Tana - CLTS 12
Senhor Omin
A noite estava gélida e a brisa batia na janela mais alta da casa, no sótão. A única luz ainda acesa; o computador estava desligado, o livro sobre a mesa e os olhos esbugalhados da garota denotava todo o esforço para continuar a leitura.
— Não pode ir dormir tão tarde – a voz de sua mãe soou no cômodo subitamente.
— Eu preciso terminar este conto, ele é contagiante – rebateu a garota esboçando um sorriso.
— E a escola amanhã é obrigação, está no último ano. Não permitirei que você se atrase – foi dando as ordens durante o acompanhamento da garota à cama.
— Mas mãe...
— Não tem ‘mas’ e nem meio 'mas'. Dorme! – ordenou fechando o livro.
“Os Maiores Contos de Bruxas” – por Gil Batista.
Ao amanhecer a garota pulou da cama. Com os cabelos bagunçados e o rosto inchado, foi direto à escrivaninha. Abriu o livro na mesma página que estava e continuou a leitura. Sem demora fora surpreendida novamente por sua mãe cobrando o horário de aula. Ao finalizar o conto atual fechou o livro e cedeu às vontades de sua progenitora.
No fim da tarde, sentadas à mesa a garota sorriu quando sua mãe informou que teria uma grande festa pelos seus dezesseis anos. O evento aconteceria no próximo fim de semana, data exata do nascimento da menina. Após o jantar a garota subiu aceleradamente para o seu quarto, pegou o livro e sentou-se em sua cama, porém antes de começar a leitura escutou os passos no corredor e levantou sua cabeça, a porta fora aberta devagar e o rosto de sua mãe foi notado.
— Gosta de histórias de bruxas, não é? – questionou com um sorriso maroto.
— Sim – respondeu timidamente.
— Conheço uma história... – ponderou antes de terminar. – Aterrorizante, que aconteceu há dezesseis anos. Quer ouvir?
— Sim, sim – tornou aninhando-se ao colo de sua mãe.
A voz aveludada da mulher tomou conta da imaginação da menina e ela logo começou a imaginar tudo o que era narrado. Seu quarto tornara-se pouco a pouco no lugar descrito pela mãe.
“A noite era tão fria naquele lugar horrível que a pele de um humano comum poderia congelar e quebrar. A demasia de brisa parecia nuvens cobrindo todo o lugar e o chão de cascalho não contribuía para o silêncio. Ruídos e sons naturais causavam um ambiente aterrorizante, porém nada poderia aterrorizar Tana; uma bruxa madura e de corpo sensual, vestida num justo vestido vermelho com uma fenda na perna esquerda que ia até o fim do tecido, um busto decorado com joias e decote provocante.
Caminhava devagar, com os pés descalços. Seu rosto aparentava saúde inegável, pele lisa com rosado nas maçãs do rosto e o vermelho-sangue nos lábios, olhos com pouca maquiagem arroxeada nas pálpebras. Seus cabelos longos e louros estavam caídos nos ombros, perfeitamente penteados. Seu semblante era de ira.
Tana seguiu o caminho de cascalho até o mausoléu da família Andrade. Adentrou o portal que mantinha o local seguro, atravessou o pequeno corredor e desceu as escadas em caracol. Os tijolos crus, quadros fúnebres, um monopólio de teias de aranha sobre os tetos e paredes, roedores correndo atordoados completavam a ambientação deplorável. As escadas eram decoradas com cascalhos presos ao cimento. Nas paredes que rodeavam as escadas encontravam pequenos rubis distribuídos aleatoriamente.
No fim das escadas a visão era comum, caixões perfeitamente colocados em lugares planejados, sob pequenas rochas. O solo frio mostrava um grande círculo redondo no centro do local. Tal círculo exibia pinturas fúnebres e continha cinco caveiras em locais pensados e uma cabeça de cabra no centro. Nas extremidades do círculo continham pequenos pontos negros simétricos às caveiras.
