A Serpente

“Às vezes é verossímil que o inverossímil aconteça.”

-Aristóteles.

Estou trancado em meu quarto. Quarto que testemunhou a violência, o pecado. Vez ou outra ouso espiar pela janela. Vejo-a. Com os braços escancarados, os seios à mostra, um sorriso no rosto. Sua grande beleza pode tanto suscitar sentimentos nobilíssimos fazendo crer-se estar diante de uma Santa, como também, essa mesma beleza, pode suscitar os mais nefastos pensamentos lascivos. Escrevo essas linhas antes que ela decida por fim invadir meu último refúgio, e impingir-me o castigo do qual confesso, sou merecedor.

Ainda escuto o gemido, dores do parto. Minha esposa morreu quando nasceu nossa filha, fruto do mais puro amor. A pobrezinha nascera com a marca da morte impressa em sua alvíssima pele. Um sinalzinho que se assemelhava vagamente a figura de uma serpente. Tornarei a falar dessa mácula, porém faz-se mister falar sobre minha falecida esposa. Como a conheci? Foi minha aluna. Conquistou-me mais pela inteligência do que pela beleza ou pela juventude, ainda que fosse muito bela e muito jovem. Tivemos um casamento feliz, provavelmente porque durou pouco tempo. Quatro anos. Ela se foi e deixou aquela menina, que oriunda de suas entranhas, serviu-me de consolo. Perdi Cecília, ganhei Amanda.

Quando Cecília faleceu eu já não era moço, mas ainda conservava boa parte de meus atrativos físicos, assim como também gozava de uma boa condição social. Houve pretendentes, porém recusei-me terminantemente a me casar mais uma vez. A figura feminina, fosse quem fosse, despertava-me a mais violenta angústia. A empregada que cuidava de minha filha sentiu parte da minha fúria em certa ocasião em que ousou repreendê-la em minha presença. Amanda a havia dado uma resposta atravessada. Uma simples má-criação. Não hesitei em expulsar a emprega baixo uma chuva de impropérios e uns bons pontapés.

Pedi demissão do meu cargo na universidade, e passei a dedicar-me exclusivamente à escrita de meus livros. Oficio que me possibilitou despender quase a totalidade de meu tempo em minha casa. Podia, desse modo, evitar a companhia de qualquer pessoa, exceto a de minha filha, a qual enchia dos mais efusivos mimos. Ensinei-lhe a tocar piano. A música é a mais bela das artes. Minha pequena mostrou-se pessoa de grande talento. Depois a introduzi à literatura, principalmente aos franceses que tanto admiro. Quando Amanda demonstrou interesse por filosofia, mostrei-lhe Schopenhauer e seu fatalismo pessimista. Ela o recusou como parca filosofia de fracassados, e eu dei-me conta de quão tolo fui em apresentar-lhe um filósofo que me era tão caro. Eu era nesse momento um velho rabugento, misantropo, casmurro - o que certamente sempre fora, exceto nos poucos anos em que fui casado. Amanda todo o contrário: era a esperança, a alegria, o amor incondicional à existência. Não poderia ser diferente. Seu nascimento custou a vida de outro ser humano. A vida para ela fazia-se, portanto, um bem bastante oneroso, diferente dos demais, em que a vida é nada além de um simples regalo.

Amanda crescia rápido, tornava-se mulher ainda mais bela do que fora a mãe, e nessa época começaram os problemas. O contraste de nossas personalidades se acentuava cada dia mais, e isso poderia muito bem ser notado em nossa casa, palco caótico em que meus hábitos soturnos pareciam incansavelmente pelejar contra a sua personalidade folgazã.

Eu fechava as cortinas, e logo Amanda as abria, desejosa de luz e ar fresco. Se eu desligava o rádio para melhor me concentrar em meus escritos – uma tesa sobre o antigo filosofo árabe Khalid Abdulkarim – Amanda ligava o aparelho em alguma estação em que tocavam músicas animadas. Se eu a repreendia, e as poucas vezes que o fiz foi da maneira mais branda possível, Amanda encerrava-se em si mesma e se punha a olhar pela janela durante horas. Perguntei uma vez por que tanto lhe interessava a vista horrorosa, e Amanda respondeu-me tão somente com uma misteriosa mudez. Adivinhava seus pensamentos: estava cansada daquela casa, da minha presença, queria sair e conhecer o mundo.

