CULTO
Paulo estava doido para dar uma mijada. Por um momento, sentiu que estava prestes a molhar as calças, para então prender um pouco mais a bexiga e apertar um pouquinho mais o volante. Céus! Como queria tirar alguma água do joelho! Olhou para os dois lados e pelo retrovisor, tentando ver se algum carro se aproximava ou se havia alguém perambulando por aquela estrada onde se via cana-de-açúcar de um lado e do outro. “Droga!”, pensou. Não iria conseguir mijar naquela estrada nem se lhe pagassem! Não conhecia bem a região, o que lhe dava ainda mais medo, muito menos sabia quantos quilômetros faltavam para o próximo posto de gasolina.
Desde que o acidente acontecera, tinha pavor de estrada. E foi justamente nessa mesma situação que Paulo conseguiu os gloriosos pinos na lombar. Seu médico havia falado que não era nada grave, apenas não poderia mais correr, pular ou pegar qualquer tipo de peso pesado. E logo ele que adorava jogar bola e se exibir na academia... Mas, deixou os pensamentos de arrependimento de lado. Até porque, não era mesmo sua culpa, era? Não tinha nenhuma parcela de culpa se, há um ano atrás, ele havia parado para mijar na estrada e um bêbado invadiu o acostamento, acertando-o em cheio. Veio em sua mente toda a temporada no hospital, com a imobilização total. Foram dois meses no leito, com direito a uma cirurgia no pé e outra na coluna. Agora, só restava se conformar. Não era sua culpa, era?
Mas ele estava na mesma situação de um ano atrás. Estrada diferente, carro diferente, mas a situação era mesma. Não iria parar para mijar nas canas nem se recebesse todo o ouro do mundo! Ele olhou mais uma vez pelo retrovisor, tentando ver se algum carro o ameaçaria colidir. Já fora um grande avanço ele poder voltar a dirigir, não poderia cometer o mesmo erro mais uma vez. Mas ele tinha que esquecer!
Enquanto isso, sua bexiga reclamava. Paulo pôs os olhos na estrada, vendo o sol de fim de tarde se pôr no horizonte, os pés de canas-de-açúcar farfalharem com o vento que soprava em alguma direção qual ele não conseguia distinguir.
E se ele parasse, rapidinho, para soltar uma água? Ora, não seria nada de mais, os carros que viriam atrás passariam sem desviar de estrada, até porque a porra de um raio nunca cai duas vezes no mesmo lugar, e mesmo com ele não podendo saber quantos bêbados estariam de plantão no volante na região, ele teria certeza que a probabilidade de um deles estar passando nessa mesma estrada era absurdamente baixa, não é mesmo? Mas, droga! Ele não conseguia! Era um de seus medos internos, disto ele tinha mais certeza ainda. Não poderia simplesmente matar o medo de atropelamento com a mesma velocidade com que havia matado o medo de dirigir, ou medo de parar de ver sombras no cabide do armário a noite, quando era criança. Se bem que havia dormido com a mamãe até os dez anos, e mesmo assim esse medo de estrada parecia pior. Era como se houvesse uma placa em suas costas, que girava trezentos e sessenta graus e que dizia ATROPELE ESSE IDIOTA. Também havia demorado para ele perder o medo de sair até na rua, onde os carros obedeciam ao sinal e poucas vezes um louco invadira a calçada. Mas agora era diferente, não era? Foi pensando nisso que ele viu uma placa. Não uma placa de posto de gasolina, mas de uma fazenda.
Paulo vira de longe o que parecia uma grande tábua de madeira compensada, mas na verdade era uma placa, pintada de vermelho e com os dizeres em branco FAZENDA ALJARIANA, TEMOS BOLO E ÀGUA. Céus! Se havia água e até bolo, poderia muito bem ter um banheiro. Ele poderia parar ali, usar a toalete e comprar um bolinho. É mais do que aceitável!
Os pés de cana ainda impediam Paulo de ver a residência que se encontrava mais em frente, e sua gigante expectativa esperava que essa fazenda Aljariana (O que diabos significa Aljariana?) fosse um sobrado bastante arrumado, pintando de branco, com galinhas e porcos se chafurdando na lama e correndo para lá e para cá. Ah, e também uma pequena barraca armada junto da casa, onde se vendiam deliciosos bolos e algumas garrafas de água.
Mas não foi bem assim que aconteceu. A fazenda que ele viu depois de dirigir mais algumas dezenas de metros, era uma construção em um terreno infértil que se estendia como uma mancha no campo de cana. Uma casa desarrumada e feia, mas com algumas galinhas ciscando e, de fato, uma barraca onde se dizia que vendia bolo e água.
