No Fundo Eu Só Queria Ser Como Nereida - CLTS 12

I

Mas eu tinha que me contentar em ser só a Cris, a “que não nasceu para isso”, uma jovem sem graça de uma cidadezinha do interior de São Paulo a mais de 260km da capital. A única pessoa interessante na cidade – a única pessoa interessante no mundo – se mudou para cá há alguns anos, uma estilista incrível chamada Nereida. Suas obras eram maravilhosas, com um certo tom exótico, e cada peça era única, produzida pessoalmente por ela; consequentemente, suas roupas eram terrivelmente caras. Eu teria que trabalhar meses para pagar uma só de suas obras de arte.

Quem não a conhecia não dava nada por ela. Vivia em uma casa enorme, mas simples. Usava vestidos que pareciam de terceira ou quarta mão, e nenhum acessório, nem brincos. Não era definitivamente o tipo soberbo que se esperaria de uma estilista rica e famosa – bem, ela não era famosa, suas roupas sim, mas dá no mesmo. Um pouco estranha (como um gênio incompreendido), cabelos grisalhos encaracolados, enormes olhos de peixe morto, pele quase rosa de tão branca, cara de batata.

Uma de suas esquisitisses era ser terrivelmente supersticiosa. Por exemplo, quando alguém morria, Nereida dizia que outras duas pessoas morreriam em breve, porque a morte caçava de três em três. Nas conversas em grupo, se ela estivesse fumando e alguém acendesse também, ela sempre apagava o cigarro, pois dizia que quando três pessoas fumavam juntas, uma delas morreria logo. Nas fotos, nunca ficava no meio de duas pessoas.

Odiava borboletas e não comia pão fresco. Toda vez que passávamos pelo cemitério perto de sua casa, cobria os polegares. Gostava de cozinhar, e adorávamos sua comida, mas nunca bolo, mesmo eu tendo insistido. Um dia contei para ela um sonho que tive – não vou entrar em detalhes, por razões óbvias – e, quando disse ter visto um pênis, ela me pediu para descrevê-lo. Deduziu que um homem próximo a mim morreria em breve. Ah, e a superstição mais curiosa: todas as roupas que ela fazia tinham, em algum detalhe, a letra V.

Um dia, Nereida começou a produzir roupas populares e doar para algumas pessoas. De início fiquei incomodada porque ela nunca havia me dado a menor pista de que faria isso, e ela me contava quase tudo. Mas logo deixei para lá, já que, espontânea como ela era, provavelmente havia decidido isso do nada. Descobri quando vi Clemício, pai do Bruno (o homem do meu sonho), vestindo uma peça produzida por minha amiga. Cruzei com ele em um beco e, quando bati o olho, reconheci o estilo de Nereida. Era uma jaqueta de algodão com zíper, meio retrô, em três tons de azul, com diversos Vs brancos; o material era visivelmente de qualidade inferior ao que ela costumava fazer, mas a jaqueta era linda.

Encontrei com Bruno mais tarde e ele me explicou que Nereida havia dado aquela roupa de presente para ele havia alguns dias, mas como era um pouco grande, ele deu para seu pai. Tentei falar com ela sobre isso, mas Nereida desconversou. Ah, outra mania dela: quando minha amiga não queria falar sobre algo, ela não falava mesmo. Não adiantava insistir. E ela abominava os assuntos mais aleatórios, de religião a viagens submarinas.

Um tempo depois, Bruno se queixou comigo que seu pai estava incomodando minha amiga constantemente, pedindo que lhe fizesse outra roupa. Clemício ficou paranoico, só tirando a jaqueta para se limpar. Depois parou de tomar banho para não ter que tirar a jaqueta. Mais tarde, recusou-se a trabalhar. Cheguei a interceder por ele com Nereida, pedindo-lhe que fizesse outra peça, mas tudo o que ela respondeu foi: “uma apenas basta”.

