Um dia o Seu Geraldo acordou com uma sensação muito desagradável no corpo. Não sabia o que era. Sentou-se na cama tentando escutar os próprios pensamentos, mas eles só falavam das coisas que ele precisava fazer no dia e das dificuldades pelas quais ele estava passando na sua vida profissional e pessoal. 
Seu Geraldo sabia que todos os nossos sentimentos são informados por três classes de sentidos que o nosso sistema neurológico reconhece e cataloga: um sentido visual, que transforma tudo em imagens, um sentido auditivo, que transforma tudo em sons, e um sentido de cinestesia que transforma tudo que bate em nossa pele, língua e nariz, em sensações táteis, gustativas e aromáticas. Como o sentido auditivo não lhe dizia nada a respeito daquele estranho sentimento que estava experimentando, ele apelou para o cinestésico. Passou a mão pelo corpo todo, explorando cada milímetro dele, á procura de alguma pista que pudesse lhe dar alguma informação á respeito daquele estado de desconforto que se apoderara dele.
Inútil. As sensações táteis não tinham nada para lhe informar. Nem obteve qualquer sucesso apelando para o nariz, pois todos os aromas que captou eram os mesmos de todos os dias; e quanto aos paladares, á única coisa que sentia era aquele mesmo gosto amargo na língua que não o abandonava desde que ele começara a beber além da conta e a tomar remédios para dormir.

O último recurso seria apelar para o visual.  Seu Geraldo então se postou em frente ao espelho, inteiramente nu e começou a examinar o corpo á procura de algum sinal que pudesse lhe dar alguma informação sobre o estranho incômodo que estava sentindo. Explorou o corpo inteiro, desde as solas dos pés, até o couro cabeludo, que ele examinou com o auxilio de um espelho.
Foi então que ele viu aquela barata subindo pelas bordas do vaso sanitário. Nojenta, cascuda, com as anteninhas vibrando, como se estivesse tentando entrar em contato com ele. Seu Geraldo odiava baratas. Pegou imediatamente um mata-moscas de plástico e começou a bater nela. Derrubou-a no chão e liquidou-a com três golpes do mata-moscas. Depois, usando o mata-moscas como pá, pegou o asqueroso corpinho e jogou-o no vaso. Deu a descarga e ficou a observar o remoinho das águas levando o cadáverzinho nojento para as profundezas do inferno dos esgotos.
 
Como sua vida parecia que estava indo. Não pode evitar a analogia. Estava se tornando alcoólatra e dependente de remédios para dormir. Já não tinha mais vida social. Vivia nas sombras, evitando a luz, como uma barata. Lembrou-se da estranha sensação que tivera ao acordar.
Decidiu continuar a explorar-se para ver se encontrava algum sinal físico que justificasse aquele sentimento.  Nada digno de nota. A não ser aquele pelinho estranho na pestana do olho direito. Um pelinho negro que crescera mais que os outros, projetando sua ponta para fora da espessa moita de fios brancos e negros que formavam as suas fartas pestanas. Parecia uma anteninha de inseto. Seu Geraldo pegou a tesourinha que usava para aparar os pelos do nariz e imediatamente decepou a vantagem que aquele pelinho ousado tinha tomado sobre os seus companheiros ciliares. Esqueceu-se por um momento da sensação de inquietude que o dominava. Tomou uma ducha, escovou os destes, penteou os cabelos, vestiu-se. Escutou de novo os pensamentos. De novo só as preocupações do dia a dia.
Que não eram nada fáceis. Seus negócios estavam indo de mal a pior. Perdera a maioria dos clientes que amealhara em mais de quarenta anos de árduo trabalho. A maldita cultura do descartável. Ninguém mais mandava fazer ternos. Sua alfaiataria, que já fora a mais próspera da cidade, agora vivia ás moscas. Sobrevivia á custas de antigos clientes, que ainda se mantinham fiéis á velha moda dos ternos feitos sob medida, com cortes e tecidos escolhidos á dedo pelo freguês. Mas esses estavam escasseando cada vez mais. Há mais de três anos que seu Geraldo não captava nenhum cliente novo. E nos últimos anos comparecera a tantos funerais de antigos fregueses, que se deu conta de que logo não teria mais algum. O que faria da vida depois disso, ele que só fizera ternos a vida inteira? Caçar as moscas que invadiam sua alfaiataria? Correr atrás das baratas que infestavam sua cozinha?
Quanto á vida pessoal, essa também nada tinha de promissora. Fora feliz sim, até algum tempo atrás, enquanto Dina estava viva. Dina, a sua fiel companheira de quarenta anos!
Dina e a alfaiataria. As duas entraram na sua vida quase ao mesmo tempo. Eram duas relações que se confundiam. Ás vezes Seu Geraldo tinha dificuldades de saber a quem amava mais. Passava mais tempo na alfaiataria, é verdade, onde se sentia realizado, mas quando estava com Dina era a alegria de uma relação estável e feliz que enchia o seu coração. Feliz com Dina, realizado com a profissão que escolhera. Esses eram os dois componentes do equilíbrio emocional do Seu Geraldo e quem o conhecia tinha certeza que eram esses dois fatores que faziam dele o homem amável, simpático e educado que ele sempre foi. Um homem que era capaz de ler Freud e Kafka com a mesma disposição com que lia o jornal diário e conversava com os doutores que encomendavam os seus ternos; e comentava sobre filosofia e literatura com eles com a mesma desenvoltura com que discutia futebol com os ajudantes que pregavam os botões nos ternos e os que faziam as entregas.  