Mesmo com esse choque aparentemente inofensivo, Paulo ligou a seta e estacionou no terreno descuidado. Os pneus de seu Chevrolet fizeram o barulho característico e deixaram marcas no chão arenoso. Depois de parar, Paulo desligou o motor e escutou atentamente o silêncio. Alguns pintinhos piavam e o vento batia nas canas como se fosse o fim do mundo. Mas, Deus, era só isso! Quem viveria naquela fazenda terrível?
Mesmo assim, Paulo tirou a chave da ignição e abriu a porta. Sentiu-se bastante disposto. Sua coluna já não doía tanto como meses atrás (A fisioterapia havia realmente ajudado) e ele podia até dar passos largos. Foi assim que ele fechou a porta e começou a andar em direção a casa e a barraca, não sem antes dar uma olhada em todo o terreno a sua volta. A barraca era azul e parecia não ser usada há anos, sem falar que não havia um único bolo em cima do balcão bastante desarrumado. As solitárias garrafas de água morna que ele encontrara ali, estavam tão velhas que o rótulo em seu plástico estava esbranquiçado do longo contato direto com a luz do sol.
Paulo olhou para aquela situação com bastante indiferença, mas a verdade é que não conseguia pensar muito. Sua bexiga estava prestes a explodir. Mais uma vez, pensou em dar uma mijada bem ali, perto das canas. Poderia até entrar mais dentro do canavial para que não fosse visto. “Não!”, pensou, precisava de um banheiro com azulejos, agora!
Examinou a casa em si. Não era tão derrubada como a barraca, mas ainda sim transpassava solidão e abandono. Era constituída por um alpendre em cores verde e marrom, e uma casa de alvenarias também verde, onde se via várias janelas de madeira bem fechadas e uma porta aberta. Aberta... pensou Paulo. Talvez alguém morasse ali. Sim, alguém morava ali e havia desistido de vender bolos e água, assim como também havia desistido de desarmar a barraca.
Paulo se aproximou e tentou ver o interior da casa pelo umbral aberto. As galinhas e os pintinhos piavam a sua volta – dava para ver que foram devidamente alimentados hoje, pelos restos de ração que havia espalhado por todo o terreno – e Paulo não tinha muita certeza, mas podia ouvir alguém falando lá longe, bem distante, como um eco. Sim, ouvia vozes. Alguma voz lutava para se fazer presente no terreno ou nas estradas adjacentes, mas Paulo não conseguia distinguir de onde vinha o som. Parecia que estava a léguas de distância e ainda assim tão próximo quanto o interior da casa. Parecia canções ou rezas...
Ele foi se aproximando da casa e viu um vulto passar pelo meio da escuridão da dentro. Paulo estava começando a ficar com medo. Um arrepio se espalhava por sua espinha, desde o cóccix até o pescoço, e seu estômago se embrulhou um pouco. “Não tenho medo de fantasmas”, pensou. Não tenho medo de fantasmas.. Onde que aquela ocasião incitava fantasmas? E não era somente uma casa vazia, vazia até demais! Mas ele precisava mijar, céus! A urina estava enchendo sua bexiga como uma caixa-d´água que é bombeada sem parar até transbordar!
Subiu o alpendre e se aproximou do umbral. Os pássaros voavam no horizonte e, sutilmente, entravam no canavial. Seu cantar era ouvido ao longe, como se não fizesse parte dessa dimensão. Paulo criou coragem e chamou.
- Oi....! Tem alguém aí?
Esperou por alguns segundos, quase um minuto completo, mas a verdade é que ninguém respondeu ou se deu ao trabalho de responder. Droga, a casa estava tão vazia quanto... Não sabia com o que comparar. Mesmo assim, o vulto que vira passando em meio a escuridão poderia muito bem ser uma pessoa, e mesmo que ela não tivesse tido o trabalho de responder, ela poderia muito bem indicar o banheiro mais próximo onde ele daria uma aliviada.
Olhou para o umbral e para o alpendre onde se encontrava. Apesar de transpassarem tanta solidão e vazio, com certeza havia tido uma faxina recente, exceto no interior da casa, onde... onde algo pegajoso se espalhava pelo chão. Paulo olhou para aquilo com muito mais atenção, sem se dar de conta de que mais uma vez o vulto estranho e indefinido passara pela escuridão.
Ele se agachou e tocou o líquido com a ponta de seu dedo indicador, que ficou sujo de vermelho. Deus! Isto é sangue! Quase deu meia-volta naquele exato instante para entrar no seu carro e dar o fora dali, nem se importava de parar – de preferência a quilômetros de distância dessa fazenda – para mijar nas canas. Ia fazer isso quando escutou um barulho... Era alguém gemendo. Sentiu que, com certeza, alguém estava ferido nessa casa. Céus, um crime! Sem pensar duas vezes – Paulo fora vigia noturno por alguns anos e sabia muito bem como agir em cenas assim – atravessou o umbral e caminhou dentro da casa.
