Sede de Milagres
Crer no simbolismo precioso do fogo fazia com que Adriano conduzisse sua montaria para mais perto da fogueira, mais próximo do que estavam todos aqueles convocados de diferentes partes de Agnon para testemunhar o expurgo que apenas aquela natureza incandescente era capaz de proporcionar.
Junto ao povo, estavam representantes da coroa e do clero, incluindo sua majestade, o rei, e os inquisidores, todos reunidos na praça central, sob os auspícios da catedral de São Magno, fincada no ponto mais alto da cidade, e das estrelas que brilhavam cada vez mais intensamente conforme a noite se consolidava sobre eles. Em tempos não muito distantes, havia alegria naquele lugar. Gidão, o bardo, animava tanto plebeus quanto nobres com suas cantigas bem rimadas e histórias encantadoras sobre valentia e honra. Era o poeta de Agnon, como assim o chamavam.
Entretanto, no momento em que o cavaleiro assistia às chamas crepitarem como asas ansiosas pelo voo, a melodia ouvida não era mais a de um alaúde dedilhado com maestria. Agora, a madeira envolvida era outra, e o som propagado era o estalar das chamas misturando-se aos gritos do pobre homem durante aquele espetáculo purificador que assoprava uma brisa quente nas faces resignadas da plateia.
O fogo parecia querer alcançar o céu, e, alimentado pela lenha e pela carne herética, era de se esperar que realmente o alcançasse, o cume de uma fúria que tinha começado meses antes, com o bardo chegando à Vila Santuário e contando que tinha sido visitado por uma figura encapuzada. De acordo com o relato, Gidão passava a noite na floresta, preparando-se para seguir viagem no dia seguinte, quando o monge branco apareceu portando um cálice que dizia conter a bebida da vida.
No início, não parecia ser nada além da lorota de um bêbado, mas acabou tomando contornos mais perigosos.
Gidão voltava frequentemente à floresta, dizendo que tinha provado da bebida maravilhosa e atestado que ela realmente era mágica. Um presente dos céus. Ele estava enlouquecido, neurótico. As canções que entoava já não eram mais obras de puro lirismo, mas intensas tentativas de convencimento, cuja convicção com que eram proferidas começou a levar muitos da cidade e de povoados vizinhos a se embrenharem por entre as árvores à procura de monges e cálices.
A situação chegou ao ponto de Gidão ser cercado na praça, o alaúde tomado e chutado em vários pedaços por homens e mulheres preocupados com seus familiares arriscando-se na mata por darem ouvidos a uma fábula. Então, a Igreja precisou intervir. O bardo foi preso e o Tribunal do Santo Ofício convocado para averiguar a história.
O poeta, por outro lado, não se deixava intimidar. Ele permanecia irredutível, mesmo nos tormentos do cárcere, e ninguém em todo o reino admitia ser o monge branco. Na floresta, os únicos vestígios humanos eram das pessoas que por lá rondavam, embevecidas por uma história que estava ficando fora de controle.
Com Gidão confessando acreditar piamente que a estranha bebida oferecida na floresta era ainda melhor que o pão e o vinho presentes no altar em cada Santa Celebração Eucarística, o tribunal chegou à sentença de heresia, e o condenado entregue às forças seculares para as penas devidas.
Em nome da fé e da ordem pública, a condenação na fogueira foi decretada, e proibida qualquer menção a monges misteriosos e objetos mágicos, embora dificilmente se conseguisse extirpar completamente a história de mentes curiosas e inquietas, como a do jovem cavaleiro acompanhando a execução.
Imerso na luz proveniente da pira, ele imaginava qual seria seu limite, até que ponto poderia se aproximar, incluir-se naquela purificação. “O fogo celestial só deixa o que é verdadeiro”, pensou consigo mesmo. Mas não era exatamente fogo celestial que ali queimava, e ele não sabia se valia a pena mordiscar a própria carne com as chamas que observava.
A solução para sua perturbação era outra e envolvia os portões da cidade, para onde ele direcionou seu olhar após desviá-lo do centro da praça, portões que atravessaria em breve, em busca dos fundamentos daquele caso, em busca de desvendar a verdade sobre a suposta aparição do Santo Graal.
No dia da partida, o cavaleiro preferiu não encarar os muros uma última vez. Afinal, conhecia bem as grossas paredes de pedra que circundavam a cidadezinha que crescia a partir da catedral de São Magno, sendo por isso chamada de Vila Santuário; além disso, era melhor não dar tempo de cultivar possíveis arrependimentos, embora achasse difícil voltar atrás no que queria.
O plano inicial era se afastar e rondar ao máximo o interior e os arredores da floresta na qual o bardo supostamente havia se encontrado com o monge branco. Não sabia se o bispo compartilhava de suas convicções – principalmente considerando que nada de substancial havia sido encontrado durante as investigações do Santo Ofício –, mas Dom Giancarlo havia dado-lhe uma oportunidade de ir mais fundo na história, certamente por conhecê-lo desde que era um simples pajem e entender que, como cavaleiro, todo o ocorrido mexia com ele de uma maneira especial.
Ao completar quatorze anos, Adriano havia se tornado um escudeiro e designado a um nobre cavaleiro, chamado Maximiliano, que deveria ensinar-lhe as artes da cavalaria e da honra, mas o período de convivência e aprendizado havia sido curto, com o mestre juntando-se a um grupo de outros cavaleiros e com eles partindo para desbravar a Terra Santa.
Envolvendo em maior ou menor medida inspirações virtuosas ou ambições mais mundanas, eram muitas as motivações que levavam ao oriente homens possuidores de fé e espírito guerreiro, como proteger peregrinos, expulsar infiéis, redimir-se através do martírio, procurar por riquezas e, por fim, regressar com relíquias valiosas. Uma em especial permeava o imaginário dos habitantes de Agnon e dos reinos vizinhos: o Santo Graal, o cálice presente na Santa Ceia.
Não se sabia exatamente a origem da lenda, mas contava-se que o estimado objeto ainda se encontrava na terra em que Cristo havia pisado – ou em algum lugar próximo a ela – e era capaz de conceder vida eterna a quem bebesse de seu conteúdo. Sendo ou não verdade, muitos se aventuravam em busca dele, o que não foi diferente com alguns cavaleiros da Ordem do Cordeiro, incluindo o mestre de Adriano. Embora a motivação, na época, fosse oficialmente lutar contra os sarracenos, o escudeiro era grandinho o suficiente para ouvir e entender o que aqueles homens de armas acreditavam poder encontrar pelo caminho.
Com a nova e inusitada história do bardo, as lembranças vieram à tona. Haviam-se passado aproximadamente dez anos desde a partida dos cavaleiros, e eles já estavam dados como mortos, mas tudo o que havia sido dito sobre o cálice havia acendido em Adriano a esperança de pelo menos entender o que tinha se passado, apesar de ele admitir que suas chances fossem pequenas.