Tana deu a volta no círculo e parou diante de um pequeno altar, contendo uma navalha e um livro fechado. A bruxa pegou a navalha e cortou a palma de sua mão, encostou sua mão sangrando em todos os pontos negros do círculo; conforme seu toque a caveira correspondente ao ponto acendia, após todos os pontos serem tocados, as caveiras estavam ligadas por traços brilhantes que formavam uma estrela de cinco pontas. De volta ao altar pegou o livro, virou-se ao círculo e fez uma reverência. Adentrou o círculo, ajeitou seu vestido e sentou no centro do círculo, em cima da cabeça de cabra.
— Invoco o poder supremo, de todos os espíritos enterrados, de todos os demônios deste local.
Após pronunciar a invocação todas as caveiras abriram a boca e de lá saiu encorpadas nuvens negras que cobriu todo o ambiente; Tana estava sentada em um círculo onde todo o local fora do círculo era coberto por nuvens negras. Na direção do altar apareceram três pontos vermelhos, era deles a atenção da bruxa.
— Senhor Omin, coloco-me diante de seu poder e de sua ira – começou Tana. – Compreendo a lei a respeito da invocação e lhe informo que o motivo de tal ato é considerável.
— Julgarei após suas considerações – a voz de Omin era gélida e cortante.
— Senhor, eu venho informar uma traição! – Gil traiu a lei do sigilo. Informou sobre nossa existência a humanos.
— Traga-me o traidor!
No mesmo instante toda a nuvem negra adentrou novamente às bocas das caveiras, Tana ficou ofegante, o vento causado lhe despenteou.
Gil, o Traidor
O bangalô estava imundo, a cama bagunçada, uma poltrona cheia de roupas, pratos e talheres espalhados sob o cômodo e copos caídos. Garrafas de uísque vazias em cima da cômoda e pelo chão disputavam lugar com os preservativos usados que foram jogados assimetricamente.
A porta do bangalô fora arrombada e Tana adentrou o local. Trajava uma roupa justa de couro, calça e colete, sapatos de cano baixo e cabelo trançado formavam seu visual. A bruxa passou os olhos pelos imundos cômodos do local e os percebeu vazios. Olhou na varanda e somente a vista praiana existia lá. Enojou entrar no quarto, porém pode escutar o barulho do chuveiro.
Gil saiu do banheiro ainda molhado, exibindo os músculos e peitoral bem definido, com uma toalha cinza na cintura. Assustou-se com sua visita que não fora convidada.
— Tana! O... O que faz aqui? – questionou gaguejando.
— Vim cumprir uma ordem – com voz seca.
— Tana... Eu posso explicar, é tudo boato...
Sua fala fora cortada quando Tana estendeu sua mão em direção ao homem, sentiu o ar faltar e sua voz falhar.
— Pensou que eu deixaria sua traição impune?
— Tana... Eu lhe peço... Perdão. Solte-me.
Tana abaixou sua mão deixando Gil engasgar por alguns minutos, logo o mirou novamente. Seus olhos foram dominados pela ira e tendo suas íris dominadas pelo tom vermelho-sangue.
— Você veio vingar o quê, exatamente? – questionou Gil com dificuldade.
— Não percebe o erro dantesco que cometeu?
— Contigo ou com o sigilo? – lançou a pergunta ironicamente.
Balançou os braços brilhantes e uma amarração preta atou os punhos de Tana, que ralhou e gritou por liberdade.
— O traidor é você – disse ofegante. – Jamais escapará!
— Veremos minha doce e deliciosa Tana – tornou provocante. Caminhando para o guarda-roupa continuou – Sabe, eu até gostei de você, de nosso divertimento e mesmo eu não sendo páreo para você, eu tinha total certeza que era capaz de... Te dominar.
— Nojento imundo! Jamais será capaz de me dominar. Não faz ideia do poder que carrego.