Era composta por móveis sem graça e bastante lustrados. Uma cabeça de bode se achava presa em uma parede, de certo bem empalhada. O sangue se espalhava pelo chão e seguia um caminho que levava a outro cômodo. Estava muito escuro, e Paulo não via nenhum interruptor de luz próximo. Para falar a verdade, olhou para o teto e viu que a lâmpada da sala fora retirada. Nesse momento, Paulo pensou se o agressor não estaria também na casa. Lembrou do vulto, mas, droga, já era tarde demais. Cerrou os punhos e escutou os gemidos, seguidos do farfalhar das canas lá fora e o piar das galinhas. Rezou para que nada de ruim acontecesse com ele. Sentiu a bexiga apertar, mas a adrenalina bem que estava dando uma aliviada.
Seguiu o sangue com os olhos, e então parou em frente a porta do aposento de onde o mesmo saía. O que encontraria se abrisse a porta? Um corpo esquartejado? Uma pessoa ferida? Olhou para trás e para os lados, para ter certeza de que estava sozinho e de que ele não seria a próxima vítima. Pensou no que faria se, de fato, houvesse uma pessoa ferida naquele quarto. Pensou em como a colocaria no colo, a levaria até o carro e em seguida dirigiria até a próxima cidade, mesmo que tivesse que segurar a urina em sua bexiga por muitos mais quilômetros.
Um arrepio percorreu sua espinha, então ele contou de um até três e respirou fundo. Deveria abrir a porta? Ele poderia muito bem deixar isso para lá, entrar no seu carro e ir embora, deixando toda essa cena de violência para o próximo idiota que parasse para mijar naquela fazenda Aljariana. Mas, ele tinha que fazer o que era certo. Seu sentimento de justiça falou mais alto e então ele abriu a porta.
A luz fraca da casa entrou devagar no aposento, iluminando um rio de sangue e um corpo sentado em uma poltrona. O quarto consistia em uma cama de solteiro desarrumada, o assento e uma janela fortemente fechada. O corpo era indescritível. Uma espingarda jazia no colo do homem, e sua cara estava estraçalhada. “Um tiro na boca..”, pensou Paulo. Então ele ouviu mais uma vez os gemidos, mas agora não conseguia distinguir de onde vinham. Foi então que as vozes aumentaram. E Paulo pode ouvir palavras como “Senhor”, e “Altíssimo”, parecia bem um culto de alguma igreja, porém esses cânticos que ele escutava passavam para o ouvinte terror.
Paulo voltou para a sala, e ia saindo pela porta, quando se deu conta de um detalhe: A cabeça de bode não estava mais lá.
- Que porr...
Alguma coisa se esgueirou por trás de si. Paulo não teve tempo de pensar ou se virar, pois uma mão agarrou seu pescoço por trás. Ele tentou se desvencilhar, mas a coisa que o prendeu tinha uma força descomunal. As vozes iam chegando mais perto – ainda estava dentro das canas, pensou Paulo – e ele não queria se encontrar com mais alguém daquela fazenda.
Agarrou o braço da pessoa que o segurava e se curvou, em seguida jogando a pessoa para a frente e a derrubando no chão. O que viu o fez gritar de horror. A pessoa que o segurava tinha vestes comuns pretas – era um homem, mas usava uma máscara de bode terrível. Parecia mais que sua face era descarnada, exceto pelo focinho saliente e os dentes agressivos. Paulo chutou o homem e este soltou um grasnado.
- Socorro!
Gritou, mas ninguém pareceu escutá-lo. No entanto, sentia que as vozes já andavam pelo terreiro, soltando cânticos de louvor a algum Deus sinistro. Paulo se precipitou para a porta, e então viu que havia pessoas ao redor de seu carro. Ele parou no umbral, aterrorizado. Atrás de si, o homem que o atacou começava a se levantar.
Algumas pessoas usando véu negro como a noite usavam martelos e barras de ferro para destruir o carro de Paulo. Uma dessas pessoas havia até subido no capô e quebrava o vidro da frente com uma força que se chegava a ser tétrica. Outra pessoa, mais curvada, furava os pneus. “Droga!”, pensou Paulo. Maldita hora em que havia parado nessa fazenda maldita! O homem atrás de si tentou agarrá-lo mais uma vez, mas Paulo ouviu seus passos e deu uma cotovelada em sua barriga. Em seguida virou-se e deus vários murros em sua face com máscara. O ser caiu, derrotado.
