UMA VOLTA E TRÊS QUARTOS
Naquela cidade, quando não tinha chuva, tinha nevoeiro. Um inferno! Todo santo dia, no fim da tarde, a umidade do oceano subia a serra e virava uma cortina cinza, que encerrava as atividades diárias de qualquer cidadão. Todo mundo se encolhia, tremendo na chuva fina, como caracóis de volta para suas casas.
Todo dia, às seis horas, tocava o sino da igreja e soava uma ave-maria estridente, nos alto-falantes da praça. E por causa da neblina, do eco, serra ou sei lá do que, aquela ave-maria parecia vir diretamente dos céus, onipresente. Todo mundo fechava as portas e janelas, e ia dormir. A internet nunca pegava direito e, se fosse para ver televisão aberta, seria melhor nem ver tevê.
Liz não via a hora de ir embora dali, mas teria que ficar, pelo menos mais um ano e nada mais, como prometera o marido. Era o tempo que faltava para ele completar o trainee na empresa e ser promovido. Então iriam para algum lugar em que o dia não durasse só dez horas. Mas aí, ela engravidou e a reformulação do sistema de telecomunicações, que ele prometera para a empresa, não saía: era impossível fazer o sinal chegar ali naquele canto, entre montanhas. No entanto a empresa exigia, precisava expandir sua cobertura, de qualquer maneira.
Quando ela engravidou, não sabia. Dona Iracema, da esquina, que avisou:
- Ah, que bênção, vai ser uma menina!
- Oi?!
- Sim, meu bem, vai ser uma menina! Dá para ver, pelo jeito que você está andando.
- Como assim, Dona Iracema? Não to grávida, não!
Teria ela engordado tanto? Não, certeza que não. Que papo estranho! Ela tomava injeção, impossível, estar grávida! Mas aí vieram as dores nos seios e os enjoos, de manhã. Adoeceu. Dona Iracema trouxe sopa.
- Eu não te falei, menina? Já ajudei mais de 200 crianças a vir para este mundo. Eu sei dessas coisas!
- Como a senhora sabia? Eu só fiz o exame ontem e ainda nem peguei o resultado.
Se bem que ela já sabia, lá no fundo.
- Vai dar positivo. E é menina!
As semanas passaram... A velha estava com a razão.
Liz não tinha família e jamais planejara estar grávida. Na verdade, ela achava isso impossível, uma vez que o médico já lhe explicara sobre o problema de ovários policísticos. Agora se via obrigada a aceitar a ajuda e a intromissão da velha.
Estava emagrecendo. Como se fosse possível uma grávida emagrecer. No estômago, nada mais parava, a não ser a sopa da velha, uma sopa de galinha com legumes e algum tempero, que ela não reconhecia. Uma verdadeira gororoba, para quem olhasse; mas era o que salvava sua vida.
- Minha filha, quando vier a vontade de vomitar, segure isso com a mão esquerda – Disse a velha, entregando-lhe uma chave antiga, de bronze, como aquelas de guarda-roupas velhos.
- D. Iracema, isso não faz sentido.
- Faça, minha filha, faça e verá.
Liz resolveu não dar bola. Sempre achara ridículas, aquelas bobagens de cidade pequena. Jogou a chave numa gaveta e foi se deitar. Estava magra, com um calombinho no baixo ventre, que mais parecia um arremedo de barriga.
Um dia ela começou a vomitar e vomitar. Até água ela vomitava. No desespero pegou a chave e, como num passe de mágica, aquilo tudo parou. Conseguiu comer uma banana e beber um chá. Eduardo não estava em casa, para variar. Chegava sempre tarde e saía muito cedo. Para agravar, não entendia como a mulher podia estar tão cansada, se não fazia nada, o dia todo. Reclamava de que não tinha janta, de ter que passar as próprias camisas, para trabalhar; reclamava que a mulher não queria nada com ele. Reclamava de que ela roncava. O curioso, porém, é que antes ela não costumava roncar.
