O CORDÃO DE PRATA
Desde muito novos, meu irmão e eu éramos fascinados pelo sobrenatural, por histórias e filmes que versavam sobre o tema. Colecionávamos gibis e livros, não perdíamos as antigas séries televisivas que passavam exaustivamente nos finais de noite às sextas-feiras. A despeito do horário estendido, nosso pai não se furtava em fazer vistas grossas diante de tal rotina. Ele sempre fora um pai muito condescendente e participativo, mas ficara ainda mais emotivo e flexível depois da morte de nossa mãe. Ainda que não admitisse, ele se culpava por sua morte, uma vez que, num ato impulsivo, ele reagiu a uma tentativa de assalto e um dos bandidos disparou a esmo antes de ser atingido pelas balas da arma do meu pai. Todos nós sabemos que insurgir-se diante de tal cenário sempre é uma temeridade, mas, como policial, seria uma tarefa quase impossível não opor-se frente a uma ameaça. Era um comportamento inerente à sua profissão.
Era difícil para ele perder a esposa numa tragédia como essa, mas o estoicismo sempre o moldou, de modo que tomar para si a incumbência de criar os filhos gêmeos tornara-se sua missão de vida. E ele a cumpria com esmero até que os dedos da fatalidade colocaram-se no caminho de nossa família mais uma vez.
No nosso aniversário de treze anos, ganhamos o melhor presente que poderíamos desejar: um cordão de prata. Mas não era um adorno qualquer, tratava-se de uma belíssima corrente formada por elos longos e ovais alternados a outros menores e esféricos. Porém, o melhor respondia por um pingente sem igual, uma legítima bala de prata calibre .45. Além de muito dinheiro, nosso pai teve de recorrer a antigos contatos para solicitar a encomenda tão incomum.
Não poderíamos ter ficado mais felizes, pois a partir daquele momento passaríamos a ostentar em nossos pescoços a mais poderosa arma contra os demônios da lua cheia. Era um simbolismo sem comparação para garotos fascinados por lendas sombrias.
Naquela noite fomos jantar no mesmo restaurante que frequentávamos em datas festivas. O local não distava muito da nossa casa no subúrbio e sempre insistíamos para ir lá, não por conta da comida propriamente dita, mas sim porque as sobremesas eram incomparáveis. Pela distância e pela qualidade de vida, fomos andando como sempre e voltamos pelo Parque Esmeralda, um imenso campo aberto para o lazer e práticas esportivas que se interpunha entre o nosso bairro e o centro da cidade.
O Parque Esmeralda, como boa parte dos ambientes similares nos grandes centros urbanos, era um belo local, mas pouco recomendado à noite. No entanto, meu pai conhecia bem a cidade e seus pontos perigosos e sabia exatamente os espaços a serem evitados. Naquela ocasião, seguíamos pela Alameda Sul, a qual circundava a orla do lago, sendo ornada por uma ciclovia recém construída e por inúmeros bancos ao longo de todo o percurso.
Foi justamente num desses bancos que as nossas vidas sofreriam uma nova reviravolta. Meu irmão foi o primeiro a perceber e apontar. Caída junto a uma das estruturas de metal e madeira estava uma moça. Nos aproximamos um pouco, então nosso pai pediu que esperássemos. A mulher chorava e gritava de modo espaçado. Ele se abaixou para ajudá-la, mas foi atingido por um golpe certeiro na altura do peito. Ele caiu e foi a nossa vez de gritar. A mulher se colocou de pé, a iluminação do poste de energia elétrica incidia diretamente sobre ela e, apesar do reflexo anormal de seus olhos, a fisionomia era perfeitamente humana. Mas ainda assim, sabíamos perfeitamente o que ela era. Meu irmão, num ato reflexo e, devo dizer, providencial, sacou o aparelho celular do bolso e capturou a imagem da mulher.