Um dia, em um dos já costumeiros ataques de choro que vinham acometendo a Amanda, notei que a manchinha de nascença que tinha no pescoço havia avançado bastante por sobre sua pele. Recriminei-me por não haver percebido aquela mudança em seu corpo, talvez, supus, houvesse ocorrido de maneira tão lenta, tão gradual, que seria mudança imperceptível para olhos cansados como os meus. Passei a inspecionar diariamente seu pescoço, anotava num livrete a evolução da mancha, que ia também mudando de coloração dependendo da hora do dia. Pela manhã tinha uma cor arroxeada, à tarde ia escurecendo e ganhando contornos mais nítidos e a noite, via-se com bastante clareza a serpente que Amanda carregava no pescoço.

Percebi que as crises de choro, os maus humores, a agressividade que afligiam minha Amanda, aumentavam consideravelmente à medida que a serpente ganhava robustez. Quis levá-la aos melhores médicos, mas temia que a presença de um estranho – ainda que fosse um homem da ciência - pudesse piorar o estado da pobrezinha. Havia deixado de lado meus escritos, minha única preocupação era com Amanda e a serpente que parecia zombar de mim.

Amanda deixara de se alimentar, definhava diante de meus olhos. Decidi chamar um médico.

Como imaginei, a presença do médico piorou o estado de minha filha. Queria arrancar meus olhos para não mais ver aquela maldita serpente que tomava para si a alma de Amanda. Maldita!

Em uma noite de muito calor, tive um terrível pesadelo. Sonhei que uma vez mais inspecionava o belo pescoço de minha bela Amanda, e quando cravava os olhos na mancha, essa se convertera por completo em uma repugnante serpente. A criatura arrastava-se pelo pescoço da mulher, deixando atrás de si um rastro de imundície sobre sua pele. Passados alguns minutos daquele horrendo espetáculo, a serpente aquietou-se, fitava-me com seus olhos hipnotizantes, como se estivesse diante de um rato, esperando o momento certo para dar o ataque que me mataria. Despertei, saltei da cama, atirei-me em meio a escuridão que reinava em minha casa, corri até o quarto de Amanda. Acendi a luz, dormia, aproximei-me de seu pescoço: a serpente! Sim, a serpente estava em seu pescoço! Arrastei-a ao meu quarto, atirei-a em minha cama.

Amanda gritava enquanto eu espremia seu pescoço com todas as forças que possuo, em uma vã tentativa de destruir aquela maldita serpente, aquele parasita que em seu lento labor se apossava do corpo de minha filha! Quando, por fim, acreditei haver esmagado a serpente, deixei meu corpo ofegante cair sobre o frágil e macio corpo de Amanda. Dormi um sono profundo.

Quando acordei no dia seguinte, Amanda já não estava em meu quarto. Fui até o quarto dela, também não estava. Amanda havia desaparecido. Teria agora de acostumar-me com a completa solidão. Engano...

Exatamente uma semana depois começaram os barulhos. Barulhos que se repetiam durante a noite. Acreditava, inocentemente, que era minha filha que retornava à casa. Mas aquela criatura já não era minha filha. A serpente, sim, a serpente apoderou-se definitivamente de sua alma. Eu...eu fui incapaz de lutar contra a serpente...

Vejo-a. Com os braços escancarados, os seios à mostra, um sorriso no rosto. Sua grande beleza pode tanto suscitar sentimentos nobilíssimos fazendo crer-se estar diante de uma Santa, como também, essa mesma beleza, pode suscitar os mais nefastos pensamentos lascivos. Amanda tornara-se a serpente.

Esteban Donato Ardanuy
Enviado por Esteban Donato Ardanuy em 08/08/2020
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