A CASA NA COLINA
Nem parecia que a Grande Guerra havia assolado o país. A colina continuava imponente, tomada por seus campos áridos e dotados de vegetações rasteiras, amarelas no sol que fervia o âmago dos viventes. No topo da colina havia uma vila, a vila artesã mais famosa do Condado, chamada por muitos de A Vila dos Rendeiros, apesar de constar no registro geral de estatísticas do Condado com o nome de Santa Lúcia.
Nuvens grossas e sorrateiras dominavam aos poucos o céu, e uma delas, mais ousada, havia até escondido o sol. A vila esfriava em meio à sombra gigante e descansava no meio-dia à pino.
- Parece que vai chover, Senhorita Elizabete.
O criado se chamava Luís e comandava os bois com destreza. Ele trabalhava para o casal Reis e sua missão era levar e trazer a pequena Elizabete em seus passeios. Elizabete não gostava de se molhar. Mal o criado jogara as palavras no ar, uma garoa fina começara a cair. E Elizabete não gostava nem um pouco de se molhar mesmo.
- Já vou me cobrir.
Dizendo isso, a pequena menina armou a barraca na carroça com ajuda de um simples dispositivo criado por seu pai. Agora estava livre da chuva. Assim andaram por mais de um quilômetro, cruzando o vale silencioso em direção à colina. Elizabete era uma garota esquálida que gostava de usar vestidos rosas, feitos especialmente por uma costureira famosa da região. A garota estudava num colégio ordinário da Vila, já que a crise diminuiu a formação de profissionais e o número de escolas por região caiu, o que forçou os pais da garota a matricularem ela numa escola local, para que assim ela não precisasse fazer viagens longas, o que era uma notícia boa para sua saúde frágil.
Cruzar todos os dias aqueles campos áridos era uma rotina para a garota, mas uma rotina que certamente lhe dava prazer. Se tinha amigos ou não na escola, isso ela não sabia responder. A verdade é que a maioria das pessoas sempre a tratavam de maneira igual e concisa: respeito, admiração e reverências. Elizabete sabia que tudo isso era devido à riqueza de seu pai, que fazia com que todos tivessem uma certa mescla de medo com admiração por ela e qualquer um que fosse de sua família. Elizabete sofria de vez em quando, pensando que nunca tinha ideia se alguém a zelava por amizade, interesse ou medo.
A chuva havia ficado muito mais forte. Pingos grossos atingiam a armação e faziam respingar água no vestido delicado da donzela. A garota entrou mais para o interior da barraca, tocando com os nós dos dedos a armação. Seu pai era um inventor. Mas a verdade é que isso para ele era mais hobby do que profissão. Ele era um herdeiro, isso sim, um herdeiro que sempre teve tudo em sua mão e não precisaria se preocupar com nada que não fosse pequenas contas e administração financeira para manter sua fortuna. Durante várias noites, deitada na sua cama cor de rosa, com as luzes apagadas, Elizabete orava baixinho para que o Deus de Face Descarnada a ouvisse. Ela era a herdeira, e todo o plano tinha de dar certo.
Protegida debaixo do armador de carroças, uma invenção de seu pai que fazia com que uma espécie de cabine que se montava e desmontava logo em seguida pudesse ser acoplada em qualquer carroça que levasse um ou mais passageiros. Apenas Elizabete usava isso. Em todo mundo, seu pai era conhecido como um tolo que vivia no mundo da lua, alheio a tudo e enfurnado no seu quarto cheio de materiais construtivos por dia e noite. Ninguém conhecia suas invenções, mas ele se vangloriava, falando disso em qualquer jantar de família, e uma vez até no comício do último candidato a prefeito. Elizabete tinha vergonha disso, e como tinha.
Sua mãe também não era muito diferente, em questão de caráter. Ela não tinha o mínimo de um perfil de uma cientista ou pesquisadora. Na verdade, seu intuito era fofocar. Passava as tardes em sua tenda no jardim, com quatro amigas, igualmente coroas e ricas, fofocando sobre a vida de um e de outro, isso sempre regados a bules e mais bules de chás com fatias e mais fatias de bolos e sanduíches, todos servidos pelo criado Luís.
O criado era o único da casa. Não se deram ao luxo de ter mais de um criado, pois apenas os três moravam na casona da colina. Luís era uma pessoa direta, mas ao mesmo tempo sensível. Gostava de conversar sobre música e literatura, tendo também boas mãos para tocar piano e harpa. Uma pena ele ter nascido em uma família tão desfavorecida, sempre pensava Elizabete. Uma pena.
