Usei o verbo “sentir” no passado e reafirmo a minha surpresa em encontrá-la naquela tarde, sentada na nossa cama, porque simplesmente Rosana tinha falecido há três meses atrás. E eu, embora sentisse a falta dela, já havia me acostumado com a sua ausência em minha vida. Tanto que até já me casara de novo.
Surpreso sim, eu fiquei, mas não assustado, como se poderia supor. Afinal, não é normal um sujeito chegar em casa á tarde, depois de um dia de trabalho, e encontrar sua falecida esposa, sentada na sua cama, parecendo ainda mais viva do que estava antes de ter morrido.Pelo menos mais viva e saudável que dos nos três últimos meses da sua vida, quando o câncer que a levou embora se tornou mais agressivo e praticamente a transformou em uma morta viva que saia da casa para o hospital e do hospital para casa.
Claro, eu não sei como funcionam as leis que regulam a comunicação entre o mundo dos mortos e o mundo dos vivos, nem se existem tais leis e tais mundos; nem quais as possibilidades e condições que permitem que isso ocorra. A tradição, nesses casos, mandava que meus cabelos arrepiassem, que os meus batimentos cardíacos acelerassem, que todos os pelos do meu corpo se eriçassem, levantando por toda a massa física que constitui o meu organismo um cipoal de arame farpado que faria inveja a um campo de concentração. 
Mas não foi isso que aconteceu. Eu simplesmente fiquei surpreso por vê-la ali, sentada na cama, folheando aquela revista, tranquila, tão calma como se tivesse voltado de uma longa viagem, como tal deve ser essa jornada entre o mundo dos que foram e o dos que ficaram. Ou talvez (o que sabemos nós?),  essa viagem não seja mais que o virar de uma página, uma passagem de porta, ou um mero cruzar de rio, como figuravam os gregos antigos com o mito de Caronte, o barqueiro que cobrava duas moedas para levar a alma dos mortos de uma margem á outra do rio Estiges.
O fato é que, se essa viagem é longa, Rosana não a sentiu, pois ela estava ali, e seu aspecto era de quem havia dado um mero passeio e estava de volta. Eu estava olhando a vida e a morte simultaneamente e não ficara assustado com isso. Sentia- me como um passageiro em um avião a caminho da Austrália. Quem já fez essa viagem sabe que quando se passa por um determinado ponto da terra a gente pode ver de um lado a metade escura e de outro a metade iluminada. E essa era, mais ou menos a impressão que eu tinha. De um lado a metade iluminada da vida, de outro a metade escura da morte. Ou o contrário, sei lá. Jung já havia dado um nó na minha cabeça com aquela ideia de que nós poderíamos ser um sonho que alguém, em outra dimensão do universo, estaria sonhando.
Logo me passou pela cabeça que ela não morrera de verdade, mas sim, teria apenas se ausentado durante um tempo, para se tratar, e agora, completamente curada, estava voltando para casa. Pois ela estava viçosa e saudável como antes do tratamento quimioterápico que andou fazendo contra aquele maldito câncer.
̶  Ué, o que você está fazendo aqui  ̶  perguntei, mais surpreso que aterrorizado.
̶  Porque a pergunta? Este não é o nosso quarto?  ̶  respondeu
ela com a maior naturalidade.
A ênfase posta no pronome possessivo chamou minha atenção, mas eu estava muito surpreso para ficar investigando possíveis sentidos que ele pudesse ter naquela hora. Não imaginei que ela pudesse estar se sentindo como uma rainha deserdada e expulsa do seu reino, que agora voltava do exílio para reivindicar os seus direitos.  Se fosse isso, se ela se sentisse assim, seria plenamente justificável, pois não deve ser uma experiência fácil de encarar se ausentar da sua casa e das relações que mantém com um mundo inteiro e, ao voltar, encontrar alguém no seu lugar, dormindo na sua cama, e se apropriando de tudo que era seu. E ainda por cima, como no caso dela, uma amiga.
̶  Mas você não morreu?  ̶  perguntei, desconcertado.
̶  Depende do que você entende por morrer  ̶  disse ela, sem largar a revista.
     ̶  Morrer é morrer. Só tem um sentido  ̶  eu disse, e nem me surpreendeu também o fato de eu ter dito isso de uma forma tão natural, como se tivéssemos conversando sobre o cardápio do jantar ou uma bobagem qualquer que uma das nossas filhas houvesse dito.
  ̶  É. Quando há um sentido   ̶ , respondeu ela laconicamente, como se não estivesse disposta a esticar aquele tipo de conversa. E eu, que tinha a consciência de estar falando com uma pessoa morta, não sei porque, entendi a razão, se razão houvesse, e não insisti. Coloquei a pasta sobre a cama, como sempre fazia em ocasiões anteriores, quando ela estava viva, e eu a encontrara em situações semelhantes, e entrei no banheiro.
 
Essa era uma cena cotidiana. Quase todo dia eu a encontrava sentada em nossa cama quando eu voltava do trabalho. Era a hora em que trocávamos informações sobre os acontecimentos do nosso dia, sobre a educação das nossas filhas, sobre as questões domésticas e outros assuntos da nossa vida comum. Ás vezes Rosana até tomava banho junto comigo na nossa Jacuzzi, e esse era um dos nossos momentos de mais gostosa intimidade. Ás vezes até fazíamos amor dentro da banheira.   