A parte mais terrível da gravidez, passou. Veio aquele período em que, para a maioria das mulheres, tudo corre bem, existe mais energia e vigor e um brilho corado no rosto. Mas com Liz nada disso ocorria: ela continuava magra e pálida, olhos encovados. Sentia dores nas laterais do ventre, fisgadas terríveis. A médica explicou que as fisgadas eram normais e lhe receitou vitaminas e injeções de ferro.
Como Liz não dava conta da casa, a velha se ofereceu para ajudar e já era presença fixa, todo dia.
- Você tem uma rolha? - Perguntou a velha, uma manhã.
- Tenho algumas ali, de vinho. Por quê?
- Vou te fazer um chá.
- Um chá de rolha?!
- Sim, melhor coisa para cólicas!
Liz pegou a rolha e, incrédula, a entregou à velha. Ridículo aquilo tudo, mas resolveu entrar na encenação, só para não se aborrecer. Não tinha ânimo nem para discutir. Então, ela tomou o chá e foi melhorando, até já podia se levantar da cadeira, sem se curvar.
Quando completou seis meses de gravidez, acordou durante a noite e não conseguia se mexer. O peito pesava, o ar não vinha, e o desespero foi crescendo, como uma onda, a afogá-la. Olhando para ela, das vigas do telhado, estava um enorme mocho marrom, de olhos vermelhos. Ela abriu a boca para gritar, mas o ar passava pelas cordas vocais sem vibrá-las, e um esguicho de ar era tudo o que saía. Se debateu, em vão, pois os membros não respondiam. Quando teve certeza de que ia morrer, Eduardo a sacudiu:
- Liz, cê ta roncando DE NOVO! – E, então, se levantou e foi dormir no sofá.
Ela, porém, não dormiu mais, procurando o mocho, com os olhos, nas vigas. O relógio, na parede, marcava três horas da madrugada...
Algumas semanas depois, quando ela já nem dormia mais à noite, de tanto pavor, sentiu uma tontura e se sentou. Resolvera tomar um banho, para melhorar e dirigiu-se ao banheiro. Foi quando percebeu aquele pequeno sangramento na calcinha. Correram para o hospital, serra abaixo, às três horas da manhã, naquela estrada escorregadia e tortuosa. Chegaram ao hospital e ela foi atendida imediatamente. Estava com uma anemia gravíssima. Teriam que interná-la. Eduardo ficou muito preocupado, sentindo-se, também, um pouco culpado, mas ela o tranquilizou. Estranhamente, sentia-se melhor com o soro. O cheiro estéril do hospital lhe fazia bem. Ela convenceu o marido a voltar para casa e lá ficou, finalmente dormindo como nunca dormira na vida. Como nunca mais dormiria, disse Fátima, a enfermeira:
- Aproveita pra dormir, minha filha. Depois que filho nasce, a mãe não dorme nunca mais!
Quando fez oito meses, a filha nasceu, incrivelmente forte, apesar de tudo o que acontecera. A menina pesava quase quatro quilos, com uma cabeleira escura, lindíssima.
Marta ficara amiga de Liz, no cuidado diário e depois do parto perguntou:
- Já marcou o batizado?
- Ah, não, não vamos batizar. Eu e meu marido somos ateus, não somos de igreja.
- Tá, mas precisa batizar, mesmo assim! A criança não pode ficar pagã!
E começou a falar dos causos da terra dela, lá no Piauí: que a criança pagã não tinha defesa contra nenhum dos espíritos maus. Os espíritos lentamente drenavam o sangue da criança, até ela definhar e morrer.
- Ora, que bobagem, Fátima! Eu nunca fui batizada e estou bem.
- Está mesmo, minha filha? - perguntou a enfermeira, antes de se retirar.
A criança recebeu alta antes da mãe, que ainda estava perigosamente anêmica. Mas como não tinha família que a levasse, ficaram, mãe e filha, mais uma semana no hospital. Foi chamado um hematologista da capital, que pareceu preocupado com os exames, algo não batia... Mas mesmo assim ela recebeu alta, com uma receita de vitaminas e o compromisso de voltar em um mês.
