O Castelo de Vidro - Parte VIII-

O Delegado Kitamura era um homem cético, e à principio ouviu com falso interesse tudo o que ele falou:

_Naquela noite quando a matilha fugiu devido a minha tétrica aparência, pensei em suicídio. Mas, antes precisava voltar à minha origem e pelo menos mais uma vez ver o grande mágico do universo cobrir com seu lenço negro aquele monte de porcarias e transformar tudo em fantasia. Então entrei em uma caçamba à frente de um restaurante e aguardei pacientemente.

Quando a condução chegou, logo fui despejado entre frutas e comida estragadas. Já no lixão, muito cansado entrei em um daqueles túneis cavados pelos porcos; dormi até o fim do dia. Acordei muito fraco, precisando com urgência de proteína viva. Acabei encontrando uma ninhada de ratinhos ainda vermelhinhos: exprimi com os dentes, um de cada vez. Assim, antes de se afogarem no líquido ácido que preenchia o meu estômago, tiveram morte rápida.

Não sei por que essa cara de nojo! Há lugares no mundo que é bem comum comerem essas porcarias.

Enfim, revigorado, subi em uma árvore às margens daquele mar de detritos e feito pluma senti o vento balançar o galho para me ninar em meio a folhas macias e flores coloridas.

Lá do alto da galhada, entre outros bichos no imenso chiqueiro, vi homens, mulheres e crianças: todos pastavam...

O sol ao longe agonizava. Ainda pude ver quando na tentativa de ser içado novamente para o céu, o poderoso astro lançar sobre a margem apodrecida milhares de braços de luzes cintilantes. Tudo em vão: afundou...

Os animais noturnos saíram de suas tocas, e a lua pendurada lá do alto iluminava os milhares de olhos vermelhos, que salpicavam incandescentes as montanhas de lixo agasalhadas pela noite.

O vento trazia de longe o perfume delicado das flores que um dia tive o privilégio de sentir... Vaga-lumes, latinhas e cacos de vidro, brilhavam por toda parte fazendo com que o imenso tapete negro que escondia a sujeira da terra tivesse a mesma beleza do firmamento. Alguns pontos luminosos despencavam suicidas da imensidão do espaço deixando um rastro de neon no grande teto do universo já todo enfeitado de estrelas.

Ao amanhecer, eu adormecia depois de ver o sacrifício do sol em lançar seus tentáculos às margens daquele triste cenário para mais um dia subir aos céus e iluminar a terra. Grandioso rei vestido de dourado, que precisa renovar suas forças para aquecer e alimentar seus filhos. Que seja eterno Menino Deus até que seu tempo, como tudo que é finito, termine, e, enfim, possa adormecer o seu cansaço na escuridão do infinito.

O Delegado Kitamura deu um breve sorriso antes de perguntar:

_Interessante, mas o que você fez para se tornar tão rico e poderoso?

_ Voltei à mansão dos Rodrigues de Avelar. De repente fiquei curioso em saber como estava Alvim. Dei um jeito de me esconder outra vez no sótão e esperar a oportunidade de estar com ele. Contudo, segundo o que eu ouvia, o menino estava muito estranho e cheirava mal.

Os médicos afirmavam que era passageiro, porém, a cada dia ele piorava.

_ E o que aconteceu de fato??? Perguntou o delegado colocando o cotovelo na mesa para apoiar o queixo.

_ Depois de alguns dias, quando tive oportunidade, desci para conversar com o garoto e fiquei sabendo que Alvim estava morto, mas quem estava dentro dele era o espírito da menina Alice. Ele me contar tudo. Falou que já havia passado centenas de vezes pela terra e que por algum erro que jamais deveria ocorrer, sua alma não foi libertada quando o corpo a qual habitava morreu e que de alguma forma deu vida a outra carcaça que deveria estar morta.

O que mais me assombrou foi ele dizer que dessa vez se recordava de todas as suas vidas passadas, e que isso nunca havia acontecido, pois todas as reencarnações, sem exceção, acontecem no momento da concepção e jamais em um corpo, cujo cérebro já fora usado. Tive de contar sobre o transplante e da forma sórdida que seu último corpo foi usado para salvar outro. Ele chorou ao se lembrar da última família, porém, não resisti e falei que para essa finalidade o corpo da menina foi vendido pelo próprio pai.

O rosto pálido do menino ganhou forma demoníaca ao dizer: "Tenho experiência de mil vidas. Vou enganar a todos, mas para isso preciso da sua ajuda. Posso contar contigo?"

Respondi que sim, como sabe, eu não era santo nem nada. O primeiro desejo do doce Alvim depois que eu lhe ajudei a recobrar a memória, foi conhecer o bondoso pai da menina, cujo coraçãozinho passou a bater forte dentro dele.

Continua...

Luiz Cláudio Santos
Enviado por Luiz Cláudio Santos em 02/08/2020
Código do texto: T7024474
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