 Repito. Não tive medo nem fiquei horrorizado por estar falando com uma pessoa a quem eu sabia estar morta. Meus cabelos não arrepiaram, não senti o necessário calafrio na espinha que sempre ocorre nesses casos, conforme a tradição já estabelecida para tais acontecimentos, nem houve aquela queda de energia vital que se segue aos confrontos que opõem pessoas vivas e mortas nesses fenômenos de poltergeist. Fiquei apenas atabalhoado, desconcertado, sem saber o que pensar. E também me bateu uma preocupação e um temor, pois imediatamente me veio á cabeça o pensamento de como a Marisa, minha nova esposa, iria encarar esse fato. O que ela ia dizer, ou por outra, o que iria fazer quando soubesse que a falecida havia retornado do mundo dos mortos, e, ao que parecia, pela postura tranquila e confiante dela, sentada em nossa cama, disposta a reassumir o lugar que fora dela? Como reagiria, ela, que passara a noite toda no velório, acompanhara o corpo de Rosana ao cemitério, acendera velas e rezara Padres-Nossos e Aves-Marias, pedindo aos anjos e santos para acompanhar a alma da amiga até o céu e pedindo a Deus para que a recebesse sem burocracias e inquéritos?
Não. Não comecem a pensar bobagens. Marisa não fora minha amante quando Rosana estava viva. Nem sequer tínhamos sido namorados em qualquer fase anterior de nossas vidas. Também nunca pensamos em ter uma relação diferente da amizade que se estabeleceu entre nós por conta da intimidade que havia entre ela e Rosana, que eram professoras na mesma escola, e também por força da aproximação profissional se frequentavam bastante.
Claro que eu havia notado que Marisa era uma mulher boni-
ta e charmosa. E que estava soltinha no mercado para uma nova relação, pois que havia se divorciado recentemente. Mas eu juro pela alma de Rosana, que jamais pensei nela como uma possível substituta para ela. Pelo menos enquanto Rosana estava viva.
O que aconteceu entre nós aconteceu naturalmente. Eu me juntei com ela um mês depois que enterrei Rosana. Vou contar direito essa história, para que não paire dúvidas sobre o meu caráter e o de Marisa. Não quero que ninguém fique pensando que nós já andávamos passando Rosana para traz em vida e que a volta dela tivesse alguma coisa a ver com isso.
É claro que muita gente estranhou o fato de eu ter me envolvido com Marisa um mês depois de ter enterrado Rosana. Até os parentes dela e os meus desconfiaram dessa precocidade sentimental que nos acometeu, aos dois, e nos fez passar por cima de convenções tão caras aos instintos das pessoas e tão valoradas pelos gabaritos sociais. Até porque não havia quem não invejasse a minha relação com Rosana, que parecia perfeita.
Perfeita talvez seja um adjetivo muito ambicioso para qualificar nossa relação, mas que era muito boa, isso era. Nunca brigamos, eu e Rosana, pelo menos não aquele tipo de briga onde um fica bicudo com o outro e tem vontade de acabar com tudo. Isso não. As nossas desavenças nunca passaram de desencontro de opiniões, que a gente sempre resolvia na cama ou na mesa do jantar, diante de uma experiência culinária nova que ela fazia, acompanhada por um copo de bom vinho.
Destarte, creio que a volta dela tinha a ver com toda essa tradição que nós criamos em nossa história de vida e que agora estava servindo de liga entre os dois diferentes mundos em que estávamos.
A doutrina espiritualista diz que quando somos muito apegados aos bens que amealhamos em vida, principalmente os sentimentais, o nosso espírito tem dificuldade para desencarnar e partir para a outra esfera (seja lá o que for essa outra esfera). Demora muito para entender que já não faz parte desse lado do mundo, e fica constantemente procurando um corpo para ocupar, o que causa os chamados “encostos” que às vezes atrapalham a vida de muita gente. E também provocam os fenômenos poltergeist de que a gente tem ouvido falar por aí.
Coisa estranha para se pensar. Mas enquanto estava na banheira, o que me ocorreu foi este pensamento: talvez, em um ponto qualquer do universo, alguém esteja observando o nosso sol e o veja como uma estrela morta. Porque o brilho dele somente agora esteja chegando aos seus olhos. Isso é possível porque nós mesmos podemos ver, com os nossos modernos telescópios, a luz de estrelas mortas há milhões de anos. Diante dessa possibilidade, o fenômeno da existência passa a ser uma coisa tão relativa quando a nossa capacidade de visão. A existência só existe para quem está em relação com ela. Uma idéia extravagante! Para nós, que estamos vivendo neste lado do mundo tudo está nascendo. Mas para quem estivesse nos observando daquele ponto do universo, já teríamos morrido. Daí, e é possível ver a morte de algum ponto do universo, isso significa que ela coexiste com a vida. Então, na verdade, quem serão os mortos, e quem serão os vivos?
“Vou discutir essa questão com Rosana”, pensei. “Ela já esteve dos dois lados. E talvez isso explique essa volta dela”. Mas aquele dia não deu. Eu dormi na banheira e quando acordei Rosana não estava mais no quarto. Nem em qualquer outro lugar da casa.
A conclusão que tirei foi que tudo tinha sido apenas um sonho.
 
(Cap. IV do romance "Animus Pictus"-Visões da Alma. No prelo)