O cavaleiro tinha ficado resguardado durante toda a polêmica do bardo, ciente do potencial que tudo aquilo envolvia. Após acompanhar atentamente o processo de investigação e julgamento, ele prestou uma reverência diante de seu senhor, o bispo de Agnon, a quem prestava seus serviços, e rogou por uma oportunidade de ir pessoalmente até os limites do reino – e um pouco mais além – averiguar se tudo aquilo tinha alguma razão de ser, se os cavaleiros desaparecidos haviam retornado ou se sinais do que tinha acontecido com eles haviam sido levados para aquelas paragens pelos ventos da providência.
– Também seduzido pelas fábulas, meu jovem? – Dom Giancarlo levantou os olhos das Sagradas Escrituras e olhou para ele. – Pensa em sumir também atrás de alguma coisa lá fora? Saiba que a sede por prodígios pode ser enganadora. Pode fazê-lo beber veneno.
– Minha sede é pela verdade, meu senhor – respondeu Adriano, obtendo a autorização para sair, contanto que investigasse em segredo para não levantar suspeitas ou causar mais perturbações.
No caminho, a conversa ainda ressoava em sua mente.
– Sede pela verdade – ele repetiu em voz alta, apesar de ninguém poder ouvi-lo, ninguém além de Leonino, um cavalo ofegante ao final de um dia exaustivo de viagem.
O cavaleiro virou à direita e, adentrando por entre arbustos, seguiu por uma trilha que o levou a um riacho, cujas águas límpidas refletiram um belo cavalo castanho-amarelado com um preto intenso nas patas, crina e cauda quando o animal se aproximou das margens para se refrescar.
Adriano desmontou, amarrou as rédeas em um galho que brotava de um tronco seco, mas firme, e se pôs a procurar por um lugar para acampar. No entanto, uma faísca brilhante sobressaindo-se no crepúsculo como uma estrela na terra acabou sendo bem mais atraente do que toda a vista que as redondezas ofereciam.
Ele deixou Leonino para trás, dando passos mansos sobre o cascalho, e, à medida que se aproximava do ponto já ocupado, sentia cada vez mais o coração martelar no peito revestido pela túnica com a cruz negra sobre um fundo amarelo – a insígnia da Ordem do Cordeiro, a mesma insígnia presente na capa que envolvia a pessoa sentada à fogueira.
Uma das mãos de Adriano foi para a arma em sua cintura e a outra se ergueu, como se pretendesse tocar no ombro da misteriosa figura. Provavelmente por ouvir os pés chegando mais perto, a pessoa se levantou e se virou para o cavaleiro. Era um homem mais velho, mas não se parecia em nada com alguém da nobreza ou da cavalaria. Tinha a roupa surrada sob a capa e uma postura curvada, resignada.
– Piedade, senhor – disse, olhando para baixo e fazendo Adriano perceber que ainda segurava o cabo da espada.
– Não... Não tenha medo. – O cavaleiro se aprumou de forma mais amistosa. – Estou apenas surpreso. – Apontou para a capa do outro homem.
– Isto? Não roubei, senhor. Nem isto, nem nada. Foi uma doação.
– De quem?
– Não o conheço. Era um humilde ancião que encontrei em um vilarejo próximo daqui. Quando falei para ele que sou um peregrino e estava em viagem, ele logo ofereceu esse manto para esquentar minhas noites e uma cota de malha que vendi no vilarejo mesmo.
– Ele falou como tinha conseguido essas coisas?
– Ele apenas falou que conseguira com um cavaleiro que havia transcendido o mundo material e que tentava fazer o mesmo. Nada mais.
– Não se lembra do nome do cavaleiro?
– Não, senhor. Mas posso apontar testemunhas do que falo. Talvez saibam mais do que eu.
– Agradeceria se assim o fizesse.
– A propósito, meu nome é Conrado. Sente-se, por favor.
Adriano pediu licença para ir buscar o cavalo para mais perto e, com Leonino à vista, sentou-se em um tronco caído, aproveitando o calor da fogueira.
– Eu me chamo Adriano e venho de Vila Santuário.
– Ah, sim. É minha próxima parada no meu trajeto para a igreja de São Bento.
– Soube o que aconteceu com o bardo? Aquele que andava por todo o reino tocando alaúde e contando histórias.
O peregrino pareceu tentar puxar alguma coisa da memória.
– Não conheço – disse. – Não sou de Agnon. Venho do condado de Cléssio. As canções desse bardo são belas?
– Sim, mas as últimas causaram alguma comoção, não do tipo desejável.
– Não soube de nada. – Conrado ofereceu um pedaço de queijo para o cavaleiro, que gentilmente recusou, preferindo os próprios suprimentos.
– Você disse que tem testemunhas do que falou. Sobre o ancião.
– Sim, tenho. Eu vendi a cota de malha para um ferreiro do povoado. Aparentemente ele tem comprado outras peças de metal como essa. O nome dele é Gonçalo.
– Gonçalo, o ferreiro. – Adriano observou o fogo. Algo estava sendo forjado a sua frente, algo a qual se agarrar.
Embora tivesse passado a noite com o peregrino, o cavaleiro não conseguiu nenhuma outra informação realmente relevante, mas o que tinha era um ótimo começo. Pouco antes do amanhecer, despediu-se de Conrado, recomendando que evitasse exibir a capa e só a usasse à noite, para se aquecer, e continuou a jornada, agora com um destino mais claro em mente.
O vilarejo mais próximo – e que correspondia às descrições do peregrino – era Marco da Cruz. Caso se apressasse, Adriano possivelmente chegaria antes do final do dia. Ele almoçou debaixo de uma azinheira frondosa, servindo-se dos pães e do leite que carregava, e seguiu com o cavalo antes que a sonolência vespertina o agarrasse.
Não tardou a atravessar a entrada e passear alvejado pelo olhar reverente dos habitantes. Adriano, entretanto, não estava muito disposto a interações sociais, observando atentamente as casinhas de pedra e telhado de madeira até encontrar uma com a porta da frente mais larga, de onde saiam sons ruidosos de marteladas como se metal fosse mastigado dentro daquela boca aberta.
O cavaleiro desmontou e entrou, transitando entre o calor do exterior e o do interior do recinto. Logo reparou no homem alto e careca que moldava o que parecia ser a cabeça de um machado, atingindo com um martelo a peça incandescente sobre a bigorna. Atrás dele, dois aprendizes magricelas alimentavam as forjas com carvão.
– Ferraduras para o cavalo, senhor? – O ferreiro mergulhou a peça no tanque com água e levantou o olhar para ver melhor a quem pertencia o cavalo que pisoteava o calçamento no lado de fora.
– Não é necessário, obrigado... Gonçalo, não é? Outra coisa me traz aqui.
O ferreiro tirou a peça da água e a avaliou, entregando-a a um aprendiz. Em seguida, passou a limpar as mãos suadas em um pano enquanto reparava no capacete do cavaleiro, bem como na malha brilhante que protegia os braços, na túnica amarela com uma cruz negra no peito e na alça que prendia o escudo às costas. No momento, o que Gonçalo podia dizer com certeza era que não se tratava de alguém que ele estivesse acostumado a ver em sua ferraria.
– O nome deste humilde artesão chegou à nobre Ordem do Cordeiro?
– A mim, pelo menos, chegou, e tenho interesse no que tem chegado até você. Ontem encontrei um peregrino, chamado Conrado, vindo de Cléssio, que afirmou ter vendido uma cota de malha para você.
