O ÚLTIMO DEGRAU

Juliana aguardava seu noivo em casa, era Dia dos Namorados, vestia belo vestido preto sem alças, sapatos de salto alto, por baixo uma lingerie vermelha, da maneira que Heitor gostava. Ficou sentada nas almofadas de seda a beira da lareira elétrica. Na mesa de centro alguns petiscos, um barco de comida japonesa e duas taças de vinho bordô seco já servidas.

Heitor era um homem bonito, já com seus quarenta anos estampados em seus cabelos levemente grisalhos. Bem-sucedido, médico psiquiatra, que amava sua profissão, atendia seus pacientes como amigos íntimos.

Seria uma noite mágica, ela havia marcado a data na igreja, recebera a promoção tão esperada na empresa onde trabalhava, tudo isso a deixava deslumbrada é muito feliz. Tudo isso seria contado a seu amado na tão esperada janta.

As velas vermelhas estavam ali ao lado, prontas para serem acesas assim que ele chegasse.

Tudo estava da maneira que imaginou, a surpresa estava marcada para as 22:00, ela produziu-se bem antes do horário, não gostaria de estragar nada.

O relógio marcava 21:30, ela bebeu o primeiro gole do vinho e pegou o celular. “Calma Juliana, ainda é cedo.” Conversava com ela mesma. Quis soltar mais o corpo, esquecer as tensões do dia e das frases da irmã que dizia que Heitor não era quem ela pensava. “Não! Não é verdade, ela que é mal amada, tirou tudo de mim, é provável que queira meu homem também”. Repetiu várias vezes essa frase. Serviu mais uma vez sua taça, limpou a borda com um lenço de papel, levantou, olhou-se no espelho, jogou um beijo e arrumou a franja. “Estou muito gata, mas será que Heitor vai gostar?”.

Voltou a olhar o relógio, 21:57, ainda estava no horário, pegou o celular e escreveu: “Hoje vou te enlouquecer!”. Jogou o aparelho no sofá e sentou-se novamente.

22:09. “Ainda não chegou!”. Ligou, caiu na caixa de mensagens, mais algumas tentativas e sempre a mesma coisa. Mandou mensagem, mas os tracinhos do aplicativo ainda estavam brancos.

“Penso que minha irmã esta certa, eu é que sou uma idiota”. Virou mais uma taça de vinho, serviu mais uma vez e sorveu aquele líquido tal qual se bebe cachaça em botecos.

Juliana era fraca para bebida, na quarta taça já estava enjoada, sua única companhia era o celular e as fotos de Heitor que nesse momento ela apagava e o xingava de todos os palavrões possíveis.

23:56. Depois de muitas ligações não atendidas e várias mensagens de áudio sem resposta, Juliana percebeu que seu estômago estava embrulhado e suas pernas não a obedeciam mais.

Levantou com muita dificuldade, cambaleou para os lados, virou a taça de Heitor, que permanecia cheia, no tapete branco, causando uma mancha enorme, percebeu o que havia feito e apenas riu, deu um tapa na mesa, o barco caiu e o shoyo piorou a situação. Subiu as escadas deixando tudo para trás, viu seu telefone vibrar perto do último degrau da escada. Deu os ombros e subiu.

Despiu-se por completo, entrou no box e deixou que a água acabasse com a maquiagem que antes perfeita, agora formavam lágrimas cinzas. Desligou o chuveiro e pegou a toalha branca que estava preparada para depois dos momentos que viveria com Heitor, enrolou-se, secou o rosto deixando o resto do batom tatuado no tecido e foi para sua cama.

Balançou o Edredon fazendo com que as pétalas vermelhas que decoravam o ambiente voassem pelo quarto, jogou-se na cama e adormeceu instantaneamente.

Abriu os olhos e o relógio de cabeceira marcava 4:21, virou a cabeça para a porta e um homem estava ali, parado, de mãos dadas com uma criança de rosto cadavérico ao lado. Seu corpo começou a tremer e seus olhos derramavam lágrimas tímidas, que escorriam pelos cantos de sua face até as orelhas. Imóvel e com muito medo, juliana tentava gritar, mas por mais esforço que fizesse, o som não saía.