Deitada no interior da carroça, sentido as leves ondulações da estrada. A garota sentia seu coração bater. Era como se tivesse estado em completa paz, alheia a qualquer penetração de fatores externos. Encolheu-se e pôs a mão no peito, tentando sentir o mais ínfimo calor em meio a tanto frio. Sentiu-se voltando ao feto, a unidade que era com a sua mãe. Mas ela não esperava que o ventre de sua imaginação fosse o de sua mãe real. Não mesmo.
- Estamos chegando, Senhorita Elizabete.
A garota saiu de sua posição fetal tão agradável e colocou uma das mãos em cima dos olhos para enxergar melhor. Sofria de miopia já fazia meses, e seu pai pouco buscava por oftalmologistas na região, que haviam se tornado cada vez mais raros no Condado e em todo o país.
A sua frente, um caminho de terra batida cheia de pedregulhos que faziam a carroça balançar e tornava a estadia no veículo não muito silenciosa. O caminho subia uma colina um tanto íngreme, dando numa vila feia e precária. Mas, num dos lados mais bem cobertos de grama podada e cuidada, estava o casarão de Elizabete. “Ele está logo abaixo”. Pensou, satisfeita.
A carroça começou a subir a colina e Elizabete se deitou novamente, contando os segundos até que a carroça atravessou uma rua da vila. Podia-se ouvir muito bem o burburinho de pessoas se movimentado e reclamando da vida. A garota odiava todos eles. Queria que eles queimassem no inferno e a deixassem em paz com Ele. Era tudo que ela queria.
A carroça que o empregado Luís levava a sua dama chegou a grande casa. Elizabete desarmou o dispositivo da barraca, já que a garoa fina havia deixado de existir no momento, embora o céu ainda estivesse denso de nuvens negras e poderosas. O grande portão de ouro foi aberto, e quando o carro entrou, Elizabete analisou bem as árvores frondosas e secas que compunham o jardim frontal, junto com as gramíneas ressequidas e quase mortas. Era como tudo parecia, morto.
Na varanda do casarão, que consistia em uma grande construção de dois andares pintadas em azul claro deprimente e um branco anêmico, o pai de Elizabete, Sérgio Reis, tentava fazer um dispositivo de telégrafo sem fio (mais uma de suas invenções) funcionar. Ao ver a filha sentada de forma majestosa e impaciente na carroça, enquanto o empregado Luís a estacionava junto com os bois em uma cobertura pintada de um branco igualmente anêmico (agora de uma anemia com ânsias de vômito), o pai parou o que estava fazendo.
O homem, vestido num terno surrado, correu para receber sua amada princesa. Esta ofereceu uma das mãos para que o empregado a ajudasse a descer, mas o pai foi mais rápido e acabou com ele mesmo fazendo isso, mostrando sempre muita devoção à filha mimada, sua única herdeira.
- Minha flor! Como fora seu passeio? – O pai havia acabado de tocar os lábios delicadamente nas costas das mãos de sua filha.
- Foi bem, pai. – Elizabete revirou os olhos nas órbitas, mas o pai estava tão dedicado a checar se a filha estava bem que ele nem percebeu. – Sempre foi bem.
- Que bom.
A garota subiu as escadas e entrou em casa. Sua mãe a esperava, alegre e radiante. Uma de suas amigas – de certo uma das mais assíduas no casarão – a acompanhava e chegou a acenar para a garota, que retribuiu num gesto fingido, mas autêntico. Ela e a mãe de Elizabete trocaram palavras rápidas de despedida, até que enfim a fofoqueira saiu andando em direção ao portão de ouro, com destino à vila e todo o resto. “Alice Mary”, pensou Elizabete, “Rua 37, Número 78. Cínica e dissimulada”. Enquanto sumia de vista, o chapéu azul da visitante teve um brilho estranho, percebido apenas pela garota, como se um raio de sol tivesse refletido nas cores claríssimas das vestes da senhora. Mas não havia nenhum sol para refletir coisa nenhuma, visto que as nuvens negras cobriam o céu. Estava muito perto.
- Minha filha! – A mãe continuava com suas exclamações melosas – Como foi o passeio?
O pai já havia perguntado exatamente a mesma coisa e ela já tinha respondido, mas guardou num lugarzinho já muito apertado de sua paciência o jeito de sua mãe.
- Fora ótimo, mamãe.
O criado ajeitava os mínimos detalhes da carroça enquanto o pai voltava-se para dentro da garagem, pensando em consertar e arrumar todas ou qualquer uma de suas invenções. Elizabete entrou, não sem antes dar uma olhada para o céu. As nuvens negras combinavam com seus sentimentos e seu interior.