O flash emitido pareceu irritar ainda mais a estranha e ela ameaçou partir em nossa direção, mas, graças aos céus, surgiu um grupo de ciclistas fazendo com que ela abrisse mão do ataque e corresse, ainda aos gritos, para o meio do bosque. As pessoas largaram as bicicletas e vieram em nosso socorro. Nosso pai estava morto. Quatro incisões estreitas e profundas dilaceraram seu coração, lavando de vermelho o chão ao redor do seu corpo.
Para a polícia dissemos o que havíamos visto, obviamente excluindo o teor sobrenatural das nossas suspeitas, pois, de certo, não seríamos levamos a sério de qualquer modo. As investigações, superficiais, é bom que se diga, apontaram para um ataque com uma lâmina, um punhal provavelmente, devido à característica de laceração dupla. A polícia investigou, mas não encontrou nenhuma suspeita e o caso foi deixado de lado em detrimento a outros tantos que surgiam todos os dias.
Nós nunca mostramos a ninguém a fotografia da mulher, uma vez que mesmo que fosse encontrada, julgada e condenada, ela nunca ficaria encarcerada por muito tempo. A maldição que a acometia não permitiria que algo demoníaco ficasse preso. Não. Somente o misticismo da prata seria capaz de domar suas vontades e ceifar sua vida. A partir daquele momento, desenvolvemos o nosso próprio projeto de vida.
Ouvi ou li em algum lugar que a prata tornara-se odiosa a partir do momento em que Judas praticou a vil traição em favor das moedas. Besteira, em minha opinião. A prata só é maldita para os demônios, para os seres da noite, pois todos eles temem o metal, então, se teve alguma intervenção na nobreza do material, só pode ter vindo dos céus.
Uma vez órfãos, ficamos sob os cuidados de uma tia, irmã da nossa mãe, a única parente que tínhamos. Ela era uma boa senhora, viúva, religiosa e bem-intencionada. Ela administrava a pensão que nos fora deixada, guardando quase tudo numa poupança no banco, fazendo uso de uma quantia mínima para algum gasto fora da normalidade.
Passávamos quase todo o tempo entre o percurso da escola e o desenvolvimento do nosso plano de vingança. Como em qualquer retaliação, o tempo alimentava o rancor e torcia ainda mais a faca da angústia fincada na alma. Não demorou para que encontrássemos a mulher através de uma pesquisa pelo seu rosto nos motores de busca das redes sociais. Ela tinha um nome, uma vida social, amigos, trabalhava. O demônio que matou nosso pai era professora de um colégio em classe infantil, por mais incrível que isso pudesse ser.
Se tem uma coisa que sabemos acerca dessas feras é que não adianta infligir contra sua vida em forma humana, pois, mesmo depois de enterrada, ela voltaria do inferno em forma de uma besta sanguinária mais uma vez. Como eu disse, a prata, essa sim, seria eficiente contra sua existência, desde que ela mostrasse a sua verdadeira face.
Nós a vigiamos de perto a cada ciclo, a cada mês, a cada ano, até que tivéssemos a capacidade e a aptidão necessárias para acabar de vez com ela. Nosso pai, talvez como se tivesse antevendo o futuro, sempre nos preparou para eventualidades. Ele nos incentivou e nos preparou para combates corpo-a-corpo e continuamos a treinar mesmo depois que ele se foi. Por mais absurdo que possa soar, ele nos ensinou a atirar e ainda sabíamos onde suas armas estavam guardadas. Assim, quando completamos dezoito anos e tivemos acesso ao dinheiro economizado nos últimos cinco anos, tratamos de por em prática o nosso plano. Nossa tia se foi na mesma época, que Deus a tenha, e passamos a contar só um com o outro.
Uma coisa que havíamos aprendido sobre as bestas da lua cheia, era que elas sempre voltam ao ponto de sua primeira transformação a cada ciclo e, observando a mulher, descobrimos que aquela noite fatídica fora a sua iniciação na maldição. Ela voltava sempre ao local do assassinato do nosso pai a cada ciclo, algumas vezes na primeira noite e em outras na última. Talvez daí a lenda em nosso país de que o demônio é obrigado a percorrer sete paragens antes de se tornar humano ao nascer do sol.