Um dia, Clemício se trancou no quarto e riscou a letra V em todas as paredes. Sua mulher conseguiu entrar e tentou tirar-lhe a jaqueta. Ele a matou, despedaçou e desenhou três Vs na sala de estar com seu corpo; então desapareceu e nunca mais foi visto. Aquele sonho que, segundo Nereida, anunciava a morte de um homem próximo, foi três dias antes disso.

II

Nunca aceitei roupas de Nereida. Ela insistiu, mas muita gente se aproximava dela só por interesse, de modo que, desde que a conheci, decidi nunca me aproveitar dela dessa forma. Um dia, porém, ela me convenceu a aceitar um pequeno par de brincos, que passei a usar sempre. Nereida disse não ter sido feito por ela, mas notei depois que eles tinham minúsculos Vs gravados.

– Por que sua marca registrada é um V? Não seria melhor N, de Nereida? – Perguntei um dia.

– Na verdade não é V, é a letra grega Ni. Ela parece um V, mas tem som de N.

Eu desconfiava, por mais que resistisse a isso, pelo tanto que gostava da minha amiga. A preocupação ficou maior quando notei que meu cabelo estava crescendo mais rápido e mais bonito desde que passei a usar esses brincos. “Não consigo parar de olhar”, Bruno sempre dizia. Aliás, não foi um simples crescimento: a parte da frente pareceu ter ficado mais curta, e o resto cresceu em ritmos diferentes, de modo que, para quem via por trás, ele parecia formar um V. Até pensei em cortar, mas estava tão lindo que não consegui. Chegou um tempo em que eu aparava as pontas todos os dias, deixando os fios retos, mas na manhã seguinte o cabelo estava em forma de V de novo.

Na época em que desisti de desfazer o corte em V, comecei a ter problemas com André, um rapaz que gostava de mim desde a escola, mas que sempre achei muito imaturo, fazendo brincadeiras ridículas para chamar a atenção. Ele ficou ainda mais apaixonado por causa do meu cabelo, e começou a me perseguir, do jeito dele, fazendo pegadinhas, me dando sustos, etc. Sua última cartada foi se jogar na frente de um ônibus diante dos meus olhos. Seu corpo ficou preso na roda do veículo, tiveram que tirá-lo com um maçarico.

III

Um prédio abandonado, o edifício mais alto da cidade, começou a emitir uma luz estranha. Todas as noites, por alguns segundos, ele brilhava como um farol e iluminava a cidade inteira. Algumas pessoas ficavam em um tipo de transe quando isso acontecia, que durava alguns minutos, e ficavam três dias sem conseguir andar direito em linha reta. Um dia, um ônibus interestadual que passava perto da cidade foi encontrado parado no meio da estrada. O motorista e todos os passageiros (inclusive um cachorro) estavam mortos, olhando congelados, boquiabertos, na direção do prédio abandonado.

Descobri uma noite que meu irmão mais novo e um grupo de outros adolescentes resolveram investigar de onde vinha aquela luz. Assim que um amigo deles me contou, corri até lá. Já no segundo andar, encontrei corpos carbonizados. Devo ter passado por uns vinte até chegar ao último. No caminho encontrei dois dos amigos do meu irmão encolhidos em um canto, apavorados.

– Eles ‘tão’ lá em cima! Eles ‘tão maluco’!

No último andar, o brilho da lanterna alcançou meu irmão e mais dois meninos olhando, hipnotizados, para uma rachadura na parede em forma de V. Ao me aproximar, senti um leve calor emanando dela. Toquei-a e meus dedos arderam. Deduzi que era dali que vinha a luz e que, pelos corpos queimados, seria perigoso estar por perto quando ela brilhasse.

Mas não consegui tirar os meninos do transe. Apesar de mais novo, meu irmão era quase do meu tamanho, seria impossível arrastá-lo à força. E o prédio não brilhava sempre na mesma hora, então podia acontecer a qualquer momento. Tentei pedir ajuda a Bruno, mas no momento que ele me atendeu, a rachadura brilhou, senti um calor terrível envolver meu corpo e desmaiei. Eu e meu irmão acordamos no hospital, com algumas queimaduras de primeiro grau, mas nada tão grave.