Antes de irem embora, Fátimaveio se despedir, trouxe uma cesta com bolo, canjica branca (pra dar leite, segundo ela) e alguns sapatinhos em crochê, feitos por ela. Trouxe também um cordel e um catecismo:
- Minha filha, eu fiquei doidinha, em casa, procurando isso pra você. É pra ler, viu?
Liz foi ensinada, pela mãe, a aceitar qualquer bênção, viesse de onde viesse e que demonstrasse respeito pela fé dos outros, sempre. Então, ela aceitou, agradeceu e trocaram telefones.
Quando chegaram em casa, ela e Eduardo, a casa estava limpa, toda faxinada. Tinha galinha ensopada no fogão e comida congelada para uma semana. Dona Iracema logo apareceu, para ajudar, mas Liz apenas agradeceu tudo o que ela fizera, para recebê-la e disse que voltasse amanhã. Na verdade, não queria mais ver a velha, que já estava sendo incômoda, além de feder a alho, ou algo assim. No entanto, como já recebera tanta ajuda dela, não queria ser ingrata.
Colocou a menina no bercinho e foi tomar banho. Finalmente poderia esticar-se debaixo de um cobertor que não tivesse cheiro de clorofórmio. Pegou a cesta de Marta e se pôs a arrumar as coisas. Esquentou e tomou a canjica, que era, realmente, muito boa. Na sequência, resolveu pegar o cordel. Jamais lera um cordel e se deu conta do quanto eram gostosas aquelas rimas. Todavia o conteúdo da história foi lhe chamando atenção. Falava sobre uma figura sinistra, chamada Pisadeira, que sufocava as pessoas, durante a noite e lhes sugava o sangue; depois lambia a ferida, para estancar o sangue. Ela tinha predileção por crianças não batizadas. Liz foi gelando a cada verso que, não obstante descreverem a criatura perversa, ensinavam como fazer a defesa, pendurando um terço no berço das crianças pagãs, para protegê-las, e como impedir que a criatura entrasse em casa à noite.
Aquilo era um absurdo, mas Liz já tinha passado do limite da plausibilidade com tudo o que vira e sentira. Aquela cidade parecia aprisionar e amplificar as coisas. O real era relativo ali. Ela já percebera como as pessoas da localidade, sempre muito simpáticas, umas com as outras, pareciam ignorá-la, com delicadeza. Assim, entendeu que havia algo errado com ela, de alguma maneira.
Naquela noite, Liz foi a última a dormir e fez o que era necessário: fechou todas as portas com cuidado especial. E esperou... quando o relógio marcou as três horas, uma sombra se moveu no alto do pé direito de madeira. Liz cuidou para que sua respiração continuasse constante e profunda, sem denunciar seu medo. Dois olhos vermelhos se acenderam na escuridão. Foi difícil conter o horror. Era real, ou pegara no sono? Fincou a unha na palma da mão, para se certificar de que estava acordada. A sombra escorreu pela parede e formou uma poça ao lado da penteadeira, depois se ergueu, como fumaça e tomou forma: uma figura de capuz exalava um cheiro nauseante, semelhante a alho, ou algo assim. Na verdade, mais “algo assim” do que a alho. E a figura deslizou, sem emitir ruído, direto para o berço da pequena Lívia, que dormia profundamente. Foi aí que a figura estacou, emitindo um silvo: havia algo errado. Farejou em torno do berço e começou a guinchar, praguejando, em alguma língua que há muito tempo nenhum ser deveria falar. Inconformada, a sombra veio até a cama de Liz e também farejou e guinchou. Suas garras de rapina se esticaram até o peito da moça, mas depois recuaram como se o fogo de sete fornalhas estivesse ali. A figura, então, se expandiu até cobrir todo o teto, como uma nuvem, rodopiou e correu para a sala. Liz, cuidadosamente, se levantou e foi atrás com algo que escondera embaixo do travesseiro.
