A Pescaria
O único em silêncio era eu, eles gritavam e riam, em total êxtase, jogavam as notas para cima, pareciam o tio Patinhas brincando com o dinheiro, tínhamos mais de 10 sacos entupidos de notas de 100 reais.
O assalto ao Banco havia sido quase perfeito, entramos e saímos da agência sem problemas, mas na saída, João Antunes, do nada, atirou na cabeça de um rapaz que estava na rua, provavelmente, o coitado nem sabia do assalto e, com certeza, nem sabe que morreu, levamos um susto, mas ele riu, riu muito, disse que aquele morto serviria para distrair a todos, aquela era uma cidade minúscula e as autoridades ficariam que nem baratas tontas e eles riram, riram tanto que me deu ânsia de vômito!
Já tínhamos nosso plano de fuga pronto, eu pensei: “não precisava aquilo, aquela morte foi só por maldade mesmo!”. Falando de nosso plano de fuga, vou explicar de forma simples, um dos nossos já estava no meio do rio, pescando, esse era nosso álibi, pois saímos naquele barco, há algumas horas, todos no pequeno porto nos viram saindo juntos para pescar, apenas bons amigos indo se divertir com muita cerveja e pescaria, quando escureceu, inflamos um pequeno bote, voltamos à cidade, pegamos um carro, antes deixado para empreitada, fizemos o roubo, tudo muito rápido, agora, era voltarmos de bote para o barco e seguirmos a nossa animada pescaria!
Esse era o plano, e tinha funcionado perfeitamente, não precisava ter matado aquele rapaz, eu ainda estava com ânsia de vômito, e eles festejando!
Havíamos deixadon osso plano de viagem para a Marina, tudo nos conformes, ela estava programada para uma semana, tínhamos alimentos e bebidas para todo esse tempo, afinal, estaríamos bem longe daquela cidade, seria tempo suficiente para esfriarem as coisas e assim não ter nenhuma suspeita sobre de nós!
Resolvi beber também, afinal seriam 7 longos dias com aqueles homens, fui contratado por eles por saber navegar e por conhecer aqueles rios como poucos, não era amigo de nenhum deles, eu estava ali e não estava gostando, mas, profissionalmente, faria minha parte!
Rumávamos pelo canal de navegação, eu resolvi ficar na cabine, afinal, fora contratado para isso, eles pararam de brincar com o dinheiro, logo iriamos atracar num
lugar escondido e deixar os sacos em um galpão no meio da floresta, eles agora pescavam, como bons homens que eram.
Chegamos ao local onde deixaríamos os sacos escondidos, afinal a Polícia poderia nos parar a qualquer momento e querer fazer uma revista no barco, as armas já estavam muito bem afundadas com pedras pesadas na parte mais profunda em que tínhamos passado.
Éramos em 4, eu fiquei no barco, os outros desceram e levaram os sacos, passaram mais de 50 minutos e eles estavam de volta, eu já estava preocupado, pois era uma caminhada curta, pensei antes, talvez por ser noite eles tenham se perdido, todavia agora eles estavam vindo, mas para minha surpresa, traziam um homem de arrasto, eu desci e os ajudei a subir, perguntei o que era aquilo, o que tinha acontecido??, Tião só me olhou e entre dentes disse, esse infeliz estava caçando na floresta e nos viu com os sacos, mas ele não sabia que também o tínhamos visto, então entramos na casa onde deixamos o dinheiro, ele ficou abaixado, escondido, eu e o João ficamos conversando e fumando na frente do casebre, enquanto isso, o Felizberto saiu por trás e o pegou, deu uma paulada na cabeça dele, daí ficamos discutindo sobre o que fazer com ele, mas já sabíamos o que tínhamos que fazer, a gente só estava vendo como iríamos matá-lo, dai o abestado do João pegou a faca do próprio caçador e enfiou no meio das costas do homem, e começou a rir, olhou para nós e disse: “sempre quis matar alguém assim, com uma facada no pulmão, igual naqueles filmes de Hollywood, kkkkk!”.
Eu nã o ri, Juca, eu falei para esse monstro vestido de gente, que não se mata alguém inocente na floresta, pois ela cobra um preço muito alto quando prova de sangue inocente! E ele riu mais ainda e me olhou, quase que chorando de tanto rir, e falou, “isso é crendice de gente ignorante que nem tu e esse matumbos que trabalham contigo, eu sou da cidade grande, não acredito nessas bobagens, só acredito no meu 38!” e começou a gargalhar, decidimos trazer o corpo para jogar no rio, afinal lá que não podíamos deixar, mas vamos sair logo daqui, Juca, desamarra as cordas e vamos partir, eu não estou gostando desse silêncio.
