O Duplo

Não aguentava mais aqueles moleques chatos. Esse foi o verdadeiro motivo, mas quando pediu demissão de seu cargo de professor, explicou, com ares solenes, que precisava de tempo para dedicar-se ao seu oficio de escritor. Trabalhava já há alguns meses num conto chamado A Vingança da Bruxa. O título não era muito auspicioso, mas Esteban Donato Ardanuy se defendia com uma explicação bastante simples e pouco original: “bruxas, é disso que as pessoas gostam”.

Um colega de copo, Mecenas pobretão, tomando conhecimento das aspirações literárias do companheiro, prontamente ofereceu-lhe emprestada uma casinha que possuía em sua terra natal, sítio ideal para concluir tão importante obra literária. Um lugarzinho aconchegante, de gente discreta e ordeira. A casa ficava em Tuntum, cidadezinha de nome onomatopeico, encravada no coração do Brasil, com menos de três mil habitantes. Não chegava nem perto do chalé nos gélidos Alpes suíços que Esteban almejava, mas dava pro gasto, aceitou a oferta.

Cansado depois de trinta e duas horas dentro de um ônibus, sentiu-se regenerado assim que pôs os olhos na casinha. Ficava na rua principal. Uma rua de terra, poeirenta, margeada por casinhas de fachadas acanhadas, uma igrejinha, um barbeiro – que acumulava também a função de prefeito da cidade – e um boteco. Paz, por fim um pouco de silêncio para escrever minha Magnum-Opus!

A casa tinha dois quartos, sala, cozinha e bem pouca mobília. Ótimo, Esteban só precisava de uma cama; uma estante com os livros de onde tiraria uma ou outra frase de efeito; uma mesa; uma cadeira e sua máquina de escrever, modelo Hansen Writing Ball, que com suas linhas curvas ofereciam grande conforto para digitar. Preferia máquina de escrever a um notebook. Nenhum grande escritor jamais houvera escrito um bom livro num notebook. He! He! He! Ria imaginando o colossal Dante escrevendo seu Inferno num computador. Impossível, ou era com caneta bic ou era na máquina de escrever.

Os dois primeiros dias passou de bobeira. Deixou A Vingança da Bruxa descansando sobre a mesinha. No terceiro, acendeu um cigarrinho, tomou um gole de café e sentou diante da máquina. Inseriu o papel na máquina, pressionou o botão giratório do cilindro, alinhou o papel. Depois posicionou os marginadores para delimitar os limites laterais na escrita da folha – as margens. Com tudo preparado, iniciou a escrita: “Aquela foi a minha primeira viagem de barco. A saída de Manaus é muito bonita, as águas do Rio Negro e as do Solimões, avessas uma a outra, correm juntas sem nunca se misturar....”. Nada mau. Dá pra melhorar, mas também dá pra piorar. “O rio fica dividido, escuro de um lado e claro do outro. Escutei, certa vez, que ninguém pode se banhar duas vezes num mesmo rio, pois quando se entra nele a segunda vez, não se encontram as mesmas águas e mesmo o banhista já se modificou”. Que parágrafo! Arte!

Estava caminhando com passos firmes para o terceiro parágrafo quando soou a campainha.

Foi até a porta. Não havia ninguém. Olhou ao redor, o único que havia na rua era um cão vadio que dormia tranquilamente. Mesmo o boteco do outro lado da rua estava vazio. Voltou-se algo molesto para dentro da casa, sentou-se novamente diante da máquina de escrever: “Imagino as incríveis memórias de longínquas épocas que esses rios encerram. Época em que enormes navios ingleses singravam suas águas, carregando toneladas de borracha à Europrimmmmmmmmmmmm primmmmmmmmmm primmmmmmmmmm”. A campainha novamente.

Correu até a porta. Nada. Esteban soltou um insulto, o cão despertou, e vendo o forasteiro, latiu. Exceto pelo cão que logo emudeceu e retornou a sua sesta, a rua toda jazia num silêncio azulado. Por hoje já não escreveria, perdera a concentração.

No dia seguinte, despertou com o cocorocó distante de um galo. Bem disposto, antes mesmo de coar o café, sentou-se diante da máquina, e quando seu indicador se ergueu, pronto a pressionar um A, a campainha tocou. Esteban, irritado, pegou um cabo de vassoura e foi à porta pronto a arrebentar a cabeça do engraçadinho inconveniente. Mas ocorrera o mesmo que no dia anterior. Ninguém, nem mesmo o cão estava na rua, deve ter procurado um lugar mais sossegado para o descanso de todos os dias. Gente ordeira e discreta, repetia entre os dentes a fala do seu amigo cachaceiro. Uma ova! O Sol matutino inundava a rua encardida, e Esteban correu a máquina de escrever para registrar aquela bela imagem. Difícil tarefa essa de transpor em palavras sensações tão sublimes. Assim que sentou diante da máquina, a campainha voltou a soar, primmmm...primmm.....primmmm...., e uma vez mais, ninguém estava à porta. Como ninguém? Impossível, será que essa campainha tem algum defeito? Se a campainha soou, é porque alguém está à porta. Ou aqui, em Tuntum, existem espíritos zombeteiros?