O homem veio em sua direção e a arrastou pelo quarto, desceu as escadas puxando pelas pernas fazendo com que sua cabeça batesse em cada degrau descido, mas ela já não sentia dor, parecia estar anestesiada.

No último degrau ela agarrou o celular e ao ligar a luz da tela, acordou, em sua cama. “Era só sonho?”. Indagou em pensamento. Olhou no relógio, 4:27.

Ainda tonta desceu até a cozinha, a sede a consumia, seu interior pedia água desesperadamente.

No último degrau passou pelo celular, não pegou, foi resolver o que era o maior desejo. Abriu a geladeira, pegou a jarra, olhou para os lados e não viu copo algum.

Bebeu ali mesmo, deixando escorrer pelo canto da boca molhando seu peito.

Voltou, pegou o telefone e quando foi conferir as mensagens, a bateria acabou. “Amanhã resolvo isso”. Subiu, ligou o cabo na tomada e deixou desligado, carregando.

Não conseguia pegar no sono, ficou deitada olhando para cima, pensando no sonho que tivera. Questionou sua vida, seu problemas, família, noivo, sua irmã. Seu passado parecia ter sido apagado, queria viver o presente, o que valia é daqui para frente.

“Quem eram aquelas pessoas em meu sonho? por que Heitor não veio? Eu o visito todas as semanas, o que tem de errado vir a meu encontro?”.

Ficou ali, parada, questionando seu relacionamento.

Quando os primeiros raios solares atravessaram as cortinas, juliana levantou-se, desceu até a sala. No meio da escada percebeu a bagunça que fizera, sorriu com vontade de chorar e continuou a descer. Foi até a cozinha, abriu a geladeira, pegou uma caixa de suco de laranja e bebeu ali mesmo. Tinha muita sede.

Voltou para a sala e viu seu celular ali no último degrau, lembrou que havia levado para o quarto, mas ainda meio zonza pela quantidade de vinho que havia ingerido já não tinha mais certeza de nada.

Olhou em direção ao tapete e viu um corpo no chão, o seu. Apavorou-se com a cena, mas como se a coragem tomasse conta de sua alma, foi ao encontro dela mesma. Tentou tocar, mas sua mão transpassou a carne.

Sua mente começou a fervilhar, lembranças brotavam e lembrou-se da noite anterior. Subiu até seu quarto, estava tudo arrumado, as pétalas estavam todas perfeitas em forma de coração. Ninguém havia dormido lá, inclusive a toalha branca ainda estava na cabeceira da cama sem nenhum vestígio de uso.

Desceu mais uma vez, seu celular brilhava e vibrava no chão. Eram algumas das mensagens de sua irmã. Parou e as leu.

“Juliana, minha irmã querida, Heitor é meu marido e seu psiquiatra, você precisa entender isso de uma vez por todas. Por favor, pare de ligar para ele, do contrário, terá de trocar de médico. Siga as instruções que ele te passou e não misture remédios com álcool.

Eu te amo muito, quero cuidar de você, mas tens que superar a morte do nosso pai e de nossa irmãzinha. Não foi sua culpa!”

Nesse exato momento, Juliana lembrou-se do acidente onde seu pai e sua irmã haviam morrido. Ela dirigia o carro que caiu numa ribanceira, enquanto os levava a um passeio. Era uma bela manhã de sol, havia bebido muito na noite anterior, e estava completamente exausta. Acabou dormindo no volante.

A realidade foi tomando conta de sua cabeça. Imagens da família, dos jantares na casa de sua irmã, seu pai na cabeceira, Heitor assando o churrasco que era tradição nos domingos, sua irmãzinha correndo e a abraçando sempre com sorrisos lindos em seu rostinho.

Percebeu o que havia feito. Olhou para seu corpo sem vida, ao lado um frasco de remédios vazio e algumas garrafas de vinho, também vazias. Agora tudo fazia sentido. Mesmo sabendo que havia desencarnado sentiu-se feliz como a muito não sentia.

No topo da escada, estava o homem que a arrastara em seu sonho e ao lado a menina. Agora estavam com aparência real. Era a sua família. Sem dizer um palavra sequer, subiu ao encontro deles. Ao receber o sorriso de sua irmã e a mão de seu pai, uma luz forte iluminou o caminho de Juliana que foi em direção à eternidade.