***
Sérgio era mesmo um homem sortudo. Nunca precisou trabalhar. Sua vida se resumiu em se formar no colegial e cursar uma engenharia da qual ele nem lembrava a especificação. Cresceu bebendo leite quente das vacas na fazenda de seu avô, o que lhe trouxe um gosto excêntrico por laticínios, mas isso já daria outra história. Sua paixão mesmo era inventar. Comprou essa mansão na vila artesã mais afastada do Condado, apenas para satisfazer seus amores pelas ferramentas e poder se isolar de todo mundo, numa forma de suprir todos os seus desejos e vícios que tinha na ciência e suas intervenções na humanidade.
Mas isto não lhe trouxe absolutamente nenhum crédito. Todas as suas invenções eram inúteis e não passavam de bugigangas que se amontoavam em pilhas de lixo no canto da oficina e no terreno baldio atrás do casarão. Sua fama era de louco. De fato, seu maior ato de sanidade, como atestam os moradores e parentes mais distantes de Sérgio, fora o casamento e o nascimento de sua filha. Quem sabe não teria agora uma reparação nessa nova geração.
Não casou por amor, isto era verdade. Casou por queria que alguém herdasse toda aquela fortuna, assim como ele herdou o monopólio de seu pai. Lídia, sua esposa, era asquerosa e tinha um temperamento ridículo, mas Sérgio tentou ver nas curvas do seu corpo algum detalhe que o levasse ao ato, o resto ele aguentaria num casamento de camas separadas. Enquanto isso, Elizabete, a pequena Elizabete, seria educada da melhor forma possível e não permitiria que o nome do seu pai se levasse pelas águas da vida sem nenhum reconhecimento. Assim ele pensava, pelo menos.
Sua mais nova invenção era O Cortador, uma ferramenta mecânica que permitia ao utilizador que cortasse em formas moldáveis e em diversos pedaços, qualquer objeto que fosse colocado na tábua central. Estava entretido ajeitando mais uma peça cortante de ferro, quando escutou batidas tímidas na porta. Ele já sabia quem era, pois, a mesma tinha o costume de trazer o que ele gostava exatamente no mesmo horário, todos os dias. Continuou apertando mais parafusos, enquanto uma sombra se projetava no salão mal iluminado e passos leves se aproximavam.
- Aqui está, papai.
Elizabete colocou o copo cheio de leite na mesa e esperou o beijo de seu genitor. O homem bebeu um gole do líquido branco e inclinou a cabeça em direção à garota, para em seguida tocar os seus lábios levemente na bochecha da filha.
- Obrigado, filha.
A garota colocou a mãos para trás e a junto, abriu um sorriso cômico e simpático, apertando os olhos. O pai sorriu, pensando em como fora sortudo. Duas vezes. Voltou-se para sua invenção e deixou que a filha voltasse para dentro de casa. Escutou os passos de Elizabete se afastando, mesclado com o som dos trovões lá fora, pela primeira vez no ano, choveria de verdade.
***
Lídia nunca foi muito de ser uma dona de casa. Seu foco era esbanjar e gastar seu dinheiro e de seu marido em tendas caras e comidas bastantes caras e refinadas. Também nunca trabalhara. Conheceu seu marido em uma festa particular que houve na vila na época. Ela ainda guardava o vestido de casamento em uma das gavetas mais altas de um dos seus armários; no entanto, não costumava mostra-lo para ninguém. Era sua única fraqueza pessoal e seu capricho mais intrínseco: ver o vestido que a deixara rica.
Não gostava muito de Sérgio. Para falar a verdade, a única coisa da qual ela se orgulhava de seu casamento, além da riqueza qual ela poderia esbanjar da vida sem maiores dificuldades, era a sua filha. Ter uma herdeira sempre estava nos seus planos, e ela bem queria que sua filhe fosse ambiciosa. Não tinha certeza de se Elizabete era mesmo ambiciosa, mas o modo como ela se enfurnava nos livros e tirava notas altas na escola a impressionava. Tinha a convicção, uma pequena convicção de que, no fundo da inteligência, havia ambição.
Depois de comer mais uma fatia de bolo, pensou em como estava engordando. De fato, uma camada de gordura estava se acumulando nos seus quadris, e sua barriga já não estava tão rente quanto antes, além de seus peitos estarem cada vez maiores. No entanto, não gostava de pensar nisso, preferia pensar que estava se nutrindo e de que não precisaria se preocupar com isso. Poderia muito bem pagar médicos caros e nutricionistas para que revertessem a situação. Se bem que estava meio escasso de profissionais na região...
