ATRAVESSE PARA O OUTRO LADO

Ilha de Wight, 9/08/1970

São mais de duas horas da madrugada. A noite está com uma temperatura agradável e o vento levemente gelado que sopra se perde em meio à multidão barulhenta. O cheiro de maconha e bebida impregnam tudo. Olho ao meu redor e vejo jovens de todos os tipos, eles estão empolgados, gesticulam e falam coisas que não tenho o menor interesse em saber.

O vocalista, barbudo e cabeludo, canta músicas que parecem inebriar aquelas pessoas. A luz avermelhada que envolve o palco evoca em mim lembranças de uma época que nunca mais irá voltar.

Eu pouco presto atenção a performance daqueles músicos, mas a turba em volta de mim parece adorar o espetáculo que se desenrola. Talvez um dia eu venha a gostar de coisas desse tipo.

Eu não sou desse tempo, penso que talvez eu não seja mais de tempo algum, acho que também não sou de lugar nenhum.

Estou aqui apenas porque a sede que assola a minha alma é uma maldição eterna. Eu tenho de alimentar-me e essa multidão de jovens vai fornecer-me a sua vitalidade.

Meus olhos encontram aquela que irá saciar meu desejo.

No palco a banda de músicos canta uma canção que fala do dia destruindo a noite. A turba delira com isso. Meus sentidos se aguçam já antevendo o momento da saciação. Os cabelos castanhos daquela que me fornecerá a sua vitalidade esvoaçam loucamente ao som da melodia.

“Atravesse para o outro lado”, “atravesse para o outro lado”. Essa frase da música parece levar a minha vítima a uma catarse. Ela pula, grita e ri. A melodia parece ter despertado algo naquelas pessoas.

Meu corpo vibra de ansiedade e desejo quando a imagem de um belo campo e o aroma de cabelos docemente castanhos invade a minha consciência. Não! Isso é tão antigo quanto o mundo. Por que tinha que voltar agora?

Tudo durou apenas um átimo de tempo e logo volto a ser o que sou. Onde está a moça dos cabelos castanhos? Procuro entre rostos e corpos suados, mas ela sumiu engolida pela multidão em êxtase. Nunca saberei o gosto da sua vida, nunca desfrutarei de sua energia vital.

A sede se foi. Não sinto nenhum desejo agora. Não consigo entender o que houve, mas sei que ela logo retornará.

Acho que nunca mais voltarei a ser o que eu era. Essa dor ficará para sempre e carregarei a maldição até o fim dos tempos.

Olho para o palco. Vejo que a banda já terminou de cantar e os músicos já se retiraram.

Daqui a pouco outro grupo irá se apresentar...

*Este pequeno conto surgiu após assistir o vídeo da apresentação da banda The Doors no Festival da Ilha de Wight em agosto de 1970.

**A música citada no conto é Break On Through (To The Other Side).

Plutarco
Enviado por Plutarco em 15/08/2020
Reeditado em 16/08/2020
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