PÉ DE COELHO - CLTS 12

Hoje mais cedo resolvi fazer uma arrumação em meu quarto, caixas antigas, livros, retratos.

Revirando os entulhos, encontrei muitas recordações de minha infância. Na realidade, o gatilho foi ter encontrado o macacão verde com o qual saí do hospital, recém-nascido no dia 13 de novembro. A cor foi escolhida por insistência de minha avó materna Carla, ela disse que eu havia nascido em um dia de número muito místico e que seria bom me proteger, já que o verde significa esperança, liberdade, saúde e vitalidade. Também simboliza a natureza, o dinheiro e a juventude.

Encontrar esse macacão foi como abrir um compartimento secreto em meu cérebro. Comecei a lembrar e rever algumas coisas interessantes sobre meu comportamento. Até hoje eu calço primeiro o pé direito, não passo embaixo de escadas, cubro os espelhos em dia de tempestade e tenho gatos, pretos, é claro. A maioria das pessoas acredita que os bichanos na cor preta são sinal de mau agouro, mas vovó acreditava que estes bichinhos em especial, eram os mais poderosos da natureza, que eles eram os guardiões dos portais que divide a terra e o outo lado. Carregavam muito poder com eles, portanto, não existiam melhores protetores para um lar do que os gatos pretos.

Cresci ouvindo minha avó Carla falar a minha mãe, que uma casa deveria ter muitos cães e principalmente gatos, pois todo o mal que ronda a família sempre cai no mais fraco, no caso os bichinhos. Não é que vovó não gostasse deles, mas fazia isso por amor a nós, meu irmão e eu.

Ela acreditava que se não houvesse os bichos, teoricamente os mais fracos seriam as crianças que adoeceriam e poderiam até morrer. Minha mãe não era supersticiosa e não dava atenção às excentricidades de minha avó, até gostava dos bichinhos, se incomodava às vezes com os gatos por cima dos balcões e mesas.

Lembro-me de uma passagem em especial:

Meu irmão e eu tínhamos 13 e 11 anos respectivamente, brincávamos muito com os bichos, principalmente com os gatos e cachorros. Estávamos sempre na varanda de casa, o espaço era o suficiente para a diversão. Árvores circundavam nosso espaço, a maioria delas frutíferas, todos os animais se divertiam conosco, exceto um de nossos gatos. Lulu era um gato quieto, preferia ficar sozinho em sua caixa de areia, observava de longe nossas bagunças, ele era daqueles que estava sempre à espreita e em todos os lugares, vigiando quem chegava ou saia da casa.

Minha avó morava em nosso pátio numa casa nos fundos da nossa, ela já era de idade avançada e tinha dificuldade de locomoção, mas não se entregava, resistia a todos os percalços que a vida insistia em lhe causar.

Tudo parecia normal, mas minha mãe ultimamente estava irritando-se cada vez mais com os bichos, dizia que sujavam muito e estragavam os móveis. Nós apenas tentávamos limpar tudo e pedir para que ela não os entregasse para adoção, algo que sempre nos dizia quando não obedecíamos alguma ordem. Sempre pensamos que era um pouquinho de exagero, e que ela não teria coragem de fazer tal maldade.

Depois de um dia estressante em seu trabalho, ela chegou mais cedo, antes que pudéssemos ter tempo de limpar tudo, e quando entrou em casa observou um verdadeiro caos. Havia terra nos móveis, marcas de pés e patas pelo chão, a maioria das coisas estava fora do lugar. Ficou em pé e calada, apenas olhando o que fomos capazes de produzir. Quando entramos correndo pela porta da varanda, ela não disse nada, apenas nos olhou e apontou em direção a nosso quarto e quando estávamos a obedecer ela disse:

— Vocês não estão pensando que vão para o quarto sem tomar banho, não é?

Mudamos a direção e fomos ao banho. Saímos direto ao quarto, ficamos ali até o dia seguinte. Ao acordar, fomos ao banheiro e depois ao café, que sempre estava pronto e já servido, mas naquela manhã não havia nada. Meu irmão abriu a caixa de cereais e nos serviu, jogou um pouco de leite e com uma fatia de pão, estávamos alimentados para mais um dia de aula. Pegamos as mochilas e saímos, a escola ficava a uns dois quarteirões de nossa casa, íamos caminhando e nossos cachorros nos seguiam, isso acontecia todos os dias desde quando nossa vó havia os adotado, mas naquele dia foi diferente. Não saíram para nos festejar e nem nos acompanhar a escola, foi estranho, mas estávamos atrasados e tínhamos de correr.

Lembro que conversamos sobre nossa mãe e o que ela sempre dizia, ficamos pensando se ela havia cumprido sua promessa. Aquela manhã foi longa, a aula demorou a acabar e no final fomos quase que correndo para casa. Logo na chegada, antes mesmo de sentarmos a mesa para o almoço, nossa mãe disse:

— Não quero saber de choradeira, cansei da bagunça dos cachorros.