– Sim. Costumo comprar coisas de metal para derreter. Muitas vezes, viajantes trazem espólios retirados de campos de batalha distantes. Mas nem sempre sei a procedência exata. As pessoas que me venderam esses dias pareciam fora de suspeita. Não sabia que eram roubadas de um cavaleiro de Agnon.
– Não... A questão não é essa. Eu só queria conversar com quem as vendeu a você. O peregrino falou que um ancião o havia presenteado. Sabe quem é?
– Bom, além do peregrino, quem me procurou para vender um capacete e ferraduras foi Casimiro, um velho conhecido do povo de Marco da Cruz. Ele falou que um cavaleiro estava se desfazendo dos bens materiais para seguir um caminho de iluminação.
– Sabe se o cavaleiro tinha uma roupa igual a minha, ou um escudo como este? – Adriano mostrou o próprio escudo.
– Não sei, mas o senhor pode perguntar diretamente a Casimiro. Não deve ser difícil encontrá-lo. Ele é um pedinte e vive estendendo a mão pelas redondezas, à espera de alguma esmola – disse Gonçalo, voltando ao trabalho após o cavaleiro agradecer pela breve conversa e sair.
Parecendo ter sido esculpido em uma única rocha, o visual humilde do conglomerado de casinhas cortado por ruas estreitas podia não corresponder ao tamanho do desafio de encontrar o pedinte ao qual o ferreiro se referia. Adriano chegou a perguntar a transeuntes se conheciam um esmoler chamado Casimiro e se o tinham visto por perto, rogando aos céus para que conseguisse respostas positivas. Alguns falaram algo sobre uma capela de campanário alto, e nem foi preciso que apontassem, uma vez que a torre de pedra com um sino no topo era perfeitamente visível sobre os telhados de Marco da Cruz.
Com seus cascos estalando no calçamento, Leonino percorreu o labirinto de ruelas até que o cavaleiro avistasse a igreja e, ficando bem à frente dela, encontrasse o homem maltrapilho no canto da escadaria. Encolhido e com os trapos sujos, ele mais parecia um pedregulho esquecido sobre os degraus.
Casimiro estendeu a mão sob a sombra do cavalo; na ausência de qualquer som ou moedas, levantou o olhar.
– Saudações – disse Adriano. – Talvez você possa me ajudar.
O pedinte encarou as palavras com alguma descrença inicial.
– Eu, senhor? Pobre de mim. O que este estrupício teria a oferecer a um nobre cavaleiro?
– Quem sabe tenha sobrado alguma coisa para mim, como espada ou escudo, considerando que você ofereceu uma bela capa a um peregrino e vendeu um capacete ao ferreiro. Pelo visto, você também é um cavaleiro, não?
– Apenas presentes, senhor. Dadas a mim por mãos caridosas. O que vendi serviu para meu sustento, e resolvi retribuir a caridade com que fui agraciado sendo caridoso também. Agir assim faz do homem um merecedor de dádivas, torna-o mais próximo do que é divino.
– De onde venho, homens e mulheres se animaram com certa história e tentaram buscar por ela, mas isso só causou perturbações na comunidade. – Adriano olhou para a igreja. – Há caminhos que pensamos nos levar para o divino, mas só nos afastam do que é justo e verdadeiro.
Casimiro recebeu aquilo com um instante de silêncio.
– A vida eterna parece-me bem justa, e o que vi é verdadeiro.
O cavaleiro abaixou o olhar novamente.
– Sabe do que estou falando? Sabe da história sobre um monge com um cálice?
– Digamos que eu saiba e também veja que você quer saber bem mais.
– Estamos nos entendendo. – Adriano olhou para os lados e desmontou. – Carrego alguma comida. O suficiente para sustentar uma boa conversa. Em particular, devo acrescentar. Você vive nessa escadaria?
– Não, senhor. Há um lugar na floresta onde costumo me abrigar.
– Você vai ser meu anfitrião – disse o cavaleiro, convidando a si mesmo para o abrigo do pedinte. Onde quer que fosse, parecia ser o lugar certo para procurar por uma pista da origem dos pertences de cavaleiro. – Consegue se levantar?
– Sim. – Casimiro se ergueu; não sem aparentar alguma dificuldade, entretanto. – Então, o quão longe está disposto a ir nessa conversa? – perguntou ao cavaleiro, este se contendo para não expressar a própria dúvida sobre a distância que podiam percorrer, dado o andar manco do companheiro.
– O quão longe puder ir, se não for pedir demais. – Adriano avaliou o homem mais velho com quem saia do vilarejo.
– Não se preocupe comigo. Coisas da idade e da pobreza, mas creio que em breve isso estará resolvido.
– Resolver também a idade? Como seria possível?
Um sorriso se abriu na barba branca.
– Você perguntou se conheço a história do monge, mas a verdadeira questão não é sobre conhecer, não é? É sobre acreditar. Você acredita?
Adriano ficou pensativo. A preocupação era tanto na saída em busca da comprovação ou não da história da aparição que tinha negligenciado a viagem para dentro, rumo ao próprio interior, e sequer conseguia imaginar precisamente a reação que teria ao que descobrisse. Ainda estava no esforço de visualizar o que fazer no final da jornada, quando percebeu que aquela reflexão tinha levado um bom tempo. O sol já tinha se posto, e o resto de iluminação diurna começava a escassear.
– Estamos longe? – perguntou o cavaleiro, observando a floresta se impondo ao redor, as árvores bloqueando a visão de Marco da Cruz atrás deles.
– Não muito.
– Venha. Suba. – Adriano indicou o próprio cavalo.
– Não, senhor... Não sou digno.
– Estou pedindo. Vamos chegar mais rápido se você montar.
Mesmo com certa relutância, Casimiro se aproximou de Leonino e subiu com ajuda do cavaleiro.
– Vá indicando o caminho. Eu vou conduzindo as rédeas a pé. Não se preocupe, ele é dócil.
Entretanto, mesmo a referida docilidade não impediu que a falta de trato do novo ocupante da sela se tornasse incômoda para o animal. Casimiro tentou se segurar, agarrando-se ao pescoço do cavalo, o assustando e o fazendo empinar. O movimento brusco derrubou Adriano na relva com um golpe rápido e forte o suficiente para que ele perdesse o controle da situação e, ao se recompor minimamente, pouco lhe restasse a não ser ver Leonino sumir aos galopes mata adentro.
Por mais que Adriano não tivesse perdido tempo, logo se dispondo a ir correndo atrás do cavalo, gritando pelo nome dele, os esforços louváveis do esbelto rapaz não estavam encurtando a distância entre ele e a montaria. O barulho da cavalgada ficava mais distante conforme o cavaleiro avançava pela floresta, a capa esvoaçando com o vento e dúvidas ribombando dentro do capacete. Teria sido enganado? Não tendo sido um roubo, o cavalo e o velho estariam machucados? As respostas estariam em algum lugar daquela penumbra crepuscular que crescia ao redor.