Jogamos o corpo em um canto do barco e partimos, eu da cabine via os 3 discutindo, cada
vez tinha mais nojo de mim por fazer parte daquilo, eu só queria um dinheiro fácil e parecia que seria assim, mas aqueles psicopatas tinham estragado tudo!
Felizberto e João saíram de perto do Tião, pude ver que eles estavam bem alterados, nã o riam mais, chegaram perto do falecido e começaram a dar chutes no corpo inerte, realmente, eram psicopatas, deram mais de 50 chutes, posso dizer que
desmancharam a cabeça do homem, entendi o porquê daquilo, eles não queriam que, se achassem o cadáver, alguém o reconhecesse, achei aquilo coisa de animal,pois as piranhas fariam esse serviço, Tião preparava as pedras para jogarem o corpo no rio, me gritou de lá, “vai para a parte mais funda que tu conhece, mas que tenha bastante correnteza, para esse traste ir para bem longe!!”, e eu assim o fiz, em meia hora aquele corpo já estava morando com os peixes, e nós seguíamos a nossa jornada.
Era por volta meia-noite, eu estava sentado na cabine, o barco estava atracado numa prainha que eu conhecia, bem escondida, Tião,Felizberto e João dormiam em redes lá no convés mesmo, era uma noite quente, e eles tinham bebido muito, e ainda tinha o leve embalar das ondas, que facilitava para eles terem aquele sono dos justos, antes de eu dormir, eu ainda pensei, como podem matar duas pessoas e dormirem com essa tranquilidade toda?Me acordei de susto, com um grito de desespero que me fez olhar em direção da terra, só vi um vulto acima da prainha, algo grande, muito grande, passei a mão nos olhos e vi que apenas estavam no convés, já fora das redes, o Tião e o João. Saí da cabine gritando: o que houve? Cadê o Felizberto?, então Tião, de costas para mim, virado para João, com uma voz assustada falava: “João, tu viu aquilo, tu viu aquela coisa arrancar o Fellizberto da rede como se ele não pesasse mais que uma pena e o levasse para aquele mato, tu viu, tu viu???” e se virou para mim, com uma cara de pavor, mais branco que boneco de cera e falou, “e tu, tu viu aquilo, eu não estou louco, não é?”.
Os dois homens não paravam de tremer e murmurar coisas que para mim não faziam sentido, eu respondi ao Tião, que só tinha visto aquele enorme vulto e nada mais, então, ele me explicou que ele estava dormindo, quando ouviu um leve vento, e um barulho de bater de asas, até ai tudo normal, mas rapidamente o som estava do lado dele, sem pensar de reflexo, atirou o corpo pro lado contrário da rede e viu quando a coisa parou em cima de Felizberto, que nada tinha notado, e com enormes braços, que deviam ter mais de 2 metros, arrancaram o homem da rede, que de gritou de susto, sem entender nada, e com uma velocidade incrível, o ser voou para escuridão!
João, agora não parecia mais aquele assassino sangue frio, estava quieto, ele já era um homem de estatura pequena, agora parecia uma criança, não sei como, mas ele havia conseguido se encolher de uma forma que só o pavor faz acontecer.
Tião pegou as lanternas e começou a iluminar a praia e gritar, “Felizberto, tu
tá vivo, homem?”, João saiu do canto que estava metido e falou baixinho, “para, homem, para de fazer barulho, se não aquele demônio volta!, Para, o Felizberto já deve estar morto!”. Tião, deu um empurrão nele e gritou, “isso é culpa tua, seu infeliz, eu disse que a floresta cobrava caro por sangue inocente! Eu disse!”, e gritou diversas vezes isso! Eu apenas assistia atônito a toda aquela insanidade, sem entender se era real ou sonho!
Mas enquanto eles discutiam eu ouvi um som vindo da mata e fiz sinal para eles ficarem quietos, e eles entenderam, devem ter escutado também, por alguns segundos, os mais longos de minha vida, parecia que o som do mundo deixara de existir, podia ouvir a minha respiração e a deles, mas a mata estava em total silêncio, fomos devagar chegando mais para perto da borda do barco, pro lado da prainha, e então deu para ouvir, “socorro, João, vem me ajudar!”, era a voz de Felizberto, estava baixa, estranha, mais parecia um eco, mas era ele, e falou de novo, “Tião, estou aqui na margem, me ajuda!”, os dois se olharam, do nada João, voltou a ser o “Lampião” de sempre, estufou o peito e disse, “o homem tá vivo, a gente tava é bêbado e vendo coisas!, deve ter ido até a praia e caiu por lá” então, gritou, “Já vou, Felizberto, espera ai!”, eu estava achando aquilo muito estranho e já ia falar para não ele não ir, quando Tião, me olhou, agora com o olhar de líder que ele era e me falou baixinho, “deixa ele ir, ele nos pôs nessa, quem sabe nos tira!”, e eu consenti, afinal, se ele morresse, não seria perda nenhuma para o mundo, aquele assassino sem alma!
