232 Insónia
Cristina confidenciara que, quando lhe dava a insónia, só fingindo de morta voltava a adormecer. Explicou que mantinha os olhos fechados, não se mexia e ia apagando-se por partes: mãos, pés, pernas, braços. Invariavelmente adormecia antes de apagar o coração porque, ao relógio badalar “na Cova da Iria” da hora seguinte, já ela não tinha ideias nem sonhos ou vontades. Guardou para si a receita e resolveu hoje pô-la em prática. Fingiu-se morta, com o vestido branco, uma grinalda de rosas vermelhas, o anel que lhe oferecera o Pai pelo aniversário. Reparou que só havia três pessoas no velório e que ninguém chorava. Reparou que todas olhavam fixamente para o anel e esperavam uma oportunidade de lho retirarem da mão que ela já havia adormecido. – Cabras, disse para dentro. De onde teriam vindo que as não conhecia? A seguir, com a parte inferior do corpo já em vias de apodrecer de tão morta, pensou que se alguma delas ousasse, sob qualquer pretexto, aproximar-se do esquife ela desistiria do sono e haveria de fechar a mão com força, haveria de a esconder sob o corpo, abrir e fechar o olhos até as assustar de vez. E a mais velha delas veio ajeitar-lhe as rosas ferindo-lhe a testa. Esteve para gritar aquela dor sangrada mas conteve-se. Quando o sangue correu em fio, galgou a sobrancelha esquerda e parou junto ao olho arregalado ainda. A mãe que não estava apareceu aos gritos. – Feriram a minha filha, gemia, mataram-na e não tenho outra. – Que se lixe a insónia, pensou e desistiu da receita. Acordou e era tarde.