Ele parou e se ajoelhou no chão na tentativa de acalmar o corpo e esclarecer a mente para ver qual deveria ser o próximo passo. De repente, abriu os olhos e levantou a cabeça, como se a intuição se adiantasse aos sentidos e denunciasse a sombra misteriosa aproximando-se silenciosamente. Aquilo estava longe de parecer um cavalo baio ou um velho maltrapilho. Tratava-se de uma figura fantasmagórica, cujas roupas alvas pareciam quase translúcidas com os raios de luar que conseguiam entrar na floresta.
Prontamente, Adriano se ergueu, desembainhou a espada e apontou para o peito do estranho, percebendo, logo em seguida, estar apontando para um cálice de argila que o encapuzado segurava à altura do coração. O cavaleiro petrificou onde estava, como se o ar tivesse lhe retirado todo o calor do corpo, deixando apenas uma casca congelada no lugar.
Ele esticou mais o braço com a arma, mas não necessariamente em tom de ameaça. Estava mais para uma tentativa inconsciente de alcançar o que estava adiante e verificar se era real, se era tão sólido quanto parecia. O monge branco estava a poucos metros, sem demonstrar a menor intimidação com a lâmina apontada para ele.
– Fique parado! – gritou Adriano, perguntando-se se a outra pessoa o ouvia e se o obedeceria. A natureza daquela presença era incerta.
– Paz, jovem cavaleiro – respondeu o portador do cálice com uma voz igualmente masculina e contundente. – Pode largar a espada. Não há perigo de morte; há oferecimento de vida. – O monge levantou um pouco mais o objeto que trazia.
– O Santo Graal!
A reação pareceu agradar ao encapuzado.
– Vejo que não precisamos de mais apresentações. Sabe o que tenho a oferecer.
– Sei das dores e da loucura que isso provocou. – Adriano ficou firme. – Em nome da Santa Madre Igreja e de sua majestade, Dom Eliseu II, rei de Agnon, determino que me entregue esse cálice.
– Igreja? Rei? Quem é mesmo o responsável por dores e loucuras?
Mesmo não podendo ver o rosto do monge, Adriano sabia que um sorrisinho de deboche brilhava em meio a toda aquela frieza. Aquecido pela raiva, conseguiu se mexer, resolvendo se expressar de outra forma além das palavras. Ele investiu com a arma sobre o misterioso homem, que se esquivou com extrema desenvoltura, a ponto de não derramar uma única gota do recipiente, qualquer que fosse o seu conteúdo.
– Há maneiras melhores de se conseguir o que quer – disse o monge, mal parecendo tocar o chão ao se desviar dos golpes com os quais Adriano cortava o interior da floresta.
O cavaleiro acabou atingindo uma árvore, cravando a lâmina e tendo um pouco de dificuldade para soltar. Entretanto, tudo indicava que não precisava ter pressa. O oponente continuava ao redor, não aparentando qualquer interesse em revidar.
– Onde estão seus modos, cavaleiro? Podia simplesmente pedir, e eu o entregaria.
– Tenho que dizer que não apenas o cálice tenha que ir sob minha custódia. – Adriano soltou a espada do tronco, deixando um corte fino para trás. – Por ensinar heresias e corromper o bardo, você precisa ser preso e levado ao Santo Ofício para interrogatório e julgamento. – Ele desferiu mais um golpe, mas, dessa vez, não houve desvio. Ao invés disso, o monge segurou a lâmina como se ela fosse um inofensivo galho.
– Não serei eu o julgado.
O cavaleiro soltou o cabo quando a espada foi puxada com uma inesperada força. A arma foi jogada para cima, dando um giro, e voltou para o dono em um choque cortante no abdome. Adriano se ajoelhou diante do hábito branco e, desse modo, pode ver com mais clareza o sorriso se abrindo dentro do capuz antes de tudo escurecer completamente.
Com a mesma facilidade com que o corte da espada o levou ao nada, uma estranha sensação o trouxe de volta. Pouco se podia apreender de sua essência em um primeiro momento, além de seu sabor doce e renovador. Sabor de vinho.
Adriano abriu os olhos. Embora o ambiente fosse precariamente iluminado, estava convicto sobre qual era a bebida que o monge derramava sobre ele, o líquido acumulando-se no fundo do grande barril no qual o cavaleiro estava sentado.
O jovem se voltou para a abertura circular acima e viu a cabeça encapuzada e o cálice do qual a bebida vertia, ambos destacando-se contra o teto iluminado por tochas. De maneira desajeitada, o cavaleiro mergulhou as mãos no fundo para se apoiar e se levantar, segurando-se na beirada do casco bojudo.
– Onde estou? – O cavaleiro perscrutou a sala cheia de outros barris. – O que está fazendo comigo? – Ele reparou no próprio corpo nu.
– Não consegue perceber? – perguntou o monge. – Estou salvando você.
Adriano tocou na barriga molhada e confirmou a ausência de corte. Nem uma cicatriz havia restado.
– Aquilo foi real?
– Sim, muito real. Mas agora está a salvo.
– Foi você quem me feriu. – O cavaleiro cambaleou um pouco, como se o vinho estivesse penetrando a pele e o embriagando. – Eu devia agradecer agora?
– Você estava me atacando com a espada. Eu estava apenas me defendendo. Além do mais, você precisava testemunhar o poder da vida.
– O cálice – balbuciou Adriano. Não estava apenas curado e salvo da morte. Parecia melhor do que antes, de um jeito que não sabia explicar. No momento, outra pergunta lhe ocorreu, além de como aquilo era possível: – Por quê?
– Por que o trouxe aqui e o salvei? – O monge retirou o capuz. – Porque a vida deve ser compartilhada.
Seja por ter desconfiado desde o início, seja pelo entorpecimento provocado pela bebida, o fato é que o cavaleiro não esboçou qualquer reação de surpresa ao ver o antigo mestre se revelar.
– Faz tempo que não nos vemos. Sei que tem muitas perguntas, mas creio que seja melhor se trocar primeiro, não acha?
Por pouco, Adriano não tinha esquecido a própria nudez regada a vinho.
– Minhas roupas.
– Estão logo ali. – Maximiliano apontou para o capacete, escudo e todo o resto do traje em cima de um dos barris no canto. – Deve querer também tomar um banho. Com água, dessa vez. Há água pura nesse barril mais próximo. Sinta-se à vontade. Vou esperá-lo lá fora.
Depois que o monge saiu, Adriano ficou feliz por conseguir sair sozinho do recipiente de madeira, tomar um banho de verdade e se vestir. Sentindo-se mais apresentável, ele passou pela porta e encontrou o antigo mestre no início de um corredor que se estendia até onde a vista alcançava.
– Aqui está sua espada. – Maximiliano estendeu o braço com a arma enquanto segurava o cálice com a outra mão.
– Vou ter que implorar por ela? – Adriano ficou hesitante. – Vou ter que merecê-la?
– Creio que já a merece. Afinal, vejo que se tornou um bom cavaleiro.
As palavras fizeram o antigo escudeiro reavaliar a própria trajetória desde que era apenas um pajem, passando pelo sumiço de Maximiliano, pela procura por um novo mestre cavaleiro e pela sua consagração na catedral de São Magno, com o lorde de Vila Santuário repousando a espada em seu ombro durante a cerimônia na qual se tornara definitivamente um membro da Ordem do Cordeiro. E o retrospecto o fez perceber que sua vida estava ficando ofuscada, pálida e distante, como se nada anterior ao batismo de vinho que acabara de receber fizesse sentido.