Oh, como chovia! Parecia que os deuses estavam descontando sua raiva do mundo jogando no mesmo uma carga d’água que parecia nunca ter fim. Ficou observando a chuva, protegida em sua tenda de chá, quando percebeu que uma pequena figura se esgueirava por entre as árvores e se aproximava dela. Era sua filha.
- Oh, Elizabete! O que faz aqui, durante essa chuva? Você sabe muito bem que sua saúde...
- Calma, mamãe! – Disse Elizabete. Tinha a cara sorridente e escondia uma das mãos atrás de si. – Tenho um presente para você....
***
Elizabete sentou-se no quintal e esperou. Não conseguia calcular de forma concisa quantos meses estava esperando para aquele momento. Mas claro, em um eclipse tão raro e num dia tão certeiro... Ela tinha certeza de que iria dar tudo certo. Tinha de dar tudo certo. Ela tinha a certeza encravada no fundo de seu peito assim como.. Bem, decidiu parar de pensar em coisas que não fossem triviais – uma delas era a preocupação com coisas desnecessárias – e então passou a acariciar o livro negro que se encontrava em sua frente.
O Vizinho.. Pensou nesse nome com bastante excitação e expectativa. Relembrou o sonho e o que a fez descer as escadas para o porão naquela noite de chuva, só para encontrar este tão sagrado e ao mesmo tempo maldito livro.
Tinha em si um desejo tão profundo que não conseguia pensar nele sem que seu coração apertasse e seu peito se comprimisse em um grito de ansiedade. Ela queria que o céu se fechasse e caísse sobre o mundo, revelando lá no alto um fundo negro que escondia anos luz de solidão nas entranhas do universo... Ela queria que Aljar revelasse sua face e então desse para ela o domínio de toda a humanidade. Então ela teria para si, junto com o reinado das trevas, o monopólio do planeta.
Ela já tinha lido o livro umas dez vezes de cabo a rabo, mas resolveu, por uma última vez, folheá-lo até chegar na página marcada com uma gota de sangue. Começou a ler em voz baixa, como se numa oração.
“Ver-se-á um Deus grandioso e descarnado.../ Tomado de violenta psicose.../ Levando seus súditos a viagens pelo cosmos...”
Continuou com os versos do Cânticos do Sebo e, quando terminou a última frase, um vento soprou dos vastos campos quais ela via do quintal, um vento quente e de medo. Seu coração gelou e passou a bater mais devagar. Seus olhos giravam nas órbitas e sua cabeça virara em todas as direções que conseguia, tentando identificar de onde veio aquele vento infernal.
Só podia ser ele... Ela tinha muita certeza disso. Uma presença. Isto, sentia uma presença, como se mais alguém estivesse naquele térreo. E então a chuva começou a cair, primeiro em pequenos pingos, para então descambar um aguaceiro de não deixar ninguém na rua. Elizabete apenas esperou. Colocou as duas mãos no peito angustiado e mais uma vez orou baixinho. O poder tinha um preço, agora ela sabia. Não poderia despertar eras de ocultismo sem que perdesse seu lado humano. Uma lágrima escorreu pela sua face, só para ela liberar um pouco desse sentimento enfraquecedor e poder dar continuidade ao ritual.
O vento uivava na colina. Elizabete deu mais uma olhada na vastidão de campos áridos do Condado, que pareciam se estender ao infinito. O que escondia aqueles campos? Pareciam tão tétricos, ardendo de sol a sol e exalando solidão. De certo, pensou Elizabete, ali já devia ter passado uma grande procissão de Driins, tomado por sua violenta loucura e uivando em cânticos do Deus Que Nos Vigia. Foi pensando nisso que Elizabete tirou a lâmina que estava escondida em seu bolso.
Sentiu que alguém estava atrás de si. Mas ela não olhou. Não podia olhar. Apenas, em um gesto rápido, fez um corte superficial no pulso, mas o suficiente para que escorresse um filete de sangue. Elizabete assistiu e sentiu o sangue escorrer bem devagar, enquanto o mundo uivava em sua volta e ela não podia olhar. Deus, ela não podia olhar!
O sangue se juntou em uma gota e caiu na terra. Elizabete pôde assistir toda essa cena sem que seu corpo se movesse um milímetro. Assim que a gota de sangue caiu, ela sentiu. Alguém realmente estava atrás dela. Veio em sua mente as lembranças de quando leu o livro proibido pela primeira vez. A excitação, o êxtase que vivenciou logo após descobrir que não estava sozinha nesse mundo.