Foram encontrados trinta e cinco corpos carbonizados no prédio, inclusive os quatro amigos do meu irmão. Ele continuou brilhando todas as noites.

IV

Na última noite em que o prédio brilhou, recebi uma SMS de Nereida: “Morro. Queime essa bosta velha. Fique com o resto.” Ela partiu de repente, imprevisível como sempre. Infarto, provavelmente por causa dos muitos maços de cigarro que fumava todo dia. Deduzi que a “bosta velha” era seu corpo: Ela foi cremada e suas cinzas jogadas em um rio, já que odiava cemitérios.

A surpresa maior veio dois meses depois, quando fui oficialmente comunicada de que Nereida deixou tudo para mim. Tudo. As casas que tinha espalhadas pelo mundo totalizavam mais de trezentos milhões de reais. Suas peças, entretanto, eram de valor inestimável.

No dia seguinte, eu e uma amiga, Larissa, fomos até a casa de Nereida para ver o que havia lá. Foi quando descobri que havia sido saqueada. Alguém levou todas as roupas, toda a matéria-prima que ela tinha e até suas máquinas e ferramentas. Reviramos a casa em busca de alguma pista, já que a polícia da cidade e um rolo de papel higiênico usado era a mesma coisa.

Nunca havia me interessado pela biblioteca de Nereida, mas paramos para olhar os livros, e todos pareciam escritos com letras indecifráveis. “Tenho certeza que ela era uma bruxa”, disse Larissa. Achamos uma porta escondida atrás de uma das estantes de livros, dava em um tipo de porão. Acendemos uma das grandes velas pretas que Nereida tinha e descemos, tremendo de medo e ansiedade. Esperávamos encontrar alguma coisa incrível ou assustadora. O estranho é que ele parecia bem limpo, sem teias de aranha ou poeira, como se estivesse sendo usado ainda.

Eram cigarros. Quase um caminhão, de diferentes tipos, tomando quase todo o porão. Nós bufamos, e rimos por causa da expectativa frustrada. Havia também uma roupa suja e velha jogada em um canto, um vestido prateado com paetês, decote em forma de V, fechamento traseiro por zíper, onde havia um V gravado – ou, como Nereida explicou, a letra grega Ni. Larissa mediu a roupa contra o próprio corpo, parecia de tamanho ideal, dois dedos abaixo dos joelhos.

Não foi só ela quem se apaixonou. As pessoas ficaram deslumbradas quando a viram nesse vestido, como se aquela mulher que já estava na casa dos quarenta e que nem era tão bonita assim – que Deus a tenha em bom lugar – tivesse se tornado a coisa mais linda do mundo. Passou a usar a roupa mesmo nos lugares mais inadequados, tornando-se o centro das atenções. Deve ter sido efeito do vestido ninguém ter se importado com o fato dela tê-lo literalmente roubado; eu mesma só me atentei a isso tarde demais.

V

Obviamente, não comecei a fazer dívidas como uma louca contando que estava milionária. Primeiro, porque demoraria alguns dias até a burocracia toda se resolver e eu poder botar a mão na grana. Segundo, porque a ficha ainda não havia caído, e ainda demoraria a cair.

Um dia, eu andava pela rua pensando em como seriam as coisas daqui para frente; estava um pouco movimentado – movimentado demais para a nossa cidadezinha –, mas notei um sujeito andando alguns metros adiante, de costas para mim, vestindo uma jaqueta jeans com um enorme V preto nas costas. Imaginei que ele tivesse roubado, ou conseguido com alguém que roubou, essa roupa de Nereida.

Observei por alguns segundos, e vi algo como uma sombra descer sobre ele. Mais ninguém notou. Ela assumiu forma humana, como se fosse uma pessoa de cabeça para baixo feita de escuridão sobrevoando o sujeito enquanto ele andava. Esticou o que pareceu um braço comprido e tocou em sua cabeça. Imediatamente, o rapaz caiu no chão sem vida, e a sombra se desfez. Joguei fora os brincos que Nereida me deu e corri para procurar Larissa.