– O que quer de mim?
– O que quero de você? O mesmo que você quer de si mesmo. Que é o que homens como nós queremos e buscamos: o melhor. E posso ajudá-lo a conseguir.
– Homens como nós – repetiu Adriano. – E os outros cavaleiros? – perguntou, olhando em volta. – Onde estão?
– Infelizmente, apenas eu sobrevivi. A jornada à Terra Santa não é fácil, e muitas são os que sucumbem nas batalhas contra os infiéis, mas eu tive no que me agarrar. Quando achei que estava perdido, encontrei um tesouro.
– Está falando do Santo Graal?
– Isso mesmo. Você saiu de Vila Santuário em busca dele, não foi? Queria ver com os próprios olhos.
– Eu queria respostas. Com as investigações do Santo Ofício sobre o que o bardo falava não me soando satisfatórias, tive que sair para conferir por conta própria.
– Magnífica sua coragem, rapaz. Mas até onde está disposto a ir para conseguir essas respostas?
– Até onde for necessário.
Ao ouvir aquilo, Maximiliano apenas virou as costas para aquele que tinha sido seu pupilo e começou a se afastar pelo corredor. Sem precisar de nenhum pedido ou ordem mais clara para segui-lo, o cavaleiro foi ao encalço do monge de roupas alvas.
– Como o encontrou? – Adriano perguntou ao outro homem, os dois se deslocando pelo corredor que aparentava ter sido esculpido diretamente na terra, como um túnel.
– Depois de uma batalha sangrenta contra um grupo de sarracenos que tinha nos emboscado, vaguei sozinho pela floresta, perdido, até tombar. Acordei na cabana de uma bruxa. Ela tinha cuidado dos meus ferimentos com seus exímios conhecimentos de unguentos e ervas, e, como você pode imaginar, também se valendo de artes místicas.
– Ela estava com o cálice?
– Estava. Ela o tinha encontrado em uma gruta há pouco tempo e o usava em um culto pagão. Por mais que eu estivesse agradecido pela ajuda, não podia atender ao pedido dela para me juntar àquele sacrilégio, por isso tive que matá-la e roubar o cálice. Você me compreende, não é?
– Sim, sim... – disse o cavaleiro. Apesar da tendência em concordar com tudo o que ouvia, a curiosidade ainda o tornava capaz de fazer perguntas. – Por que não o mostrou logo ao reino e à Igreja? Por que não apareceu para todos?
– Receio que não estejam prontos. Eu me isolei aqui em retiro há poucos anos, preparando-me para mostrar a verdade quando fosse a hora. Enquanto isso, apareço para mentes mais abertas que possam me ajudar a preparar o caminho.
Os dois chegaram a uma escada esculpida na rocha e começaram a subir os degraus até uma abertura cuja tampa de pedra já estava arrastada para o lado, permitindo que eles subissem para um patamar escuro. Contudo, nenhuma escuridão parecia ser um empecilho para o guia da caminhada. Eles aproximaram-se de um par de portas de madeira; estando com as mãos ocupadas pelo cálice e pela espada, Maximiliano pediu que Adriano retirasse a trava para que atravessassem para a noite cada vez mais clara do outro lado.
O cavaleiro não sabia de onde haviam saído, mas, pela vista descortinada pela alvorada incipiente, podia dizer que estavam no alto de algum relevo. Sozinhos ali, Maximiliano ofereceu a espada.
– Ninguém mais vai se machucar? – perguntou o antigo escudeiro.
– Não enquanto tivermos este tesouro. Por isso preciso que fique com ela e seja o nosso guarda. Você queria respostas e as conseguiu. Agora, eu proponho que me ajude a proteger este lugar, esta relíquia. Ultimamente, tudo tem ficado particularmente vulnerável, especialmente durante o dia, e preciso que alguém seja nosso guardião e nos proteja da manhã ao anoitecer. O destino o trouxe até mim. Você viu o que as pessoas fazem ao que não entendem e, como um guerreiro, deve conseguir manter intrusos afastados até que chegue a hora.
Adriano ficou em silêncio, o rosto impassível, mas o monge sabia que estava se fazendo compreender perfeitamente.
– Beba – ofereceu o cálice.
O objeto de argila foi prontamente tomado e entornado sobre a boca de um jovem inebriado pelo aroma e pelo sabor do precioso líquido. Maximiliano pegou a relíquia antes que o cavaleiro a derrubasse enquanto cambaleava e se ajoelhava no chão. O processo que tinha se iniciado com o banho de vinho debaixo da terra estava se completando, e o iniciado na devoção à bebida da vida recebeu um toque de espada no ombro como um rito final.
– Eu o nomeio guardião do dia – disse o monge. – Levante-se e tome a espada.
Adriano se ergueu e pegou a arma, pronto para servir.
– Por hoje, fique aqui fora protegendo o monte. À noite, darei instruções de sua próxima tarefa. – Maximiliano se virou e, levando o cálice consigo, sumiu através da entrada. Sozinho após as portas se fecharem atrás dele, Adriano mirou o nascer do sol no horizonte, a luz dando início ao novo dia e à nova vida do cavaleiro.
Quando avistou o amarelo reluzindo sob o sol no sopé da encosta, Adriano não teve dúvidas do que fazer. Tendo começado a ronda pelo monte há menos de uma hora, o cavaleiro se encontrava no alto de uma ladeira muito íngreme, uma descida nada amistosa, mas não havia tempo para procurar por um caminho mais seguro. Ele poderia perder de vista o intruso que se esgueirava por entre as folhagens lá embaixo e não podia se dar ao luxo de falhar em sua missão de proteger a fonte da bebida maravilhosa.
Como um soldado devotado que era, atirou-se sem praticamente nada para se segurar, as botas arrastando-se pela encosta até que ele alcançasse o corpo de grande porte, mas acabou escorregando pela traseira e levando um soco duplo no peito.
Após o impacto, o cavaleiro realmente ficou em dúvida se estaria inteiro ou não e se surpreendeu quando conseguiu abrir os olhos e levantar um braço, não sabendo por quanto tempo estivera deitado no chão. O vinho que o curara do ferimento de espada ainda serviria para o choque que tinha acabado de levar? Certamente a bebida ainda o fortalecia, mas claramente havia uma mudança. A cabeça – mais do que seus ossos ou seus pulmões – tinha sido afetada de um jeito que ele não sabia decidir em um primeiro momento se era bom ou ruim.
– O senhor está bem?
Adriano desviou o olhar e viu Casimiro se aproximando.
– Estou – disse o cavaleiro, sendo ajudado a se levantar. Com o corpo dolorido, parecia que ele tinha caído do céu, embora não fosse o céu o ponto de partida. Possuía lembranças confusas sobre cavernas, barris e assistir ao amanhecer no topo da colina.
– Seu cavalo é bem forte. Parecia que eu ia morrer com ele em disparada comigo pela floresta – disse o velho, podendo ostentar arranhões na pele e rasgos novos na roupa como provas de uma noite particularmente difícil. – Pelo menos ele acabou cansando e pude descer.