Na sala, a figura se contorcia e emitia silvos surdos, diante da porta. Liz se aproximou dela, pé ante pé, descalça e cravou-lhe a velha tesoura enferrujada, de costura, com toda força, até o cabo.
- Minha filha, não, sua maldita! - Liz gritou para aqueles olhos vermelhos, que lembravam certo alguém.
- Como?! – perguntou uma agonizante coisa-Iracema.
- Eu descobri: uma volta e três quartos na fechadura. Vai se alimentar no inferno!
Abriu a porta e chutou para fora, a velha, que caiu e saiu rastejando. Ainda deu uma escarrada na direção da criatura e fechou a porta: uma volta e três quartos.
No dia seguinte, Iracema já não estava na cidade. Desaparecera misteriosamente.
Naquele mesmo dia, mais tarde, Liz marcou uma hora com o padre:
- Quero me batizar.
Naquela cidade, quando não tinha chuva, tinha nevoeiro. Um inferno! Todo santo dia, no fim da tarde, a umidade do oceano subia a serra e virava uma cortina cinza, que encerrava as atividades diárias de qualquer cidadão. Todo mundo se encolhia, tremendo na chuva fina, como caracóis de volta para suas casas.
Todo dia, às seis horas, tocava o sino da igreja e soava uma ave-maria estridente, nos alto-falantes da praça. E por causa da neblina, do eco, serra ou sei lá do que, aquela ave-maria parecia vir diretamente dos céus, onipresente. Todo mundo fechava as portas e janelas, e ia dormir. A internet nunca pegava direito e, se fosse para ver televisão aberta, seria melhor nem ver tevê.
Liz não via a hora de ir embora dali, mas teria que ficar, pelo menos mais um ano e nada mais, como prometera o marido. Era o tempo que faltava para ele completar o trainee na empresa e ser promovido. Então iriam para algum lugar em que o dia não durasse só dez horas. Mas aí, ela engravidou e a reformulação do sistema de telecomunicações, que ele prometera para a empresa, não saía: era impossível fazer o sinal chegar ali naquele canto, entre montanhas. No entanto a empresa exigia, precisava expandir sua cobertura, de qualquer maneira.
Quando ela engravidou, não sabia. Dona Iracema, da esquina, que avisou:
- Ah, que bênção, vai ser uma menina!
- Oi?!
- Sim, meu bem, vai ser uma menina! Dá para ver, pelo jeito que você está andando.
- Como assim, Dona Iracema? Não to grávida, não!
Teria ela engordado tanto? Não, certeza que não. Que papo estranho! Ela tomava injeção, impossível, estar grávida! Mas aí vieram as dores nos seios e os enjoos, de manhã. Adoeceu. Dona Iracema trouxe sopa.
- Eu não te falei, menina? Já ajudei mais de 200 crianças a vir para este mundo. Eu sei dessas coisas!
- Como a senhora sabia? Eu só fiz o exame ontem e ainda nem peguei o resultado.
Se bem que ela já sabia, lá no fundo.
- Vai dar positivo. E é menina!
As semanas passaram... A velha estava com a razão.
Liz não tinha família e jamais planejara estar grávida. Na verdade, ela achava isso impossível, uma vez que o médico já lhe explicara sobre o problema de ovários policísticos. Agora se via obrigada a aceitar a ajuda e a intromissão da velha.
Estava emagrecendo. Como se fosse possível uma grávida emagrecer. No estômago, nada mais parava, a não ser a sopa da velha, uma sopa de galinha com legumes e algum tempero, que ela não reconhecia. Uma verdadeira gororoba, para quem olhasse; mas era o que salvava sua vida.
- Minha filha, quando vier a vontade de vomitar, segure isso com a mão esquerda – Disse a velha, entregando-lhe uma chave antiga, de bronze, como aquelas de guarda-roupas velhos.