— Como assim mamãe, não pode fazer isso, você os jogou fora? — Perguntou meu irmão, com lágrimas nos olhos.

— Vocês acham que sou um monstro? — E continuou — Por mais que não aguentasse mais a sujeira daqueles dois, nunca os jogaria fora, e os doei.

— Para quem? Eles eram nossos, não podia ter feito isso.

— Não poderia ter feito? Eu posso fazer o que eu quiser, eu já havia avisado, dei condições a vocês para poderem ter animais e vocês descumpriram as regras, e já vou avisando que os próximos serão os gatos.

Naquele dia não consegui comer, fiquei enjoado, sem ânimo, como minha mãe teve coragem de tirar nossos cachorros?

Era muita crueldade. Ouvi nossa avó gritar de sua casa, sempre que ela fazia isso, os cachorros latiam, o que ajudava minha mãe a perceber que precisava ver o que acontecia, mas nesse dia não precisou, o grito foi tão alto que ela escutou e foi até lá. Como bons moleques levados que éramos, fomos nos esgueirando pelo pátio atrás de nossa mãe. Ficamos curiosos com o tom da fala de vovó, nós dois conhecíamos bem aquele grito, era o mesmo de quando fazíamos nossas travessuras. Colamos a orelha no concreto para tentar escutar o que acontecia lá dentro. Elas falavam baixo, mas o que consegui escutar foi minha avó dizendo que agora ela morreria.

— Minha filha! Uma vida inteira e você não aprendeu nada? Você quer que eu morra? — Disse minha avó.

— O que esta dizendo mamãe? O que lhe mantém viva são os médicos e não os bichos! — Ela respondeu e virou as costas. Voltou para casa resmungando coisa do tipo ”como pode acreditar nestas bobagens?”.

Entrou em nossa casa com a cara amarrada, não disse nada, foi até o sofá que estava coberto por um pano colorido, devido aos arranhões dos gatos, pegou sua bolsa e voltou ao trabalho, ele apenas almoçava em casa, o resto do dia trabalhava.

Em algum momento da tarde, a vó Carla chamou por nós, disse que se sentia muito mal, com dores no peito e falta de ar. Meu irmão correu até a casa do Doutor Alfredo, que já estava aposentado, mas sempre nos atendia em emergências. Eu, fui para a casa dela, fiquei ao seu lado. Ela estava fraca, olhando em minha direção, quase deixando os olhos fecharem, disse:

— Não deixem sua mãe jogar os bichos fora, vocês não podem ficar desprotegidos, sem eles vocês serão os próximos.

Foram suas últimas palavras, infelizmente quando o doutor e meu irmão chegaram, seu coração não batia mais. Ficamos parados sem saber o que fazer, foi uma cena que nunca esquecerei. Doutor Alfredo ligou para o trabalho de minha mãe e em poucos minutos ela estava lá.

— Não posso acreditar! Falei com ela a pouco, não parecia estar piorando, bem pelo contrário, estava bem disposta. — Disse minha mãe, em meio às lagrimas em conversa com o Doutor.

— Ela já estava muito debilitada, foram anos de tratamentos e muita medicação, você fez o que pode. Não se culpe! — Concluiu o Doutor Alfredo.

Depois de todo o processo de velório e enterro, tentamos retornar a nossa vida. Minha mãe parecia ter ficado com mais raiva de nossos animais, olhava os gatos e dizia:

— Vocês não protegem ninguém, ainda mais sendo pretos, sempre ouvi que gatos pretos dão azar. E concluiu. — vocês vão embora também!

Eu ouvi aquela conversa solitária e corri para contar para meu irmão. Ele estava muito triste, dizia estar sentido tonturas, saudades de nossa vó e falta dos cachorros. Falei a ele sobre o que havia ouvido de nossa mãe. Ele ficou atônito, não sabia o que dizer, evitei falar sobre o que a vovó havia me dito, apesar dele ser o mais velho e teoricamente o papel de proteger ser dele, eu não queria o deixar mais assustado e nem preocupado.

Chamei a mamãe para que ela o ajudasse, ela perguntou o que estava havendo, respondi que meu irmão sentia-se mal, e também estava com saudades da vovó e dos cachorros.

— Meu filho, estou de saco cheio dessa história de proteção de animais, sua avó estava muito doente, não fui eu que a matei, os cães não eram deuses.

— Mas mamãe…

— Mas nada, nada mais. Esta história acaba por aqui, já chega! Amanhã darei sumiço nesses gatos, vocês ficarão bem, vou provar isso.

Corri para meu quarto, aquilo não fazia sentido, por que mamãe estava tão brava? Fiquei pensando, como pode uma mãe fazer isto com os filhos e pensar que ficaríamos bem?

Tentei contar para meu irmão, mas mamãe havia lhe dado um analgésico e ele estava quase dormindo, não me deu importância e nem quis saber o que eu tinha a dizer.