Tana olhou para baixo e seus olhos brilharam. Gil já havia vestido calças e estava com a camiseta em mãos, parou abruptamente e surpreendeu-se ao ver que o brilho dos olhos de Tana estava queimando as amarras e seus punhos. O fogo tomou conta da amarra e ao livrar os punhos a bruxa as posicionou de palma para cima e o fogo adentrou nas palmas. Naquele instante seus cabelos apoderaram-se do fogo e prolongou as chamas por todo o seu comprimento.
Gil ficou tremendamente assustado, colocou a camiseta às pressas e correu para a porta, sendo interrompido pelo bloqueio de fogo que Tana provocou. A bruxa o olhou com ira, lançando sobre ele jatos de fogo, Gil jogou-se e rolou no chão, abriu as mãos criando um escudo negro de fumaça.
— Domina-me poder maligno. Tome posse do seu servo. Emerja da escuridão e preencha cada centímetro de meu corpo.
O homem fora pouco a pouco dominado pela escuridão, seus olhos enegreceram e seu corpo tornou-se descarnado. O bruxo possuído gargalhou sombrio e levantou-se. Tana se surpreendeu pela possessão de Gil, não esperava que fosse lutar de igual para igual, o homem sempre fora menos poderoso que ela, descendente real da magia.
Gil se aproximou e seu braço alongado acertou um golpe em Tana, fazendo-a cair, a bruxa colocou as mãos no chão para não despencar, despertando para a realidade. Levantou a cabeça e seus olhos brilharam, levantou e foi para cima de Gil, seus golpes foram defendidos com dificuldade, o homem bloqueava os golpes e tentava contra-atracar, porém o fogo de Tana era um grande inimigo.
Tana parou de atacar de repente o mirou no que seriam os seus olhos. Suspirou profundamente e disse:
— Jamais terá poder superior a mim. Assim como jamais chegará perto de sua prole.
Gil paralisou e olhou para a barriga de Tana, ainda não havia volume. O homem estalou os dedos e um feixe de luz banhou o abdômen da bruxa, brilhou em tom amarelo, tão claro como o sol. Tana deixou uma lágrima escorrer e Gil cambaleou para trás. Oportunamente Tana respirou profundo e abrindo os braços, concentrou todo o fogo em suas mãos e com um berro agudo atingiu o homem com todo o seu poder.
O bruxo foi lançado para trás e bateu fortemente na parede, ao cair seus olhos voltaram ao normal, sua pele foi encarnando novamente e toda a fumaça da escuridão lhe deixou. Gil estava desmaiado, completamente nu. Tana também cessou seu poder, seus olhos de fogo voltaram a brilhar verde-água e a bruxa deu uns passos à frente.
— Poderoso e mestre Omin entrego-te o traidor – conjurou o chamado entre lágrimas.
Tana cortou sua palma da mão novamente e deixou seu sangue escorrer pelo chão. O tremor do solo trouxe a certeza que Tana odiava desejar. Omin invadiu o local e investiu contra Gil toda sua ira; penetrando no solo novamente. Deixando para trás toda a carcaça do que um dia fora o bruxo Gil Batista.
Mausoléu dos Andrades
As lágrimas de Tana escorriam pelo rosto delicado. Estava sozinha, ala leste do mausoléu e com um levantar de mãos o solo tremeu e levantou mais uma pequena rocha, com a outra mão fez o novo caixão levitar e encaixar-se na rocha. Levantou o indicador direito e sua unha tornou-se pontiaguda.
Com a mão tremendo, Tana cravou no caixão as inscrições.
Gil Batista
* 25/10/1953
+ 08/01/2004
Virou em prantos saindo apressadamente do local. O longo e esvoaçante vestido preto acompanhou o movimento balançando descontroladamente enquanto Tana corria sobre os cascalhos das vias do cemitério.”
A mulher parou a narração notando que a menina adormecera. Ela levantou devagar e ajeitou a filha na cama. Apagou o abajur e foi para a saída do quarto. Sorriu com tristeza e soltou os longos cabelos louros.
— Ah minha filha, está chegando a hora de receber todo o legado de nossa família.
Virou-se com os olhos em chamas e fechou a porta do quarto da filha.
Tema: Bruxas.