Relato de um vigilante – A Doca
Não direi meu verdadeiro nome, nem em que local ou quando isso aconteceu, digamos que meu nome seja Sebastião, Bastião, se vocês acharem melhor, o fato relatado aqui, pode me custar a vida, como quase já me custou quando do ocorrido, logo todos vocês entenderão, pois bem, vamos aos fatos.
Eu trabalhava em uma doca, próxima ao cais de um grande porto, mas era uma em uma parte mais isolada, alguns chamavam o lugar de Buraco Negro, pois não sabíamos de onde vinha e muito menos para onde ia o que era descarregado ali, era um cais onde poucos navios atracavam, e os que chegavam, descarregavam rapidamente e logo partiam, com pouca burocracia, digamos, e nós que trabalhávamos ali, éramos orientados a sermos cegos, surdos e mudos.
Gostava dali, o dinheiro e o posto eram bons, sem muito movimento, todos vinham, faziam seus serviços e iam embora, algumas vezes chegavam policiais e fiscais, com caras amarradas, sisudas, mas logo vinham os senhores de terno, “os gravatas”, como chamávamos, juntamente chegava alguém do escritório do porto, discutiam calorosamente, como disse, éramos surdos, ou melhor, nos fazíamos de surdos, porém ouvíamos, mesmo mantendo distância, cada um sabia de seu quadrado, mas alguns fiscais e policiais falavam alto, gritavam, só que “os gravatas” e o pessoal dos escritórios, logo os acalmavam, em pouco tempo, saiam dando tapinhas nas costas uns dos outros, como dizem, todo mundo tem seu preço.
Acho que todos já entenderam que ali entrava o contrabando, o que era ilegal chegava através do nosso cais, claro que só víamos as caixas fechadas, lacradas, éramos cegos, mas não burros.
Naquele dia, cheguei às 19h para um turno de 12h, meu colega com cara de cansado, passou a planilha, reclamou que no turno dele chegaram dois navios, os dois já tinham descarregado, mas um ficou atracado para ir embora apenas no outro dia, e que os marinheiros, uns panamenhos, tinham saído para conhecer a cidade e ficaram de voltar depois, até no máximo as 3h da madrugada, pensei, droga, não vai dar para sestear, bem, isso acontecia, às vezes, até então tudo normal, mas ele continuou, “Bastião, tem uma jaula lá no fundo, deixaram coberta, fui avisado diretamente pelo capitão do navio que era um animal selvagem, muito perigoso, e que não era para eu chegar perto, pois ele estava bem trancado. Dai, não levou nem 5 minutos, ligaram lá do escritório e me falaram a mesma coisa, que era para eu deixar a jaula lá e ficar aqui, bem longe, e pediram para te avisar também, até que fiquei curioso, mas tu sabe como é, melhor não nos metermos em encrencas, né??
Mas, Bastião, vou te dizer, nunca vi um bicho tão calmo, desde que largaram a jaula lá coberta, não ouvi som nenhum vindo daquele lado, isso aqui ta que é um velório, um silêncio só! E normalmente esses bichos fazem um griteiro de dar dó, mas, então tá, Bastião, recado dado, vou seguir meu rumo para casa, que amanhã tem de novo, pois estou que uma canseira só, boas noite e não faz bobagem!”.
E Chico se foi, eu me arrumei, organizei as planilhas, preparei a salinha, liguei a TV e fiquei assistindo ao jornal, seria uma longa noite, já que teria que esperar os marinheiros, nada de dormir…o negócio era beber café e mais café.
Era por volta das 21h, fiz a ronda externa e interna, tudo tranquilo, levei uns 45 minutos nessa inspeção, noite linda de lua cheia, nem acendi a lanterna na rua, só lá dentro do galpão, pois as lâmpadas internas eram fraquíssimas. Chico estava certo, realmente, parecia um túmulo ali dentro, frio e quieto, como devia ser, se não tivesse aquele animal na jaula, tinham muitas caixas, afinal foram dois navios naquele dia, amanhã cedo seria uma correria, pois as mercadorias não ficavam mais que horas ali, e quando demoravam e que vinham aqueles fiscais e policiais nervoso, todavia, logo a mercadoria evaporava por algum buraco negro, mas algo me deixava incomodado e bem cabreiro, era muito estranho ter um animal enjaulado lá e estar assim, tão quieto!