VI

Acordei com a cabeça latejando, o estômago revirando; sentia-me de ressaca. Quando cai da cama, notei que não estava no meu quarto, e as roupas que usava não eram minhas. Esfregando a cabeça, só me dei conta de que estava na casa de Nereida quando cheguei à sala de estar.

Peguei um maço de cigarros – Nereida tinha maços e isqueiros em cantos estratégicos – e acendi, grata pela sabedoria preguiçosa da finada. Havia sangue nos meus dedos. Olhei ao redor, tentando me lembrar como fui parar ali. Notei uma mancha de sangue no chão, próximo à porta da biblioteca. Lá dentro havia mais sangue. A estante que escondia o porão estava caída e os livros espalhados.

Com o isqueiro aceso, desci as escadas para o porão, a visão ainda turva. Quase cai ao ver uma mulher retorcida no chão sobre uma poça de sangue. Ao iluminar seu rosto, percebi ser Larissa. Em sua testa havia a marca de um profundo corte recente em forma de V feito por algo como uma lâmina fina. Assim que meus olhos focaram na marca, perdi o controle do meu corpo.

Agarrei o braço esquerdo de Larissa com as duas mãos, sentindo uma leve pulsação, coloquei um pé sobre seu peito e, puxando com uma força que eu não conhecia, arranquei-lhe o membro. Segurei o braço direito e, com um puxão, arranquei-o também. Coloquei-os acima de sua cabeça, cruzados em forma de V. Notei, só nesse momento, que não segurava mais o isqueiro, mas podia enxergar no escuro.

Sem dificuldade, colocando um pé no seu ventre, agarrei-lhe pelos joelhos e arranquei suas pernas, desenhando com elas outro V no chão, meu corpo imundo de sangue. A seguir, dividi o que sobrou do seu tronco em duas partes, de baixo para cima, como se rasgasse uma esponja, e fiz o terceiro V, cuja base era a cabeça de Larissa. Palavras em uma língua estranha soaram de minha boca por alguns minutos em um frenesi selvagem, e minhas mãos faziam gestos incompreensíveis enquanto balançavam no ar, dedos e pulsos torcidos em formas impossíveis, meu corpo inteiro envolvido em uma dança absurda.

Chamas vermelhas lamberam o corpo de Larissa, e rapidamente se espalharam pelo porão, incendiando as muitas caixas de cigarro que me cercavam. Sombras dançavam ao meu redor, enquanto eu ainda dizia aquelas palavras inumanas. Elas me tocaram, invadiram meu corpo por todos os lados, penetrando-me com um poder ao qual humano algum deveria ter acesso. As chamas, embora queimassem minha roupa, não podiam me ferir.

Enquanto aquela magia sombria me possuía, senti como se meu corpo levitasse, mas eu não tinha certeza se meus pés tocavam o chão. As sombras murmuravam alguma coisa, unindo-se a mim nesse êxtase insano. Em um momento que pareceu eterno, tornei-me uma só com as chamas, e as sombras, e a fumaça, e a casa, e senti como se o universo todo me pertencesse e eu estivesse pronta para agarrá-lo, ao mesmo tempo que me parecia que eu precisava da autorização de alguém até para respirar. Não entendia o que estava acontecendo, mas era absolutamente claro que estava me tornando alguma coisa além de humana.

VII

Fumaça subia da casa de Nereida e um forte cheiro de cigarro se espalhava, como se alguém a estivesse fumando. Cinzas, poeira e fumaça se fundiram com as nuvens negras e formaram um grande V sobre nossas cabeças, que se estendeu por toda a cidade. Qualquer um que o visse ficava totalmente imóvel, olhando para o céu em transe, como que hipnotizado. Choveu.

TEMA: HIPNOSE, SUPERSTIÇÃO, BRUXAS.