E tudo foi com um sonho. O sonho que a guiou até o porão e lhe mostrou exatamente onde estava o livro, só para a garota realmente ir atrás dele assim que acordou, sufocando um grito.
Tinha alguém atrás dela. Ela sabia. O vento uivava e uivava como um lobo a procura de sua matilha. E então ele ouviu seu nome sendo chamada e olhou para trás. Nunca iria se lembrar do que aconteceu.
***
O criado Luís estava ocupado cuidando dos bois, dando-os comida e bastante alimento, já que Elizabete havia contado para ele semana passada, no maior entusiasmo, que os bovinos comem muito para permanecerem nutridos e que, por causa de sua lenta mastigação e digestão, parecia que eles comiam muito mais
Antes disso, Luís havia ido à cidade resolver alguns negócios de seu Patrão. Havia lhe sido confiado um dinheiro referente ao pagamento de algumas contas e ele havia ido até o banco. Agora, tinha de dar mais uma olhada em Elizabete.
Deixou os bois no estábulo e se dirigiu até a entrada. A tenda de Madame Lídia estava silenciosa, mas o criado tinha certeza de que a patroa só saia da tenda depois do horário comercial. Era seu trabalho fofocar. Mas, com essa chuva e vento, parecia que a tenda ia voar junto com as folhas secas. Luís resolver ver o que estava acontecendo.
Assim que entrou, o choque foi instantâneo. Caída no chão, estava Lídia, com uma faca cravada no peito. Tinha em seu rosto um sentimento de negação muito angustiante, parecera que morrera na aflição. Correndo, Luís se aproximou da patroa e testou sinais vitais. Estava mesmo morta, constatou.
A primeira coisa que pensou foi em assalto. Era uma teoria meio duvidosa, mas que na hora pareceu bastante plausível. Luís não vira ninguém entrar ou sair da mansão enquanto ele cuidava dos bois, mas bem que isso poderia ter acontecido enquanto ia ao banco.
Pensando na segurança da família, tirou a faca encravada no peito da patroa e entrou na casa.
- Senhor Sérgio? – Sua voz saiu fraca e amedrontada – Senhor Sérgio, você está aí?
Foi até sua sala. Percebeu no caminho, que o silêncio da casa junto com o temporal terrível lá fora não era, de fato, uma combinação muito animadora. A porta da sala de Sérgio estava entreaberta, e quando Luís entrou se deparou com seu patrão sentado em frente a mesinha, com um copo de leite ao lado. Pela posição da cabeça, parecia que estava olhando de perto suas anotações, mas não emitira nenhum som mesmo com a chegada do criado.
Luís se aproximou, pé ante pé, para se deparar com seu patrão morto na escrivaninha. De sua boca pendia uma gota de leite. Luís pensara em infarto, mas sempre viu Sérgio como uma pessoa de boa saúde. Depois de constatar que ele estava mesmo morto, sua mente só pensava em uma coisa: Elizabete.
Correu pela casa, sem conseguir sinal da garota. Foi no quarto da mesma e viu que a cama cor de rosa e tudo mais estava bastante organizado, sendo que ele não havia entrado ali recentemente. Pelo jeito, Elizabete havia feito tudo sozinha.
Só então teve a ideia de ir para o terreno ao fundo, onde o vento parecia cortante de tão forte. O temporal explodia no céu, e o criado demorou para reconhecer o corpo infantil caído no chão. Se aproximou e acariciou o rosto de Elizabete, como um gesto de gratidão. Gratidão por ser seu servo.
Ele testou o pulso carótida e viu que estava viva. Ao lado de Elizabete, estava um livro que o criado nunca vira em sua vida. Envolveu a pequena nos braços junto com o livro e entrou para dentro de casa.
***
Elizabete foi posta na cama. Luís ainda não entendia quem havia matado seus patrões, e muito menos porque Elizabete estava viva e desacordada ao lado de um livro estranho. Iria chamar a guarda local, mas antes teria que cuidar da garota. Fez uma compressa de água quente e colocou sobre a testa da mesma. Sentou-se numa cadeira próxima e olhou pela janela. A chuva castigava a terra como nunca se vira antes. Luís viu a imensidão dos campos do Condado e suspirou. No seu colo, o livro negro.
Sentiu que não poderia deixar de examiná-lo. Tinha muitas coisas em mente até o vento passar pela fresta da janela. Calmamente, Luís abriu o livro e começou a ler. Aliás, era uma das coisas que mais gostava.