Seguidamente tínhamos bichos ali, girafas, leões, macacos, ursos, até cobras e peixes, que não ficavam em jaulas, claro, mas sabíamos que era carga viva que tínhamos ali, vocês não têm ideia de que essas pessoas contrabandeiam! Pobres bichos, eu pensava, nem fizeram nada de errados e ali estavam, enjaulados, para satisfazerem o bicho homem, quanto mais conheço o ser humano, mais gosto do cachorro!
Jantei, já era quase meia-noite, foi quando tomei a pior decisão de minha vida, sempre fui curioso e não parava de pensar o que teria naquela jaula, qual seria o animal silencioso, que tipo de bicho, algum raro, será que estava dopado? Nem som de respiração se ouvia, e isso era muito estranho.
Eu vi que não era uma jaula muito grande, não devia ser urso nem leão, se bem que esses caras não se importavam muito com o bem-estar dos animais, então pensei, será que o bicho estaria morto?? Que mal faria dar uma conferida?? Nenhum, mas descobri que estava errado, muito errado!
Fiz a ronda externa, agora havia algumas nuvens mas o céu ainda parecia um dia de tão forte a lua, tomei coragem, decidi ir futricar na tal jaula. Caminhei lentamente, verifiquei em todos os setores conforme a nossa rotina, então fui em silêncio, pé por pé, naquele canto, a iluminação artificial não chegava, tinha apenas a claridade que vinha da lua por uma grande janela no teto, uma espécie de claraboia, era um local onde eram postas as caixas que sabíamos que eram as encomendas especiais, estava com a lanterna na mão, suspirei e puxei a lona que cobria a jaula, travei, fiquei de boca aberta, deixei a lanterna cair, eu quase cai!
Não tinha bicho ali e sim um homem, ele estava sentado em um canto, parecia meio que dopado, levantou a cabeça e me olhou, e eu continuava como uma estátua, sem entender o que ele fazia ali, enjaulado como um animal!
Era um homem negro, muito escuro, começou a falar em francês eu acho, ele repetia sem parar: Mwen soti Ayiti, ede, tanpri! Mwen soti Ayiti, ede, tanpri!
Dei dois passos para atrás, já tinha visto muita coisa estranha, mas um ser humano enjaulado como um animal, nem pensei em mais nada, só que devia soltá-lo, era um homem franzino, com a cara cadavérica, devia ter passado fome naquela viagem, coitado, dizia para mim mesmo!
Peguei um pé-de-cabra que estava escorado ali perto, e abri, não foi difícil quebrar aquele cadeado, o homem se levantou lentamente, com uma dificuldade extrema, não falou nada apenas gemia, arfava muito, ele se moveu até que chegou à parte da jaula que pegava a luz do luar e ali ele parou, então pude ver melhor que ele tinha a aparência daqueles haitianos que vemos por aqui vendendo produtos piratas nas grandes cidades, e eu estava entrando na jaula para ajudar, quando o homem deu um grito de dor e caiu de joelhos, curvou-se sobre o próprio corpo e gemeu como um bicho, eu pulei para trás, Meu Deus do céu, que estava havendo que o homem do nada começou a gritar e gemer feito bicho!!
Não só gritava feito bicho o homem estava se transformando em bicho, uma cena indescritível e insana, não sei quanto tempo isso demorou, pois eu estava entrando em estado de choque, algo surreal acontecia na minha frente!