No dia seguinte, acordei e levantei, fui direto a cozinha, o café estava pronto, mamãe bebia uma xícara de chá e lia a página de receitas do único jornal da cidade.

— Farei um ensopado hoje à noite, com muita batata… — Ao me ver, parou e questionou: — Onde está seu irmão? Vocês vão atrasar para a aula.

- Acredito que não está muito bem, nem levantou ainda. — respondi.

Minha mãe correu em direção ao quarto, corri atrás, e quando chegamos apenas Lulu estava na cama, aquele gato ficou em duas patas e miava alto mostrando as unhas para a mamãe; foi uma cena além de estranha,

assustadora. Meu irmão entrou no quarto, voltava do banheiro e ao ver o tudo aquilo disse:

— Enquanto Lulu estiver aqui, eu ainda estarei, do contrário, meus pêsames, mamãe, sinto muito meu irmão.

— O que está dizendo meu filho? Isso não passava de superstição de sua avó e…

— Está certo mamãe, você pode arriscar, mas eu não vou.

Meu irmão deixou minha mãe paralisada na porta, e ao sair para tomar seu café, completou:

— Tínhamos dois cachorros que cuidavam da vovó e os três gatos que cuidavam de nós, um para cada, mas desde ontem não vejo o Faísca e nem o Fumaça miando por aí. Talvez tenham se cansado e ido embora também. Agora só temos o Lulu que é meu protetor pelo que vejo, sinto que vocês terão problemas.

— Agora chega! Vão para a escola, tenho que trabalhar, a noite conversaremos. — Gritou nossa mãe, meio aborrecida e assustada com a fala de meu irmão.

Obedecemos e saímos, meu irmão não disse mais nada, por mais que eu perguntasse. Meu medo era gigante, lembrava-me do que ele havia dito, eu estava desprotegido, apenas ele tinha um guardião e principalmente, segundo a crença de minha vó, o mais frágil agora seria eu.

Com o passar dos dias, percebi que Lulu começou a me olhar mais, me seguia pela casa, eu dizia para ele ir proteger meu irmão, mas ele permanecia sempre ao meu lado.

Minha mãe começou a ter pesadelos com todos os tipos de animais, ela contava que sempre estava rodeada deles, mas não sentia como se fossem amigos. Meu irmão voltou a sentir-se mal, minha mãe chamou o Doutor Alfredo para dar uma olhada nele. O Doutor disse ser apenas um resfriado, receitou

chá, analgésicos e repouso. Os dias passavam e percebemos que meu irmão não melhorava e numa noite ele falava dormindo:

— Não! Não gosto de animais, minha mãe tem razão, vocês não protegem ninguém.

Após as palavras serem ditas, não podemos voltar atrás, mais um ensinamento de minha avó. Lulu que agora dormia em meus pés, levantou-se e pulou na direção da cama do meu irmão, quando ele sentiu o peso do gato, acordou e o bichano estava olhando fixamente em seus olhos e miando, aquele miado de gato bravo, todo ouriçado. Meu irmão sentou de susto ao ver lulu, apenas disse:

— Desculpe Lulu, mas você não pode tomar conta de nós dois, e eu sei quem você protege.

Naquele momento fiquei mudo, não estava entendendo, o Lulu ouvia meu irmão?

Na manhã seguinte, acordei com Lulu lambendo meu rosto, levantei sorrindo, mas quando olhei na direção de meu irmão ele tremia e babava, gritei a mamãe, ela veio correndo e o levou apressadamente ao hospital da cidade. Ficou internado por dois dias, até que nos foi dada a fatídica notícia de que não havia resistido a uma bactéria agressiva em seus pulmões.

Ninguém na cidade conseguia entender como um menino tão alegre e bondoso poderia ter morrido, nunca havia expressado qualquer tipo de doença. Doutor Alfredo procurou nos registros médicos escolares alguma coisa que pudesse explicar, mas nada foi encontrado.

Mamãe entrou em depressão, depois de alguns anos, trancada em seu quarto tendo apenas Julia, sua enfermeira e eu já adulto a seu lado, ela desistiu. A tristeza ou a culpa fez seu coração parar de bater. Simplesmente dormiu e não acordou.

Eu já havia entendido, entendo até hoje, minha vó sabia de tudo e eu continuo com suas crenças, e esse macacão verde vai virar uma ótima roupinha para o Pé de coelho, nome do décimo gato que adotei. Preto, é obvio.

O Lulu foi embora depois que minha mãe morreu, até porque os outros dois gatos da casa haviam voltado logo em seguida da morte de meu irmão. Minha mãe não os jogou fora, fui eu que os levei para longe, fiquei com medo que ela os abandonasse como fez com os cachorros. O Lulu ficou, eu precisava de proteção. Minha avó dizia que o mal sempre pegava o mais fraco, nunca foi superstição. Eu fiz o teste!

Tema: Superstição.

Lucas Baltra
Enviado por Lucas Baltra em 13/08/2020
Reeditado em 13/08/2020
Código do texto: T7034250
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