Quando eu estiquei a prancha para o João descer, eu tive a certeza de que aquilo não tinha sido um sonho, pois, como Felizberto teria ido até a margem sem deixá-la ali armada, só se fosse voando, e eu isso, eu sabia que ele não sabia fazer! Mas mesmo assim, não fiz nada, quem sabe Tião estivesse certo, se aquele porco imundo do João fosse de oferenda para aquele demônio, nos livrássemos da morte.
Quando ele começou a descer, parou, acho que se atinou da besteira que estava fazendo, mas Tião, falou firme, “vai logo, busca teu amigo, e assim a gente sai logo daqui ou tu virou cagão depois de velho!”, João, então olhou para ele com cara de ódio, e disse, “nunca tive medo de nada, seu otário, não vai ser agora que terei e...”, nisso, novamente veio a voz de Felizberto, “ajuda, João, eu cai e machuquei a perna!”, então ele se virou e gritou, “estou indo, não sou covarde como esses dois aqui!” e desceu para a praia.
Silêncio total novamente, eu e o Tião tentávamos enxergar, mas era uma escuridão total, porém do nada eu ouvi o barulho de asas, enormes asas, pela força do
som, eu vi, então, aquele vulto no ar, vindo de uma árvore alta, um rasante em direção de onde devia estar o João, só então eu notei que era isso que eu estava estranhando nos chamados do Felizberto, eles não pareciam vir da praia e sim do alto, era aquele ser que estava nos chamando, nem esperei o grito do João parar de ressoar em nossos ouvidos e já corria para a cabine, queria ligar o motor e sair daquele inferno!
Tião correu para baixo de um banco, e ficou lá deitado, o motor pegou e gritei para ele, “desamarra, desamarra”, ele estava em choque, então buzinei e ele me olhou, gritei novamente, ele entendeu, que para sairmos dali, precisávamos que ele agisse, ele levantou correndo, foi quando ouvi o som maldito das asas vindo em direção do barco e ao mesmo tempo uma risada, uma risada demoníaca de prazer, e o som surdo de algo batendo no barco, algo foi jogado no convés, vi que Tião havia parado, ficou estático no meio do barco olhando para baixo, eu gritei: “homem, anda, tira a amarra!”, mas ele não se movia, então, eu corri para fora da cabine e vi o porquê de ele estar ali imóvel, a alguns passos na frente dele, estava a cabeça do João, os olhos abertos, pareciam mirar o Tião, e a boca aberta parecia estar dizendo: “foi você quem me mandou para a morte!”, eu poderia jurar que ouvi a voz dele falando isso, e Tião continuava parado, e eu ouvi a risada, aquilo foi um alerta na minha cabeça, acordei daquele transe maldito, empurrei o homem para sair da minha frente e soltei a amarra, corri de volta para a cabine, senti nas minhas costas o vento das asas, e a risada, ela estava sobre mim, Tião, continuava parado, era uma estátua mirando a cabeça do morto, nem notou o bicho chegando para pegá-lo, eu entrei na cabine, bati a tranca e me abaixei, consegui espiar e vi que o bicho voava para o alto, levando o Tião, que não se debatia, acho que ele estava morto desde que viu a cabeça do João ali no chão do barco o acusando!
O barco se distanciava da margem, enquanto isso eu ouvia a risada daquele demônio alado indo mais para o interior da mata, segui com os faróis desligado, mas não me sentia seguro, eu nunca mais me sentiria seguro, quando cheguei no meio do rio, desliguei o motor e deixei a correnteza me levar, eu estava embaixo do painel, achando que a qualquer momento aquilo voltaria!
Não sei quando tempo tinha passado, mas era noite ainda, quando senti uma batida no barco, tremi, pensei que o bicho tinha voltado, mas não era, era o barco da guarda militar ambiental, nunca imaginei que ficaria tão feliz em ver a polícia!
Seu Padre, essa é minha confissão, eu sei que nem o senhor, nem ninguém acredita em mim e, à noite, vou morrer naquela cadeira elétrica como assassino de 5
homens, todos me consideram um monstro, mas eu nunca matei uma mosca, eu aceito a pena, aceito tudo.
Eu sei que existem monstros de verdade, e eu não quero liberdade, Padre, eu nunca mais seria livre sabendo que existe aquela coisa voando por ai na noite, essa cadeia foi a melhor proteção que eu tive e a morte, a morte será a minha liberdade, pois eu sei que o inferno é aqui!
Nilvio Alexandre Fernandes Braga, Eldorado do Sul, 21/07/2020