Eu nunca acreditei nesse tipo de coisa, assombração, monstros, lobisomem, mas era um que estava ali. Foi quando eu ouvi o som alto da campainha tocar e foi esse som que salvou minha vida, eu acho, pois eu estava petrificado e o alarme me trouxe à realidade, o bicho já estava quase que transformado, pelos negros acinzentados, orelhas enormes que quase batiam no chão, o homem antes mirrado, agora tinha mais de 1,80 de altura, enorme, de aparência muito forte, e estava se preparando para pular em cima de mim, pois eu estava bem na porta e, com certeza, ele queria sair, foi quando novamente tocou a campainha, o que fez com que ele travasse o ataque, como se tentasse entender o que acontecia, olhou para cima, procurando de onde vinha aquele som forte e estridente, que parecia atordoá-lo, foi quando eu parei de querer entender, simplesmente dei um salto para trás e sai da jaula, bati a porta e pus o cadeado, que estava na minha mão ainda, ele estava quebrado, mas agi instintivamente, o bicho já estava vindo novamente para atacar, vi bem sua cara medonha, uma mistura de porco com cão, dentes enormes, com certeza, um bicho do inferno, olhei para baixo e vi a lona, me abaixei e a peguei, joguei por cima da jaula, ela cobriu novamente toda claridade que vinha da rua, e o ser que ainda não estava totalmente bicho, eu acho, pois ele rosnou, e gritou algo naquela língua estranha e caiu deitado, encolhido, se retorcendo, aos poucos ouvi que o som diminuiu, e eu, por impulso, tapei completamente a jaula.
Sem olhar lá para dentro, corri, corri como nunca havia corrido, mas ao parar notei que o silêncio predominava no galpão! A companhia quebrou esse silêncio, eram os marinheiros, bêbados, riam alto, nem se importaram com minha aparência de pavor, na realidade, nem me olharam, estavam trocando as pernas, foram diretamente para o navio.
Eu me tranquei na minha guarita e só sai pela manhã quando caminhões e homens chegaram para levar as cargas, havia dormido um pouco, deve ter sido um sonho, um pesadelo, eu pensei.
Caminhões e camionetes entravam e saiam, eu não era o fiscal nem encarregado de anotar as saídas, apenas abria e fechava a cancela, seguia tudo normalmente, eu nem pensava mais naquilo, preferi acreditar que era um sonho mesmo, afinal, lobisomens não existem.
Porém, quando saia uma camionete, daquelas grandes, importadas, tipo de fazendeiro rico, nela tinha apenas um item na carroceria, vi a lona, que era igual à do meu sonho, e ela se levantou um pouco com o vento e eu pude ver, de relance, uma jaula com um cadeado quebrado! E lá dentro, aquele vulto negro de um homem abaixado! E eu falei para mim mesmo, “não foi um sonho!” e o homem da camionete, me olhou e disse, “o que houve, meu jovem rapaz, parece que viu uma assombração???”, Ele riu, riu alto, eu só balancei o braço, fazendo sinal para ele ir, abri a cancela e corri para dentro da guarita e ali fiquei sentado me perguntando, que tipo de gente comprava um lobisomem?
Fui para casa, não dormi, pesquisei muito, fui para o google e descobri o que aquela coisa me falava, ele disse algo tipo, “sou do Haiti, ajuda, por favor”. Então seguindo esse raciocínio de que ele era Haitiano, eu acho que descobri o que ele era, aquilo era um loup-garou, uma espécie de bruxo que vira lobo, um monstro que come crianças! Um ser que apavora aquele povo já tão sofrido, se vocês procurarem no Youtube ou google acharão relatos desses monstros assassinos.
Naquele mesmo dia fui ao escritório da empresa, pedi transferência, hoje só trabalho de dia, nunca mais sai ou deixei os meus saírem nas noites de lua cheia. Eu espero nunca mais ver algo tipo aquela coisa, eu não sei para onde foi aquele lobisomem e para o quê usariam aquela besta? Para que fim maligno alguém teria um monstro de estimação?
Eu tenho pavor daquilo que vi, meus pesadelos são sempre sobre ele, mas não tenho medo apenas dessa besta, pois hoje ela serve a alguém pior do que ela para algum propósito.
Deixo a todos o meu aviso, se cuidem nas noites de lua cheia, mas não apenas nelas, pois nem todas as noites são do lobo, a maioria é do homem e como dizem "homo homini lupus", ou seja “o homem é o lobo do homem!”.
Boa noite!
Escrito por Nilvio Alexandre Fernandes Braga, Eldorado do Sul, RS. 17/07/2020