As vozes com cânticos se aproximavam. Paulo conseguiu escutar seu cantar maldito e infernal. Alguém cultuava um deus bode. O Deus Bode morava na fazenda Aljariana. A presença dele fazia com que as pessoas cantassem para ele e matassem qualquer um. Paulo chorou, e então sua bexiga cedeu. Sentiu o liquido quente escorrer por suas pernas. Alguém que estava quebrando o carro olhou para ele e soltou palavras incompreensíveis.
Ele então correu. Correu com toda a força que suas pernas permitiam, sentindo as pontadas na coluna. Estava proibido de correr por ordens médicas, mas Paulo havia esquecido das mesmas no mesmo momento em que vira uma pessoa com a cara arrebentada por um tiro de espingarda. Parou no meio do terreiro e olhou para trás. Uma procissão maldita vinha dos fundos. Várias pessoas vestidas de negro dos pés a cabeça. E, no centro, um homem nu com uma gigante cabeça de Bode. Paulo gritou, enquanto as pessoas que quebravam seu carro grunhiam. A procissão o viu, mas continuou seguindo em direção a casa. Paulo correu para as canas assim que as pessoas que estavam no carro resolveram segui-lo.
Ele sentia os feixes de cana cortarem sua pele, mas não se importava. Afastava os pés de plantação com as mãos e corria, pois, sua vida estava em jogo. Sentiu que alguém o seguia. Aliás, alguém realmente o seguia, desde que havia parado na fazenda para mijar, e havia feito xixi nas calças!
Correu até a coluna reclamar, e então caiu de joelhos, rindo. Rindo, pois sua vida já havia acabado, e ele já poderia dar sua vida para o Deus com face de Bode – Ou o deus com face estraçalhada. Sentiu uma presença – não humana, mas uma presença maior, terrível, que tinha milhas e milhas de altura e que andava pela fazenda. Mas agora ela o seguia até as canas. Ouviu vozes – mais cânticos.
- Oh... Oh! Carmina Sebum! Oh...
Um turbilhão de vozes explodiu em sua mente, e então ele tapou os ouvidos e gritou. Alguém se aproximou. Desmaiou logo em seguida.
Não sabia muito bem onde estava. Abriu os olhos devagar, para então reconhecer o terreiro da fazenda. Olhou para o lado e viu, ao longe, seu carro totalmente destruído. Rapidamente, em um flash, veio em sua mente a dúvida de como mais nenhum carro havia passado por ali. Fazenda maldita, pensou. Maldita. Olhou para a frente e gritou de horror, tentando se soltar das amarras que o prendiam em uma cadeira.
Um homem com cara de bode estava na posição de líder, e várias pessoas vestidas de preto usavam velas que queimavam na escuridão. Já era quase noite.
- Meus irmãos! – Alguém disse – Nossa vida foi dada a Aljar, o Deus Vizinho que nos protege nos dias frios e nos leva a viagens pelo cosmos!
Um turbilhão de vozes gritou. Paulo tentou entender. Era mais uma vez algo como Amen ou Carmina Sebum.
- Me tirem daqui! – Gritou Paulo, a pleno pulmões. Seu grito, no entanto, ecoou por todo aquele mundo escuro e ninguém pareceu escutá-lo. AS vozes continuaram a cantar cânticos, e então o homem com cabeça de bode se aproximou de Paulo. Este gritou, mas o pastor de todo aquele rebanho parou em sua frente. Paulo viu a cabeça de bode falar. Aquele homem era humano?
- Da nobis animam tuam. Amen sebo quod tuetur.
Paulo então entendeu. Tudo aquilo era para adorar Aljar, o Deus de Face Descarnada. Não podia resistir, pois aquelas pessoas iriam mata-lo como sacrifício a qualquer custo. Olhou bem para o bode em sua frente. Viu em seus olhos escuridão de milênios no cosmos, onde sua alma solitária gritaria e o adoraria. Foi inundando pelo terror, e então apenas conseguiu falar:
- Sebo quod tuetur...
AS vozes gritaram. Em um golpe, o Bode enfiou seus chifres na barriga de Paulo e o esviscerou. O intestino delgado mutilado saltou aos olhos de todos. Paulo revirou os olhos nas órbitas e enfim morreu. Todos aplaudiram e começaram a dançar no terreiro, com a alegria de que sabe que os cânticos do sebo nunca abandonam um fiel.
A fazenda festejou por toda a noite. Se recolheram para suas casas e, mais uma vez, esperaram para o próximo sacrifício. Passaram a noite satisfeitos. O Deus os vigiaria, e eles agradeceriam. Sempre. Amém.