No entanto, Dina morrera há dois anos atrás. Seus dois filhos, um formado em engenharia de produção, outro em administração de empresas, estavam longe. O primeiro trabalhando em outro estado, o segundo tinha se mudado para o exterior. Nenhum deles quis seguir a profissão do pai. Fizeram bem, pensava o Seu Geraldo. Se tivessem seguido a carreira do pai, hoje estariam sem profissão.
Já fazia dois anos que ficara viúvo. Os filhos também já haviam se mudado há mais tempo ainda. A alfaiataria, se durasse mais dois, seria muito. Aquela sensação de incômodo neurológico surgiu novamente. O que fazer da vida naquela situação? Sentia-se uma barata tonta.  
Seu Geraldo olhou para o espelho. Agora eram dois os pelinhos negros que se destacavam nas pestanas, um em cada cílio, formando duas curiosas antenas. Pegou novamente a tesourinha e aparou-os. Passou o pente nelas e foi para a cozinha preparar o café.

Coisa horrível ter que tomar café da manhã sozinho. Seu Geraldo fazia isso há dois anos já, desde que Dina morrera. Mas nunca tinha sentido a plena nostalgia que isso lhe provocava como agora. Cortou o pão para passar a manteiga e reparou nos fragmentos de pão que caiam no piso da cozinha. Lembrou-se do cuidado com que Dina limpava a cozinha. “É para não atrair baratas”, dizia ela, pois uma casa antiga como aquela, que ainda tinha um porão, era um viveiro de ratos e baratas.. Seu Geraldo tomou o café, comeu o seu pão com manteiga, levou a xícara para a pia, lavou-a, guardou os apetrechos com que fizera o café e pegou a vassoura de pelos para varrer a cozinha. Não queria deixar nenhum fragmento de pão no chão. “Para não atrair baratas”, pensou ele, conectando esse pensamento com Dina. "Odeio baratas", murmurou ele, para si mesmo.
 