Outra percepção é a de que diariamente desaparecem muitas pessoas. Indivíduos que abandonam suas vidas sem causas aparentes e que nunca mais voltam a serem vistos novamente. Aqui, posso garantir, que muitos deles acabaram na garganta de tais criaturas ou de outras que apenas flertam com o imaginário comum, mas que na verdade perscrutam as sombras em busca de desavisados.
Mas nós não éramos desavisados, ou despreparados. Encomendamos munição de prata para calibres .38 e .45 no mesmo armeiro conhecido do meu pai. E, no ciclo seguinte, estávamos de tocaia no ponto que sabíamos que ela apareceria.
A noite estava extremamente fria e silenciosa. Cada um de nós permanecia num ponto oposto ao banco na Alameda Sul. As horas se passaram sem que nada acontecesse, talvez ela viesse só no fim do ciclo, afinal. Foi então que percebi uma movimentação, mas não onde eu estava, e sim imediatamente às costas do meu irmão. Era impossível atirar sem atingi-lo, então só me restava correr em sua direção tentando chamar a sua atenção, mas não deu tempo. O demônio saltou sobre ele, cravando os dentes em sua omoplata. Eu atirei, mas sem atingir o alvo. Eu gritava o nome do meu irmão.
Eu achava de verdade que ele seria devorado pela criatura, porém algo aconteceu e a besta correu, largando-o no chão. Foi então que eu entendi, a fera havia sido tocada pela prata do cordão que envolvia seu pescoço, mas o ferimento aparentava gravidade. Peguei-o no colo, coloquei-o no carro e parti o mais rápido que pude rumo a um hospital.
O dia estava amanhecendo. Olhei para ele e percebi o pior: o ferimento estava cicatrizando rapidamente e eu sabia o que aquilo significava. Fiz o contorno na avenida, desisti do centro da cidade e voltei para o subúrbio na direção de casa. Quando chegamos, apesar de ele ainda estar desacordado, só havia uma marca escura sobre a sua pele.
Ele ardeu em febre durante toda a manhã, entretanto, quando despertou nada mais o acometia fisicamente, a despeito das falhas de memória. O incidente havia desaparecido de suas recordações. Precisei relatar todo o ocorrido e, assim como eu, ele tinha plena convicção de que se tornaria um demônio no próximo ciclo da lua cheia, e quanto a isso não haveria o que fazer. Ou haveria?
Meu irmão me lembrou de uma possibilidade. Em alguns relatos, diz-se que um novo amaldiçoado pode se livrar de sua danação se antes da primeira transformação ele conseguir matar a fera que o condenou. Era difícil? Sim, mas nós já planejávamos matá-la por vingança ao nosso pai, afinal de contas. A situação não mudara tanto, somente o fato de que teríamos uma data e momento fundamentais para fazer isso.
Nos preparamos durante todo o mês seguinte. E, na noite certa, seguimos para o local da emboscada. O plano seria deixar meu irmão trancado no depósito de manutenção que não ficava longe do ponto de ataque. Seria preciso que ele fosse forte, que resistisse, o cordão de prata evitaria sua transformação, mas consumiria sua alma numa dor torturante e se ele perdurasse e não se transformasse, no amanhecer estaria morto, como ser humano, e não era isso o que queríamos. A ideia era sobrepujar a criatura e levá-la até ele antes disso acontecer, para que ele pudesse dar um fim ao demônio com as próprias mãos, livrando a si mesmo da danação, mantendo a sua humanidade e vingando o nosso pai, ao mesmo tempo.
A lua cheia estava alta e meu irmão trancado no depósito. Agora tudo dependia de mim, a salvação e a redenção do que me restava de família. Não tardou para que aquele rosto conhecido chegasse ao famigerado banco e olhasse para o céu. Ela quebrara tantas vezes as lâmpadas dos postes ao redor que a manutenção municipal desistira de repô-las.
Eu tinha de esperar, era preciso que a fera se revelasse em sua verdadeira forma para que tudo funcionasse. De repente, ela emitiu um grito, algo aterrador, um brado legitimamente feminino, mas mesclado com um tom demoníaco como algo fugido do inferno.
