O LAGO
Matheus tinha acabado de se mudar pela oitava vez na vida e estava cansado daquilo tudo. Daquela vez, três meses depois da mudança, o quarto dele ainda era o único cômodo da casa cheio de caixas ainda por desfazer. O pai era gerente de uma rede bancária em expansão, e sua função era fazer a instalação da agência e ficar lá por um ano ou dois, até que todos os funcionários estivessem totalmente treinados e afinados. Por isso Matheus já estava cansado daquele faz-caixa-desfaz-caixa e tinha decidido deixar tudo como estava, apesar de quase enlouquecer a mãe com aquilo.

Tinha chegado em pleno setembro, escola nova, último ano. Todo mundo se conhecia, todo mundo era amigo, e ele era o novato mais uma vez. Tinha chegado na escola “cheio de marra”, emburrado e arrogante. Já estava careca de saber aqueles conteúdos e desprezava aquela gente do interior. Em breve voltaria para a capital, ele sabia... Vestibular tava no papo e aquela gente seria só vaga lembrança. Mas a galera da escola era gente boa e não ligava para aquelas demonstrações de superioridade: o chamaram mais uma vez para ir à represa aproveitar o sábado de sol. Daquela vez, seja pelo calor sufocante, seja por ter mais uma vez brigado com a mãe, ele resolveu responder a mensagem recebida: “Ok, encontro vocês lá”.

Era época de estiagem e o lago da represa baixara, deixando uma faixa de areia larga que servia de praia. As crianças ficavam na beiradinha, sob os olhares dos pais, mas os adolescentes se arriscavam em lanchas e Jet skys em águas mais profundas. Matheus estava se entrosando bem com o pessoal, pensando que não seria de todo mal aproveitar aquele semestre como férias antes da faculdade. A água era quente e convidativa, e os rapazes pulavam na água dando mortais, espirrando água propositalmente nas moças que se esticavam ao Sol. Aquilo era muito bom, ele iria fazer mais vezes!

Na semana seguinte, perguntou aos amigos se teria o rolê do lago novamente, e a resposta foi que não:

- Não cara, esse fim de semana a gente não vai não... – Começou Paulo.

- Ué mas por quê?

- Nossos pais não deixam. Dizem que na lua cheia não.

- Mas que bobagem é essa, tão com medo do Lobisomem?! – disse Matheus com escárnio.

- Olha Matheus a gente não acredita nessas coisas mas sabe como é... Pra não contrariar os nossos velhos a gente finge. – disse Bianca, a morena de cabelos volumosos.

- Finge o que? Que tem medo do Lobisomem?

- Não é um Lobisomem, ok? É uma lenda local: de que existe uma criatura que mora no fundo do lago...

- Não me diga que é o Monstro do Lago Ness?! – Zombou Matheus novamente.

- Negro D’água. O nome dele é Negro D’água. – disse repentinamente Paulo. E todos ficaram muito sérios.

Matheus de repente parou de zoar e ficou chocado com a credulidade daquela gente. Balançou a cabeça e saiu andando, simplesmente. Bianca veio atrás alguns momentos depois:

- Matheus preciso te contar uma coisa: a mãe do Paulo morreu afogada, e a família dele acredita na lenda... Eu sei que você é da capital, que não acredita e não respeita... Mas tenha um pouco de compreensão. Aqui na galera a gente lembra quando aconteceu, ele tinha sete anos. Então simplesmente a gente apóia ele.

- Isso é ridículo! Superstição babaca!!! Vocês vão ficar alimentando essa paranóia?!

- Olha só: a mãe se afogou para salvar ele. O moleque viu tudo... Fizeram buscas e nada do corpo. Só no terceiro dia, depois que a avó dele enlouqueceu e resolveu se jogar no lago pedindo que o Negro d’água devolvesse a filha é que o corpo apareceu. Aqui na cidade foi muito triste essa história, então por favor... Não precisa acreditar mas também não precisa escarnecer!

Bianca saiu andando e o deixou sozinho no refeitório.

Dias depois, novamente o calor estava de rachar e ele revolveu ir sozinho à represa. Dane-se aquela gente atrasada, ele não ia ficar cozinhando em casa sozinho... Chegando lá, nem uma viva alma no lago, aquele povo levava mesmo aquela história a sério. Ele resolveu mergulhar logo, seja para espantar o calor, seja para provar para si mesmo que era melhor que aquele povo. E começou a nadar, sempre paralelo à areia, na maior tranqüilidade.

As horas se passaram e o sol começava a cair. Matheus boiava de costas tranquilamente e nem percebeu a súbita correnteza que surgiu no plácido lago. Quando deu por si, estava longe da areia, e assustado começou a nadar. Nada que seus anos de natação não resolvessem... Porém, quanto mais ele nadava, mais forte ficava a correnteza. Então ele achou ter visto um movimento na água, próximo. Seu sangue gelou: ninguém sabia que ele estava ali, não havia sequer deixado recado em casa. Ele se deu conta que estava em águas bem profundas, escuras devido à vegetação submersa na construção da represa.

Algo roçou sua perna e ele deu um grito. Algo frio e cruel... Matheus gritou por socorro, sabendo que não havia ninguém para escutar. Em seguida, algo enroscou em seu pé e o puxou para baixo por um breve instante. Gritando estava, e a água penetrou-lhe as narinas e a boca rapidamente. Ele nadou para cima com toda potência, voltando à superfície.

Pensou novamente ter visto movimento e ouvido um risinho...

Matheus nadou em direção à areia mais uma vez, e conseguiu por algum tempo, até que novamente a correnteza o puxou e algo o pegou pelo pé. O medo controlava todos os seus movimentos, retirando toda possibilidade de agir racionalmente. Gritou embaixo d’água, esvaziando os pulmões em bolhas mudas. Mais uma vez conseguiu nadar para cima, o céu já crepuscular lhe dava uma tênue luminosidade para seguir. Não agüentaria muito mais, ele sabia...

Tentou nadar, mas cansou. Resolveu se entregar: se pôs a boiar de costas, chorando e dizendo:

- Me... desculpa! Por favor! Me desculpa...

Ele ficou olhando o céu ficar escuro, a esperança se esvaindo com as últimas nuvens que deixavam seu tom alaranjado para trás. A todo momento ele sentia coisas roçando em suas pernas e suas costas, e tinha certeza de ouvir risos e gargalhadas aqui e acolá. Quando de repente, em seu devaneio, achou ter ouvido um motor de barco pequeno, e resolveu se virar para olhar. Erro terrível: novamente foi agarrado e puxado para baixo, gritando em desespero segundos antes. Nadando com todas as forças contra aquela correnteza descentente, conseguiu vir à tona mais uma vez, sentindo na cara um fluxo de um líquido de cheiro forte que imediatamente reconheceu: cachaça. O homem magro e frágil no barquinho se apressou em puxá-lo para dentro, derrubando mais cachaça na água enquanto acelerava o motor. Matheus sentiu uma pancada no casco do bote, como se quisesse virá-lo. O homem rezava um pai-nosso desesperadamente.

No dia seguinte Matheus recebeu alta do hospital. Nenhum ferimento muito grave, apenas estranhas alergias na pele, vermelhas e inchadas. Na perna direita, a maior de todas as manchas tinha um curioso formato: parecia uma mão com três dedos muito longos...
Dara Pinheiro
Enviado por Dara Pinheiro em 12/08/2020
Reeditado em 16/08/2020
Código do texto: T7033001
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