MEMENTO MORI
 
Estava indo para um local desconhecido, cercado de pessoas encapuzadas, com longas vestes pretas de ornamentos dourados. Entre si, cordas estavam amarradas às suas cinturas, nos isolando ainda mais naquela construção de pedras maciças, que mais lembrava um mosteiro incrustado no alto de um morro.

Antes de cruzar o pórtico, vi, por uma das estreitas e longas janelas, que estava na iminência de romper um novo dia. Parei por um instante, a paisagem de campos e árvores, naquele céu a anunciar a aurora era muito bela. Logo depois, entrei numa sala que mais lembrava um anfiteatro grego. O teto estava pintado como se fosse o céu noturno, cheio de estrelas. Havia vários pilares adornados. Ao fundo, um pano branco servia de biombo, e, no centro, um obelisco de pedra polida, ostentando um olho entalhado próximo ao ápice.

Havia algumas poucas pessoas naquele local. Todos nós estávamos apenas com as roupas íntimas de cor negra. Lá embaixo, um homem falava em tom solene e profundo:

– Vocês vieram até aqui por sua própria vontade. Muitos buscam se purificar, muitos buscam ser santificados, mas poucos chegaram até aqui. Meus parabéns!

Após um gesto longo, apontando para os biombos, ele complementou:

– Atrás desse véu, você serão iniciados e poderão se purificar. Quem desejar, pode vir. Quem quiser mudar de ideia, pode se retirar. Saibam que o processo é irreversível!

Uma onda de medo tomou o meu corpo. Ninguém daquela sala decidiu sair. Ao final, distantes alguns metros uns dos outros, fomos encaminhados para atravessar o véu.

Logo após cruzar aquele tecido branco, eu estava num espaço discreto, apenas eu e um sacerdote. Ele me pediu para me ajoelhar e assim o fiz. Fiquei em posição de oração, com as mãos unidas entre si. Ele retirou a corda que prendia o seu manto e amarrou as minhas mãos. Passou o dedo em um pote e o esfregou abaixo das minhas narinas, fazendo um bigode com aquele gel.

Assim que inspirei o ar entrou queimando os meus pulmões e logo a minha respiração ficou mais pesada. O ar parecia não querer mais preencher o meu peito.

Assustado, perguntei para ele o que seria aquilo. Ao passo que ele me respondeu:

– É uma pomada a base de cianeto. Apenas a morte purifica. Apenas a morte santifica – o seu olhar era um misto de pena e curiosidade. Parecia ter um pouco de prazer ali também.

Em desespero, rezei, me benzi. Tentei me levantar, mas isso era incrivelmente difícil. Ele apenas ficava ali, me observado e disse:

– Agora você acredita em Deus? – e riu maquievalicamente.

Notei algumas pessoas saindo pelo curto corredor que havia nas costas do monge. Algumas estavam em prantos, desesperadas. Outras, eram carregadas por outros monges, aparentemente desfalecidas. Outras, apenas me lançavam um olhar de desprezo, passavam rapidamente.

Atônito, sem entender o porquê daquilo, num esforço descomunal, finalmente me levantei e sai tonto, cambaleante dali. Precisava falar para a minha família que os amava! Fazia um esforço hercúleo a cada respiração, que descia como se estivesse inspirando brasa viva. Sai porta à fora, me apoiando nas paredes. Pelas longas janelas, vi ao longe crianças e seus pais brincando lá fora. Pessoas que não tinham noção do que acontecia ali. Pensei em gritar, mas sequer conseguia falar.

Seguia tocando a parede até ver uma porta, com um aviso de ser sempre mantida trancada. Era uma daquelas grandes e grossas portas de madeira, com trinco e estrutura de ferro. Apenas joguei o peso do meu corpo e ela se abriu. Ao pisar no chão, senti uma textura diferente, pegajosa, como se fosse piche. Meus pés ficavam pesados como chumbo.

Do outro lado, um outro monge me amparou e disse:

– Você está querendo sair? Mas que pena, tudo o que você conseguiu foi se melar ainda mais no gel a base de cianeto. Agora sua pele vai assimilar ainda mais a substância. Quero ver por quanto tempo você vai ficar de pé.

Logo depois, minhas pernas demoravam para obedecer aos meus comandos. Estava ainda mais cambaleante. O monge, então, com um sorriso sádico, me encaminhou para outra porta, uma sala que mais lembrava uma biblioteca.

– Preciso falar para a minha família que os amo! Por favor, não me deixe morrer sem eu poder fazer isso! – supliquei quase que num sussurro.

Friamente, o monge me pôs sentado numa escrivaninha e colocou alguns livros do ao meu lado, tinta e uma pena.

Peguei o livro e comecei a folheá-lo, procurando por uma página em branco para escrever a mensagem. Ele era muito bem trabalhado, com capa de couro, com várias gravuras bem desenhadas, verdadeiras obras de arte retratando o suplício dos mártires das mais diversas religiões. As bordas as páginas eram douradas e o papel macio como seda. Não pude deixar de perceber algumas anotações no canto das folhas, que diziam, dentre outras coisas:

“Carpe diem”

“Socorro!”

“Eles são todos uns monstros!”


Naquele momento, percebi que teria que deixar a minha mensagem ali, em qualquer lugar mesmo. Provavelmente, esse era o ritual deles. Não haveria folha em branco. Os cantos das páginas, cheio dessas mensagens eram o testemunho daqueles que ali pereceram.

Ouvi um barulho. O monge havia se levantado. Ele estava de pé, prestes a fechar a porta e me disse:

– A vida é um sopro – e a fechou abruptamente, fazendo um barulho que fez meu corpo todo estremecer.

Antes de perder a consciência, percebi que havia gravado na ombreira da porta: “MEMENTO MORI”.
Manassés Abreu
Enviado por Manassés Abreu em 03/09/2020
Código do texto: T7053783
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