Adriano viu o cavalo pastando não muito longe. Não estava irritado com Leonino, afinal, tinha sido ele a dar o susto no animal, pulando feito um louco em cima dele. No fundo, admitia ter merecido o coice e, de certo modo, sentia que devia agradecer pela agressão.
– Eu estava colhendo frutas quando ouvi o coice. O que houve?
– Eu não o reconheci lá de cima e o ataquei. Culpa minha. – O cavaleiro mancou até a montaria, cada passo como que sacolejando ossos frouxos dentro dele. Mais calmo, o cavalo se deixou ser puxado pelas rédeas.
– Aonde o senhor vai?
– Tenho assuntos sérios a tratar. – Adriano olhou para o alto do monte. – Tenho uma missão a cumprir.
O velho pareceu entender do que se tratava.
– Quer ajuda para andar? – perguntou, por mais que ele mesmo estivesse próximo a precisar de auxílio para ficar em pé.
– Posso me virar sozinho – o cavaleiro respondeu, sabendo a verdadeira intenção por trás daquele espírito prestativo. Ele ignorou o velho e procurou por uma subida.
O sol estava um pouco mais alto quando encontrou um caminho confortável para Leonino. Tendo montado com alguma dificuldade, Adriano conduzia o cavalo devagar, tomando cuidado com os sacolejos durante a caminhada para cima, embora as dores estivessem incomodando menos. Aparentemente, ainda usufruía dos resquícios do efeito curativo do vinho, mas torcia para que o poder da bebida tenha ficado em maior parte para trás, especialmente no que dizia respeito à mente. Ele preferia estar no controle dos próprios atos.
Ao chegar ao cume, viu que o monte era coroado por um grande rochedo que, ao se aproximar e sondar as intermediações com poucas árvores, ele percebeu ser, na verdade, uma construção muito antiga, cuja única entrada era o par de portas de madeira emoldurado lado a lado por duas colunas de pedra.
– Pensa em entrar? – Casimiro se aproximou enquanto o cavaleiro hesitava diante da entrada arqueada. – O cavalo poderia abri-las com um coice.
Nem um pouco surpreso por ter sido seguido, Adriano ignorou o comentário, tocou nas portas com as duas mãos e as empurrou. Por sorte, providência divina ou qualquer outro motivo, elas cederam e abriram passagem.
– Ele deve ter deixado aberto para eu entrar.
– Ele? – O velho arregalou os olhos. – Você o viu, não foi? Esteve com ele. Se ele abriu para você, deve ser um merecedor.
– Merecedor de quê? – A pergunta de Adriano ecoou pelas ruínas.
– Do cálice da vida! Do que mais? – Casimiro tomou a dianteira e entrou.
– Cuidado. – O cavaleiro acompanhou, puxando o cavalo para dentro. Era melhor tê-lo por perto para o caso de precisar de uma fuga rápida.
Estendendo-se à frente, havia um corredor ladeado por duas fileiras de colunas que desembocava em uma área mais ampla, em formato circular.
– Não me diga que é aqui que você mora – disse Adriano, perscrutando em volta. De um lado e de outro, o espaço entre as colunas e as paredes não oferecia muito além de pedras e sombras.
– Eu nunca tinha vindo aqui antes. As pessoas de Marco da Cruz evitam esse lugar. É um templo pagão.
Na sala circular, Adriano chegou à conclusão de que o lugar devia ter milhares de anos, e toda a estrutura parecia ainda se sustentar em pé apenas pelas raízes que serpenteavam por entre as pedras e pelas vistosas trepadeiras que preenchiam as paredes, enrolavam-se nas colunas em volta e subiam até o teto abobadado com uma abertura no centro. Curiosamente, o chão estava limpo, e o cavaleiro procurava por algum outro traço de ação humana quando o viu. Parecia que seu olhar havia sido atraído magicamente.
Em cima de uma pedra, estava o cálice de argila.
O cavaleiro deixou o cavalo no centro da sala e se aproximou com cuidado, como se o cálice pudesse se assustar e fugir. Nada acontecendo, esticou o braço para pegar o utensílio e o ergueu sob a luz que entrava pela abertura parcialmente coberta por folhas no centro da cúpula.
– É ele! – disse Casimiro. – Podemos beber?
Adriano deixou de examinar o exterior e baixou o objeto para conferir o interior. Estava totalmente seco. Nem uma gota de bebida era visível.
– Está vazio.
A admiração no rosto do homem maltrapilho se converteu em preocupação.
– Como faz? – Ele se aproximou. – Como faz para funcionar?
– Não faço ideia. Era para ter vinho aqui. Pelo menos foi o que me curou do corte.
– Corte?
– Sim. Houve uma batalha na floresta. – Adriano puxou da memória. Parecia que tinha sido uma vida atrás. – Eu me feri com a espada e o vinho me curou.
– Um corte – repetiu Casimiro quase inconscientemente.
O cavaleiro olhou ao redor, à procura, quem sabe, do orvalho da manhã nas folhas.
– Se pusermos água, talvez se transforme em vinho. – Com um olhar mais atento, ele percebeu tratar-se de uma mesma planta todas aquelas trepadeiras que pintavam de verde as paredes e o teto. A linda e vigorosa videira atraiu a atenção de Adriano tempo o bastante para que perdesse a espada. A arma foi puxada da bainha, o metal sendo a mais nova obsessão do velho.
– Sangue – ele falou. – Não água. É necessário um sacrifício para merecer a vida. Sangue para o cálice! – Casimiro estendeu o braço e encostou a lâmina no pulso. O olhar ensandecido deixava claro que realizaria o intento caso não fosse interrompido.
Com um golpe, Adriano tomou a arma e empurrou o pedinte para o canto. A força empregada não aparentava oferecer grandes riscos, mas o movimento um tanto instintivo acabou fazendo uma vítima: o cálice se espatifou no chão, o barulho tilintando pelo templo enquanto os pedaços rolavam pelo piso, alguns pisoteados sob os cascos de Leonino.
O cavaleiro se abaixou para tentar enxergar alguma possibilidade de reparação, e lamúrias soaram logo em seguida. No entanto, o choro não era pela quebra da relíquia. O verdadeiro motivo tinha a forma de cobras verdes enroscando-se pelo corpo do velho atado à coluna. Era como se Casimiro tivesse caído em uma armadilha formada pelos ramos que agora se mexiam vorazmente, deslizando pelas vestes até chegarem à pele. A videira estava viva, mas não o tipo de vida que se esperaria de uma planta.
Vencendo o torpor inicial, Adriano empunhou a espada e procurou por uma forma de salvar o outro homem. Não podia simplesmente desferir golpes no que estava vendo, uma vez que poderia acertar Casimiro. Chegando um pouco mais perto, verificou se dava para cortar a videira pela parte de trás da coluna, mas os ramos das paredes e das outras colunas também começaram a se mexer, esticando no ar as gavinhas penetrantes como agulhas.