De joelhos, ela arrancou as roupas e a própria pele, ao passo que tufos enegrecidos surgiam em cada espaço ensanguentado do seu corpo, o qual se retorcia em movimentos anatomicamente improváveis. Logo, uma criatura que eu já tinha visto antes e que até alguns anos eu poderia jurar só existir nas histórias que eu devorava com afinco se mostrava nítida diante dos meus olhos.
Ela me viu e era isso o que eu queria. Sua boca escancarada me oferecia um caminho para a morte rápida. De seus braços longos, que quase tocavam o chão, ganchos afiados e negros se projetavam como armas, as mesmas que ceifaram a vida do meu pai. Maldita!
Mas eu também estava armado, a calibre .45 abastecida com o metal abençoado estava na minha mão direita. O demônio se postou sob os quatro membros e correu na minha direção, com sangue no olhar e uivando para aquela que do céu lhe dava forças.
Mantive-me firme e com as duas mãos segurei o cabo do revólver. Eu tinha de alvejá-la, mas não poderia tirar a sua vida, pois isso era a tarefa do meu irmão. Eu só precisava tirá-la de combate. Enverguei as ranhuras do gatilho, mas, para minha surpresa e desespero, a arma não disparou.
Um calafrio percorreu minha coluna vertebral e um desmaio quase me acometeu, mas, assim como aquele que dependia de mim, eu também precisava ser forte. E, mais do que isso, precisava pensar rápido. A fera saltou sobre mim e eu efetuei um soco diretamente em sua garganta escancarada.
Como uma guilhotina, sua mandíbula decepou o meu braço até quase o ombro. Não há palavras em qualquer idioma que possam descrever com exatidão o nível de dor que me acometeu. Não era apenas a mordida com os dentes como navalhas a razão da aflição, mas também a saliva da fera que queimava até a alma. O ácido mais corrosivo não seria tão eficiente em seu propósito.
Entretanto, apesar de tudo, eu sorri, sorri porque a maldita criatura sofria de maneira tão ou mais agonizante do que eu. Ela se contorcia no chão porque fiz a única coisa que poderia fazer naquele momento, arranquei o cordão do pescoço, fechei na mão e enterrei no fundo da garganta daquela miserável.
Enquanto ela se debatia, apertei meu cinto o mais justo que pude no que me sobrou do braço, numa tentativa de minimizar a hemorragia. Em seguida, amarrei as pernas do monstro no cabo atrelado ao veículo que furtivamente havia deixado estacionado próximo, justamente para esse fim.
Da melhor maneira que pude, dirigi até o depósito da manutenção, desci do veículo e olhei para a folha de madeira da entrada. Inspirei forte o ar noturno e deixei escapar um suspiro. Destravei o tambor do revólver e o girei deixando o tilintar do metal ecoar na madrugada. Então, disparei para o alto para testar a arma e garantir que o travamento fora algo pontual.
Decidido, voltei até o carro e soltei as amarras que mantinham a criatura presa ao pino de reboque. A mulher-fera mais uma vez se colocou sob os quatro membros e fez força por alguns instantes para regurgitar o cordão de prata que envenenava seu organismo. Mantive a arma apontada para a sua cabeça durante todo o tempo. Logo, a corrente metálica mesclada a uma massa gosmenta de saliva, sangue e líquidos estomacais era depositada no chão.
A besta olhou para mim e entendeu o significado do cano da arma. Assim, acuada, correu para a mata para viver um ciclo futuro. Um filete de suor escorria do meu rosto, a dor quase não me incomodava mais. Não a física pelo menos, pois ao ver a porta aberta e a cordão de prata do meu irmão no chão, compreendi que ele não fora forte o suficiente e, naquela altura, uma nova fera já corria solta para matar pelo parque. Quanto a mim, fui obrigado a soltar o demônio que me atacou para garantir que a maldição também me dominasse. Afinal, como gêmeos, eu deveria me assemelhar ao meu irmão, para sempre, seja como for, como humano ou como demônio, exatamente como os elos daquele cordão de prata.