- D. Iracema, isso não faz sentido.
- Faça, minha filha, faça e verá.
Liz resolveu não dar bola. Sempre achara ridículas, aquelas bobagens de cidade pequena. Jogou a chave numa gaveta e foi se deitar. Estava magra, com um calombinho no baixo ventre, que mais parecia um arremedo de barriga.
Um dia ela começou a vomitar e vomitar. Até água ela vomitava. No desespero pegou a chave e, como num passe de mágica, aquilo tudo parou. Conseguiu comer uma banana e beber um chá. Eduardo não estava em casa, para variar. Chegava sempre tarde e saía muito cedo. Para agravar, não entendia como a mulher podia estar tão cansada, se não fazia nada, o dia todo. Reclamava de que não tinha janta, de ter que passar as próprias camisas, para trabalhar; reclamava que a mulher não queria nada com ele. Reclamava de que ela roncava. O curioso, porém, é que antes ela não costumava roncar.
A parte mais terrível da gravidez, passou. Veio aquele período em que, para a maioria das mulheres, tudo corre bem, existe mais energia e vigor e um brilho corado no rosto. Mas com Liz nada disso ocorria: ela continuava magra e pálida, olhos encovados. Sentia dores nas laterais do ventre, fisgadas terríveis. A médica explicou que as fisgadas eram normais e lhe receitou vitaminas e injeções de ferro.
Como Liz não dava conta da casa, a velha se ofereceu para ajudar e já era presença fixa, todo dia.
- Você tem uma rolha? - Perguntou a velha, uma manhã.
- Tenho algumas ali, de vinho. Por quê?
- Vou te fazer um chá.
- Um chá de rolha?!
- Sim, melhor coisa para cólicas!
Liz pegou a rolha e, incrédula, a entregou à velha. Ridículo aquilo tudo, mas resolveu entrar na encenação, só para não se aborrecer. Não tinha ânimo nem para discutir. Então, ela tomou o chá e foi melhorando, até já podia se levantar da cadeira, sem se curvar.
Quando completou seis meses de gravidez, acordou durante a noite e não conseguia se mexer. O peito pesava, o ar não vinha, e o desespero foi crescendo, como uma onda, a afogá-la. Olhando para ela, das vigas do telhado, estava um enorme mocho marrom, de olhos vermelhos. Ela abriu a boca para gritar, mas o ar passava pelas cordas vocais sem vibrá-las, e um esguicho de ar era tudo o que saía. Se debateu, em vão, pois os membros não respondiam. Quando teve certeza de que ia morrer, Eduardo a sacudiu:
- Liz, cê ta roncando DE NOVO! – E, então, se levantou e foi dormir no sofá.
Ela, porém, não dormiu mais, procurando o mocho, com os olhos, nas vigas. O relógio, na parede, marcava três horas da madrugada...
Algumas semanas depois, quando ela já nem dormia mais à noite, de tanto pavor, sentiu uma tontura e se sentou. Resolvera tomar um banho, para melhorar e dirigiu-se ao banheiro. Foi quando percebeu aquele pequeno sangramento na calcinha. Correram para o hospital, serra abaixo, às três horas da manhã, naquela estrada escorregadia e tortuosa. Chegaram ao hospital e ela foi atendida imediatamente. Estava com uma anemia gravíssima. Teriam que interná-la. Eduardo ficou muito preocupado, sentindo-se, também, um pouco culpado, mas ela o tranquilizou. Estranhamente, sentia-se melhor com o soro. O cheiro estéril do hospital lhe fazia bem. Ela convenceu o marido a voltar para casa e lá ficou, finalmente dormindo como nunca dormira na vida. Como nunca mais dormiria, disse Fátima, a enfermeira:
- Aproveita pra dormir, minha filha. Depois que filho nasce, a mãe não dorme nunca mais!
Quando fez oito meses, a filha nasceu, incrivelmente forte, apesar de tudo o que acontecera. A menina pesava quase quatro quilos, com uma cabeleira escura, lindíssima.