Inquieto, Leonino começou a puxar as rédeas com que o dono o prendia junto de si com um aperto de ferro, os dois encurralados pelo cerco verde. Se não se mantivessem no centro da sala, cavalo e cavaleiro acabariam tendo o mesmo destino do pedinte – não muito diferentes de insetos presos em teias de aranha.
De repente, um arrastar seco soou mais alto que o farfalhar angustiante da folhagem ao redor. Algo se arrastava nas sombras; considerando o barulho, Adriano imaginou ser a abertura do túnel dando passagem para a figura encapuzada que fechou as portas do templo e se aproximou pelo corredor escuro.
– Vejo que se sente em casa o suficiente para trazer convidados. – O monge branco despontou das sombras do corredor e se postou na entrada sem aparentar qualquer preocupação com os ramos desprendendo-se alguns centímetros das rochas e flutuando ao redor como braços ávidos por uma presa.
– Por favor, salve este homem. A planta está machucando-o – Adriano suplicou, mas tudo o que conseguiu de Maximiliano foi a expressão de ligeira curiosidade com que o outrora cavaleiro de Agnon se aproximou da vítima e observou as gavinhas penetrando o corpo.
– Sabe, não acho que tenha tanto sangue aqui.
– Do que está falando?
– Ela está se alimentando. É assim que nascem os frutos. Veja. – Com um gesto, o monge indicou um ponto da videira logo acima de Casimiro, onde uma gota verde crescia, escurecendo para tons de roxo até se transformar completamente em um suculento cacho de uvas. – Nada mal, não? – disse, apanhando o fruto que parecia ser preenchido com o sangue retirado diretamente das veias do pedinte e o mostrando a Adriano.
– Isso não é natural! – Como se as uvas fossem feras prontas para atacá-lo, o cavaleiro tirou o escudo das costas e tomou uma postura defensiva, o cavalo raspando o piso com os cascos atrás dele. – Não é nada natural.
– Estranha a sua colocação, já que foi o sumo deste fruto que o salvou da morte. Você foi banhado no vinho e também o bebeu. – O monge olhou para os cacos no chão sem muito interesse. – Bom, não exatamente o sumo, mas uma mistura dele com vinho natural, o que faz com que fique em condições de receber meus comandos. Se, por acaso, alimentasse-se diretamente do fruto, aos poucos iria se tornar uma pessoa como eu – dizendo isso, ele levantou o cacho sobre o rosto voltado para cima e o engoliu rapidamente, de um jeito pouco humano, o que causou um arrepio em Adriano.
– É o fruto da árvore proibida – disse o cavaleiro com repugnância. – É o próprio pecado materializado.
– Definitivamente não era para estar falando isso. – Maximiliano o encarou. – Você recebeu grandes doses de uma vez. O banho, depois o generoso gole lá fora. Não era para estar hostil a mim. O que aconteceu?
– Dor – disse o antigo escudeiro. – A mortificação da carne pode libertar a mente. A penitência é esclarecedora.
– Penitência. Também já fui um fiel como você, garoto. Preso a métodos arcaicos. Mas é vivendo e aprendendo, não é? E, agora, posso viver muito. – O monge puxou Casimiro de dentro dos ramos e folhas, segurando-o diante de si e cravando os dentes no pescoço.
O ato tenebroso paralisou o cavaleiro, como se fosse o sangue dele a jorrar para a boca, escorrendo pelos lábios e maculando de rubro o hábito branco. Saciado, Maximiliano simplesmente jogou o pedinte para um canto qualquer, o corpo voltando a ser coberto pela vegetação, as folhas e os ramos dando sumiço ao rosto com uma derradeira expressão de dor e pânico estampada.
– O que você é?
– Alguém que pode oferecê-lo um grande destino.
– O mesmo destino que teve Casimiro? O mesmo que tiveram os cavaleiros que saíram com você? O que realmente aconteceu com eles?
– Morreram nas batalhas, como eu falei. Não foi uma mentira.
– E o cálice com a bruxa? Nunca houve Santo Graal algum, houve?
– Receio nunca ter encontrado a sonhada relíquia, mas a bruxa existiu. Nós nos apaixonamos e, juntos, criamos a videira; porém, houve um momento em que tive que sacrificá-la. A planta precisava ficar mais forte, e o sangue dela era necessário para o ritual.
– O culto pagão. Você não o combateu; uniu-se a ele.
– Você fala como se fosse algo ruim. Assim como ele me salvou, também pode salvar a muitos outros. Por isso trouxe a videira para as proximidades de Agnon. Para que outros como nós se unissem nesse propósito. Para buscarem o melhor da vida, as pessoas precisam ser inspiradas, como eram inspiradas pelas canções do bardo, pelas lendas de cálices e outras tesouros milagrosos. Foi isso o que o trouxe aqui, não pode negar. Você quer algo mais palpável, mais verdadeiro. Juntos, nós formaremos uma nova ordem, meu jovem. Começaremos aqui a criar um império. Atrairemos os mais ambiciosos e devotos, os mais sedentos por maravilhas, e, com eles, ramificaremos nossa vontade pelo mundo, sem clérigos ou reis para obedecer. Basta baixar a espada e começaremos. – Maximiliano estendeu a mão, esperando resposta durante um instante de silêncio.
Adriano abaixou o escudo e a espada, algum motivo mexendo suas pernas para perto de seu antigo mestre de cavalaria. Em seguida, foi a vez de o braço se mover – não de uma forma tão amistosa, entretanto. A espada descreveu um arco no ar, atingindo a garganta do monge.
Parecia que a cabeça iria simplesmente tombar para trás, decepada, mas, antes que o fizesse, o cavaleiro deu um chute com todas as forças no peito do outro homem, jogando-o contra a coluna próxima à entrada. O pilar de pedra tombou contra a parede, puxando a videira que o conectava a outras partes do templo.
Adriano voltou para o centro da sala usando o escudo para se proteger das pedras e folhas que choveram do teto. Nenhum deles, por outro lado, ofereceu qualquer perigo para o monge. Nem mesmo a videira parecia assustá-lo. Os ramos foram afastados sem dificuldade enquanto ele se levantava, o corte na garganta se fechando.
– Você poderia participar do banquete como convidado. Poderia sentar-se à mesa comigo, mas preferiu ser apenas mais um dos pratos servidos. É uma pena. – A voz firme era a mesma de antes do golpe, nada havia se alterado. Ele sorriu, deixando os caninos protuberantes à mostra, e se postou no meio da entrada.
Adriano olhou para o corredor atrás de Maximiliano sem conseguir enxergar muitas chances para ele. Duvidava que pudesse abater o monge pelo menos pelo tempo suficiente para correr até as portas, abri-las e fugir com Leonino. Resignado, colocou o escudo diante de si e levantou a espada, desferindo, sem querer, um ataque certeiro no rosto do oponente.
Levou um instante para o cavaleiro entender o que tinha sido aquele lampejo claro. Ao olhar para cima, viu que parte da cúpula tinha caído, deixando entrar retalhos de luz solar e tornando a situação um pouco mais visível: derrubar uma das colunas, puxando ramos e agitando a videira furiosamente, havia comprometido parte da estrutura, e agora era possível ouvir o fervilhar da planta e os estalidos de rochas unindo-se aos urros do monge com as mãos no rosto, contorcendo-se de dor.