Dina, Dina. De repente, seu Geraldo sentiu vontade de pegar os fragmentos de pão que caíra no chão com as mãos ao invés de varrê-los, como sempre fazia. Agachou-se e começou a catá-los. Um a um, foi pegando os pequeninos pedaços de pão. Mas ao invés de colocá-los na pázinha com que recolhia o lixo para depositar na lata, ele começou a comê-los. Pareceu-lhe natural fazer aquilo. Andou de quatro pela cozinha toda, recolhendo aqui e ali fragmentos de alimentos que foram encontrados debaixo do fogão, embaixo da pia, nos vãos dos armários. Grãos de arroz, fragmentos de pão, restos de açúcar, quanto restinho de comida não ficavam escondidos pelos cantos mais ocultos de uma cozinha, que ele nunca imaginara que ficassem?
Dina, Dina. Ela tinha razão, era preciso limpar bem a casa. “Para não atrair baratas”. Tudo isso não deve ter passado de um minuto ou mais. Mas ao Seu Geraldo pareceu que tinha feito isso a vida inteira. Todavia, era a primeira vez que ele andara pelo piso da cozinha procurando fragmentos de comida. E comendo-os, o que era mais estranho. E de repente, também, da mesma forma intempestiva com que iniciara aquele comportamento, ele se deu conta do ridículo daquela situação. “O que estou fazendo?”, pensou ele. Levantou-se imediatamente e correu para o banheiro. Lavou as mãos com água e sabonete e escovou os dentes. Depois bochechou um antisséptico bucal, pensando na estranha sensação que sentia. Não estava com nojo. Apenas perplexo por ter praticado um comportamento tão bizarro.
Quando foi ao quarto para pegar a carteira com os documentos, Seu Geraldo se deu conta de que não estava com nenhuma vontade de sair naquele dia. O quarto estava na penumbra, pois ele não havia aberto a janela nem acendido a luz. Esticou a mão para o interruptor e acendeu a lâmpada. E imediatamente sentiu que ela o incomodava. Apagou-a imediatamente, dirigiu-se para a janela e começou a abrir as cortinas. O sol feriu seus olhos com uma intensidade tal que ele teve que fechá-las imediatamente,  com a rapidez de uma pessoa que tivesse percebido que alguém estivesse prestes a atirar nele com uma arma de fogo. Sentiu que gostava da penumbra. E a que luz o incomodava.
Sentiu-se tomado por um imenso medo de sair de casa. O que seria aquilo que estava acontecendo com ele? Talvez estivesse ficando doente. Adquirira uma fobia?  Estaria com febre e tendo alucinações? Passou a mão pela testa.  Não, não tinha febre. Foi ao banheiro, lavou o rosto. Enquanto passava a mão pela pele flácida e pálida do rosto perplexo que via no espelho, tateou novamente duas pontas salientes nas sobrancelhas. Olhou-se no espelho. Elas estavam lá de novo, as anteninhas salientes, e agora mais espetadas do que antes. Seus olhos também estavam diferentes. Estavam mais arregalados, inchados nas órbitas e com uma cor estranha, entre um branco opaco e um amarelo bilioso. Sua boca também lhe pareceu mais enrugada, ressecada como um peixe que ficou muito tempo na grelha, e seus dentes tinham a aparência de pequenos tentáculos que se fechavam com um movimento de pinças e não com o sobe-desce de martelos de moinho em processo de maceração, como ele sempre achava que a dentadura se parecia quando mastigava os alimentos.  
“Credo”, pensou o Seu Geraldo. “Acho que estou mesmo ficando louco.”
Mas tudo aquilo devia ser apenas uma alucinação. Aquela vida solitária e sem perspectiva estava começando a cobrar seus efeitos. Afinal, a sua  nos últimos dois anos, tinha sido uma vida de barata doméstica, como ele mesmo dizia aos poucos amigos que ainda lhe restava. Da casa para a alfaiataria, da alfaiataria para casa. Em casa somente a companhia da televisão ou de um livro. No trabalho a máquina de costurar, o giz para marcar, a régua, a máquina de corte, as linhas, as agulhas, dedais, chumaços de algodão para as ombreiras. Pouca ou nenhuma luz do sol. Pouca ou nenhuma companhia humana. Sanduíches no almoço. Fragmentos de comida pelo chão, que precisavam ser recolhidos diariamente.  As moscas que se ajuntavam e ele tinha que persegui-las pelo aposento, com um mata-moscas na mão. Vida de barata doméstica. E, no entanto, ele tinha horror á baratas.
Lembrou-se do seu papagaio, única presença viva que ainda mantinha em casa. A única criatura com quem ainda podia falar. Precisava dar-lhe ração e água antes de sair. Geraldinho, era como ele o chamava. O papagaio vivia em uma gaiola no quintal. Completamente domesticado, sua gaiola ficava aberta e ele tinha liberdade de passear pela casa inteira. Fazia a maior festa quando  o dono ia visitá-lo pela manhã, levando água e ração. Seu Geraldo pôs um par de óculos escuros, para evitar o incômodo do sol, e saiu até o quintal. A luminosidade parecia incomodá-lo cada vez mais. Mas assim que ele aproximou-se da gaiola do Geraldinho, o papagaio imediatamente saltou de dentro da gaiola e foi empoleirar-se no telhado. E lá ficou, por uns instantes soltando gritos desesperados, como se tivesse acabado de presenciar alguma coisa extremamente assustadora. E de repente, sem nenhum aviso, ele voou para cima do Seu Geraldo e começou a atacá-lo com uma fúria que ninguém julgaria que ele fosse capaz.
Seu Geraldo conseguiu livrar-se do papagaio com muita dificuldade. E não sem alguns ferimentos pelo rosto. Geraldinho enlouquecera. Diabos. Será que naquela casa todo mundo estava ficando louco? Ele, tendo alucinações e comportamentos estranhos. O Geraldinho, de repente, não o reconhecia mais e se tornara agressivo.
Decidiu que naquele dia mesmo ia procurar um médico. Antes,  foi ao banheiro para lavar-se e fazer uns curativos nos ferimentos que as bicadas do Geraldinho lhe dera. Mas quando se olhou no espelho seu coração disparou e o susto o fez retroceder com um salto. Entendeu imediatamente porque o papagaio o atacara. Não tinha mais um rosto humano. Ele era agora uma gigantesca, nojenta e horripilante barata, cascuda e com duas varetas pontudas como antenas de automóvel a balançar em sua testa.  .

Seu Geraldo foi encontrado morto em casa três dias depois.  A perícia concluiu que ele escorregara no banheiro e batera com a cabeça no vaso. Sofrera uma fratura de crânio. Os vizinhos só se deram conta da sua morte por causa do cheiro horrível que saia da casa. Foi enterrado sem pompas e quase sem nenhum amigo a acompanhar o corpo até a última morada.    
A casa dele está fechada até hoje. Só os seus vizinhos é que reclamam muito que suas latas de lixo, pela manhã, aparecem sempre reviradas e que um cheiro fétido, de restos de comida e coisas mortas, costuma sair da casa onde ele morava. Mas ninguém teve coragem de ir checar o que há lá dentro, pois há quem diga que a casa é mal assombrada. Dizem que lá habitam imensas e horripilantes baratas, cascudas, nojentas e canibalescas, que só podem ser vistas de noite e de dia se escondem na escuridão do porão, que, segundo dizem algumas pessoas que se aventuram a olhar pela grade de ventilação, parece a antecâmara do inferno.