Encucado com a campainha, Esteban teve terrível pesadelo naquela noite. Sombras longas e disformes entravam pelas frestas da janela, essas sombras carregavam campainhas que ressoavam num ritmo descompassado, primmm...primmm....primmmm. Quando acordou, um vento forte soprava desde o Norte. Teve a sensação que a casa toda tremia, que o teto sem estuque com os caibros à mostra cairia sobre sua cabeça. O vento, será que o vento toca a campainha? Mas não ouviu campainha alguma durante toda a ventania. Esteban Donato passou os dois dias seguintes sem escrever uma palavra sequer.

Era domingo quando o escritor se sentou diante da máquina de escrever. Havia fumado um maço de cigarros e tomado um litro de café. Estava inspirado, terminaria o conto naquela mesma tarde. E quando terminou o terceiro parágrafo, que ficou demasiado longo e cansativo para seu público - malditos leitores - a campainha soou. Primmm... Primm... primmm. Esteban decidiu ignorar, o engraçadinho se cansa, perde a graça e me deixa em paz. Porém, os prim... primm...primmm... primmmmmmmm... ficaram tão insuportáveis que o escritor deu um soco na mesa, pegou uma faca na cozinha, correu até a porta, e ninguém. Ninguém estava à porta. Sangue! Sangue! Vou matar o desgraçado que toca essa maldita campainha!

Um anu branco, sentado em uma gameleira centenária, vendo a cena que se desenvolvia na pacata rua, pôs-se a cantar “ui...ui...ui...ui”. A natureza parecia debochar do escritor.

Aquela cena se repetiria por meses, sempre que Esteban tocava na máquina de escrever a campainha soava, e nunca, nunca ninguém estava à porta. Não há ninguém, devo estar ficando tã tã. Em outubro praticamente desistira de sua empreitada, sentado com os ombros caídos e o olhar prostrado, amargava a vida de desempregado que tinha diante de si. Se ousasse fazer menção de escrever, logo vinha o diabólico barulho da campainha. Imaginava quem era o desgraçado que tocava a campainha. Ora imaginava-o um Hércules de proporções monumentais, ora via-o como uma jaguatirica cor-de-rosa. A imaginação de um escritor pode ser bastante prolifica.

Era dezembro, o calor fazia-se insuportável. Precisava de algo para umedecer a goela. Lembrou-se do boteco do outro lado da rua, e veio a sua mente um plano que de tão simples, certamente daria bom resultado. Passaria o dia inteirinho no boteco vigiando, e quando o engraçadinho aparecesse para tocar a sua campainha, surpreendê-lo-ia em flagrante. Sim, e daria uma boa surra no condenado. Esteban Donato alisava o cabo de vassoura de ucuubeira, que serviria de muito bom porrete.

Quando Esteban Donato entrou no boteco, todos o olharam de cima a baixo. Quem seria aquele estranho que mais parecia um bicho: longa barba, cabelo emaranhado, as unhas tão longas que mais pareciam garras de águia. O boteco era pequeno e abafado, por trás do balcão haviam prateleiras onde as garrafas de rótulos coloridos repousavam tal como santos num altar. Esteban encostou a barriga no balcão, escolheu uma cachaça chamada Zizi. O dono do balcão serviu no copo americano, o escritor estalou a língua. Depois pediu cerveja e pururuca com limão. Enquanto bebia pensava coisas, muitas coisas, e quase se esqueceu do primmm ... primmm da campainha. Não preciso conhecer o porco para disfrutar pururuca. Talvez eu precise de um pseudônimo, para ler A Vingança da Bruxa não faz falta que me conheçam. Ângelo, Ângelo Ardanuy poderia ser meu pseudônimo. Não, isso é nome de bicha. Talvez Carlos, Maurício, Rodrigo, Lovecraft...dezenas, centenas, milhares de nomes iam desfilando alegremente pela cabeça de Esteban Donato, todos exibindo suas vantagens e tentando ocultar suas desvantagens. Todo nome traz benefícios e malefícios para o sujeito que é possuído por eles. O Sol abandonava seu posto, e as sombras iam cobrindo toda a terra. Esteban pagou o dono do boteco, cruzou a rua e ficou parado contemplando o que fora pelos últimos seis meses seu refúgio do mundo exterior. De repente uma luz se acendeu. Sim, uma luz da casinha se acendeu, era a luz do cômodo onde estava a máquina de escrever.

Conseguiu ver a silhueta de um homem que fumava um cigarro enquanto procurava algum livro que tinha na estante. Esteban arregalou os olhos quando viu que o homem pegava seu livro Ficciones do escritor argentino Jorge Luis Borges. Passou alguns minutos assim, até que abandonou a leitura e sentou-se diante da máquina, da sua máquina Hansen Writing Ball.

Esteban esperou que o homem começasse a escrever, aproximou-se reverencialmente à campainha e tremendo de emoção, tocou...primmmmmm...primmmmm...primmmmmm. O homem dentro da casa, bastante irritado, levantou-se de um salto, e antes que o sujeitinho metido a escritor alcançasse a porta, Esteban saiu correndo o mais rápido que pôde.

Enquanto Esteban fugia, os pinguços no boteco ouviram-no gritar:

-He!He!He! Que idiota esse tal Esteban Donato Ardanuy! He!He!He!He!

FIM.

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Esteban Donato Ardanuy
Enviado por Esteban Donato Ardanuy em 29/07/2020
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