiu-se a ela e, com a pata, arranhou os gravetos atados por cipós, fazendo-a abrir parcialmente. Ele entra. O menino continuava parado, olhando para a cabana. A pouca claridade não permitia que visse os símbolos estranhos trançados com cipós que havia, pendurados, ao longo das paredes da cabana, e também nas árvores, assim como muitos crânios, provavelmente de aves e pequenos animais. A porta permanecia semiaberta, e o animal em seu interior continuava. Ele encontra, enfim, alguma coragem, e caminha alguns passos, aproximando-se mais da porta entreaberta. Dedos, dedos longos, magros e ossudos, aparecem enrolando-se na moldura da rústica porta. Depois cabelos, longos e desgrenhados, brancos, e uma face, uma face magra com olhos encovados. A porta então está, finalmente, totalmente aberta.
O garoto volta-se para a direção de onde viera e põe-se a correr, desesperadamente. Então a bruxa existia, com seus mais de cem anos, e o teria atraído, usando o animal, para o seu covil. Ou seria ela própria aquele animal? Com certeza, caso capturado, seria usado em um ritual demoníaco e, talvez, alguns de seus restos ainda fossem encontrados, longe dali, apenas para alimentar nas pessoas a fantasia sobre a lenda de uma bruxa que vivia em meio à mata. Talvez tudo o que restasse seriam alguns ossos, e seu crânio, enfeitando a entrada da velha cabana. Quem sabe suas entranhas fossem encontradas sobre um platô formado por rochas. Símbolos mágicos, desconhecidos e incompreensíveis, ao lado de seus restos apodrecidos. Já anoitecera e o pobre garoto corria a esmo. Não importava para onde ia, apenas precisava sair dali. Não sabia se seria fruto de sua imaginação, mas pensou ouvir gargalhadas às suas costas. Enquanto corria, teve a impressão de ver sombras acompanhando-o, passando de árvore em árvore, saltando como macacos, agarrando-se aos seus troncos, macacos que zombavam de sua patética condição humana.
Em mais uma queda, acabou rolando em uma parte mais íngreme do terreno, um barranco. Depois de alguns metros rolando em meio à vegetação, tendo seu rosto riscado pela relva, sentiu-se caindo na água, que lhe cobriu por completo, pelo menos enquanto mantinha-se caído. Já em pé, tinha água pela cintura. Então caíra no pequeno rio que atravessava a mata. Agora sabia o que fazer: seguindo rio abaixo, chegaria à cidade. Só precisaria ter cuidado com algumas partes mais fundas que poderiam existir e que, com a escuridão, poderiam ser problema. Ainda pensava nas sombras que dançaram ao seu lado enquanto corria, mas seguiu em frente, mesmo assim. Era sua única opção.
Horas mais tarde, Francisco foi encontrado caído, junto à pequena ponte que dava acesso à cidade. Levado a um pronto atendimento emergencial, apresentava um quadro de hipotermia e balbuciava palavras e frases desconexas. Falava sobre um lobo, uma bruxa, e sombras, que teriam lhe perseguido durante a frenética carreira na mata, saltando entre os troncos das árvores. Já vinha sendo procurado desde que seu pai percebera não ter chegado na hora combinada e, por telefone, confirmado que saíra de casa. Ele finalmente recebeu atendimento e alguma medicação. Seu estado era lastimável, possuía escoriações por todo o corpo, e as roupas estavam em frangalhos. Ainda naquela noite permaneceu no hospital, aguardando exames que confirmariam uma possível fratura no braço mas, na ausência de tal lesão, foi liberado e pode ir para casa com o pai, que ainda pensava em que aventuras o filho havia se metido.
Passaram-se anos desde que Francisco vivera a terrível experiência. Ele contou sobre o que se teria passado no coração da mata. Ridicularizado por algumas pessoas, que viam naquele jovem uma forte imaginação, aliada ao medo, também teve o crédito da dúvida por parte de outras, tanto que buscas foram feitas na mata, tentando encontrar a clareira com a cabana. Até drones foram usados, em vão. Nenhuma cabana foi jamais avistada. Nenhum cão, que lembrasse um lobo, foi jamais visto por ali. A bicicleta fora encontrada, assim como a mochila. A lenda da bruxa, que já começava a cair no esquecimento, ganhou força.
Hoje Francisco, já homem feito, não ousa mais cruzar a mata. E jurou nunca mais fazê-lo. A velha mãe, agora morta, lhe dera então uma ordem, e sua desobediência lhe custara muito mais do que qualquer pessoa poderia um dia sequer imaginar... ninguém mais usa a velha trilha, que se encontra totalmente tomada pelo mato fechado. Mas à noite, ao deitar, Francisco ainda vê dedos, dedos longos e ossudos, enrolando-se na moldura da porta de seu quarto, assim como ouve seu nome sussurrado pelo vento, que dele debocha, enquanto faz ranger a velha janela.
Sérgio Kuns