Aquele pequeno pedaço da manhã que se derramava do teto clareou a mente do cavaleiro e acendeu uma esperança. Ninguém se unia às trevas sem alguma consequência, e Maximiliano o havia designado seu protetor durante o dia por algum motivo.
Adriano deu passos para trás e ficou com Leonino sob o sol. Não era muito para os dois, mas a luz devia dar-lhes alguma segurança. A dúvida era por quanto tempo.
– Bastardo! – gritou Maximiliano, voltando-se com fúria para o causador daquele estrago que lhe desfigurava metade do rosto.
Ver a queimadura era assustador, mas era um sinal de que o cavaleiro tinha o sol do seu lado. Ele estava imaginando como poderia usar o reflexo da espada para afastar a ameaça sanguinária, quando vislumbrou as possíveis implicações de deixar aquele monstro para trás: fugir significava deixar o monge vivo, significava permitir que ele sumisse e recomeçasse os planos malignos em outro lugar. Adriano não podia deixar que outras pessoas fossem vítimas daquela criatura. Era preciso ir até o fim.
Ele mexeu a espada, usando o reflexo como arma. Mais atento, Maximiliano esquivou-se, sumindo nas sombras do corredor. O cavaleiro montou, mas, ao invés de sair, deteve-se com o cavalo na entrada, fazendo o animal empinar e golpear a coluna com as patas dianteiras. Uma cascata de poeira começou a cair da abóboda, a videira se agitando e afrouxando pedras conforme os golpes eram dados.
Porém, em um determinado momento, Leonino não conseguiu ser mais rápido que a videira. Com as patas do cavalo presas pelos ramos, Adriano se desequilibrou e caiu para trás, rolando pelo chão da sala. O escudo acabou indo parar a metros de distância; sem tempo para alcançá-lo, o cavaleiro valeu-se da espada para se proteger do monge que saltou sobre ele, caindo como se fosse mais um dos detritos do teto.
A lâmina de metal transpassou o peito de Maximiliano, que foi empurrado para o lado e pressionado contra o piso pelo antigo escudeiro. Ao lado dos dois, ramos se estendiam na direção deles, as pontas deslizando pela capa amarela na tentativa de se agarrarem ao homem que subjugava o outro.
– Esse é o seu melhor, Adriano? – O monge olhou para a espada enterrada no peito como se ela não passasse de uma piada. – Que tipo de cavaleiro você se tornou?
Adriano encarou o rosto desfigurado.
– O tipo que sobrevive à luz.
Pronunciada a última palavra, um estrondo estremeceu o templo, fazendo cair bem mais do que poeira e pequenos detritos. Leonino havia levado a coluna a baixo após tanto se puxar das amarras vegetais e se libertar. Ainda com pedaços da videira enroscados nas patas, o cavalo escapou por pouco do desmoronamento de mais da metade do teto. A abertura resultante permitiu que o sol entrasse e atingisse os dois homens como um batismo fulminante, cuja glória estava pronta para expurgar tudo o que pertencesse às sombras.
A face parcialmente deformada pela queimadura abriu-se em uma expressão de êxtase, como se Maximiliano fosse presenteado com a visão arrebatadora de uma aparição celestial, mas não havia nada que remetesse ao divino naquele esgar causticante – a boca com dentes pontiagudos aberta em um grito silencioso – ou naquela dissolução esfumaçada que emanava um odor repulsivo.
Adriano se levantou e puxou a espada daquela composição que se dissolvia em cinzas e fumaça. Pouco depois, não havia nada além de trapos no lugar do que um dia tinha sido o monge branco.
O cavaleiro pisou em cima das pedras que quase o tinham atingido quando caíram do teto e se deteve sob a luz do sol, tomando fôlego e inspirando o ar da manhã, como se esperasse que a purificação continuasse dentro dele. Ele se aproximou de Leonino, desviando-se da videira – alguns ramos remanescentes da abóbada ainda se mexendo e tentando grudar em suas botas –, montou no cavalo e partiu com ele para o corredor, saltando sobre os escombros.
Embora o medo continuasse a ecoar dentro dele, Adriano não saiu imediatamente do templo. Deixou a montaria na entrada e procurou pela abertura que dava para o túnel. Ele a encontrou aberta, não muito longe das portas; desceu as escadas com a espada em punho e percorreu o caminho subterrâneo iluminado apenas por tochas até a caverna onde havia acordado durante a noite. Não podia contar com a luz do sol ali embaixo, mas estava com a fé renovada.
A coleção de barris continuava lá, exatamente como se lembrava. Sendo difícil saber qual deles estava com o sumo das uvas, com o vinho normal ou com a mistura dos dois somente olhando-os por fora, abriu alguns deles, sentido o aroma inebriante da bebida.
Muitos adorariam ver aquilo, sentir o cheio, provar daquele alimento profano. Mas era preciso livrar a todos da tentação, inclusive ele próprio, e manter tudo aquilo longe do contato humano, longe até mesmo das autoridades seculares e eclesiais.
Derramou as bebidas e, ao encontrar um barril com óleo para as tochas, passou a espalhar o líquido inflamável pelo corredor, encontrando uma segunda sala. Havia uma cova no meio do recinto e, ao redor, uma profusão de ossos, provavelmente de pessoas que ele vitimou para roubar-lhes o sangue, como indigentes dos quais ninguém sentiria falta e viajantes que nunca retornariam para suas famílias. Além disso, não era difícil supor que a cova era o local de descanso de Maximiliano.
Adriano tentou imaginar o que o antigo mestre teria aprendido com a bruxa, o que teria feito para se transformar naquele monstro. Com um arrepio, afastou os pensamentos e continuou espalhando o líquido. Subiu as escadas e, na sala, podou a videira o máximo que conseguiu, aspergindo pelo ambiente o resto do óleo.
O monge branco ainda era apenas um hábito manchado de sangue no chão. Ele não havia se reconstituído e não mais retornaria no que dependesse do sol e do fogo nos quais o cavaleiro depositava sua confiança. Com o lugar devidamente banhado, ele jogou uma tocha no túnel e outra no salão circular, saindo com Leonino para assistir ao crescimento das chamas que floresciam onde antes havia um cultivo pernicioso.
Por precaução, Adriano não havia retirado do templo o corpo de Casimiro, mas rezava em seu íntimo para que, estando onde estivessem, o pedinte e as outras vítimas encontrassem paz e olhassem por ele.
O cavaleiro não sabia ao certo o que o esperava pela frente, ou o que deveria dizer ao voltar para Vila Santuário e prestar satisfações ao bispo sobre a viagem. Também não sabia o que teria mudado nele após ser salvo da morte pelo vinho e ter bebido do líquido maldito.
Porém, ao contrário de Maximiliano, tinha sobrevivido à luz da manhã, e o fato de poder estar sob o sol sem se incomodar e desejar ardentemente a destruição completa da videira e de seus frutos pelas labaredas claras mostrava perfeitamente que podia regressar sem dúvidas de que o melhor dele havia sido preservado – afinal, ele sabia que tinha passado por uma provação de fogo e acreditava piamente que o fogo celestial só deixa o que é verdadeiro.