Marta ficara amiga de Liz, no cuidado diário e depois do parto perguntou:
- Já marcou o batizado?
- Ah, não, não vamos batizar. Eu e meu marido somos ateus, não somos de igreja.
- Tá, mas precisa batizar, mesmo assim! A criança não pode ficar pagã!
E começou a falar dos causos da terra dela, lá no Piauí: que a criança pagã não tinha defesa contra nenhum dos espíritos maus. Os espíritos lentamente drenavam o sangue da criança, até ela definhar e morrer.
- Ora, que bobagem, Fátima! Eu nunca fui batizada e estou bem.
- Está mesmo, minha filha? - perguntou a enfermeira, antes de se retirar.
A criança recebeu alta antes da mãe, que ainda estava perigosamente anêmica. Mas como não tinha família que a levasse, ficaram, mãe e filha, mais uma semana no hospital. Foi chamado um hematologista da capital, que pareceu preocupado com os exames, algo não batia... Mas mesmo assim ela recebeu alta, com uma receita de vitaminas e o compromisso de voltar em um mês.
Antes de irem embora, Fátimaveio se despedir, trouxe uma cesta com bolo, canjica branca (pra dar leite, segundo ela) e alguns sapatinhos em crochê, feitos por ela. Trouxe também um cordel e um catecismo:
- Minha filha, eu fiquei doidinha, em casa, procurando isso pra você. É pra ler, viu?
Liz foi ensinada, pela mãe, a aceitar qualquer bênção, viesse de onde viesse e que demonstrasse respeito pela fé dos outros, sempre. Então, ela aceitou, agradeceu e trocaram telefones.
Quando chegaram em casa, ela e Eduardo, a casa estava limpa, toda faxinada. Tinha galinha ensopada no fogão e comida congelada para uma semana. Dona Iracema logo apareceu, para ajudar, mas Liz apenas agradeceu tudo o que ela fizera, para recebê-la e disse que voltasse amanhã. Na verdade, não queria mais ver a velha, que já estava sendo incômoda, além de feder a alho, ou algo assim. No entanto, como já recebera tanta ajuda dela, não queria ser ingrata.
Colocou a menina no bercinho e foi tomar banho. Finalmente poderia esticar-se debaixo de um cobertor que não tivesse cheiro de clorofórmio. Pegou a cesta de Marta e se pôs a arrumar as coisas. Esquentou e tomou a canjica, que era, realmente, muito boa. Na sequência, resolveu pegar o cordel. Jamais lera um cordel e se deu conta do quanto eram gostosas aquelas rimas. Todavia o conteúdo da história foi lhe chamando atenção. Falava sobre uma figura sinistra, chamada Pisadeira, que sufocava as pessoas, durante a noite e lhes sugava o sangue; depois lambia a ferida, para estancar o sangue. Ela tinha predileção por crianças não batizadas. Liz foi gelando a cada verso que, não obstante descreverem a criatura perversa, ensinavam como fazer a defesa, pendurando um terço no berço das crianças pagãs, para protegê-las, e como impedir que a criatura entrasse em casa à noite.
Aquilo era um absurdo, mas Liz já tinha passado do limite da plausibilidade com tudo o que vira e sentira. Aquela cidade parecia aprisionar e amplificar as coisas. O real era relativo ali. Ela já percebera como as pessoas da localidade, sempre muito simpáticas, umas com as outras, pareciam ignorá-la, com delicadeza. Assim, entendeu que havia algo errado com ela, de alguma maneira.
Naquela noite, Liz foi a última a dormir e fez o que era necessário: fechou todas as portas com cuidado especial. E esperou... quando o relógio marcou as três horas, uma sombra se moveu no alto do pé direito de madeira. Liz cuidou para que sua respiração continuasse constante e profunda, sem denunciar seu medo. Dois olhos vermelhos se acenderam na escuridão. Foi difícil conter o horror. Era real, ou pegara no sono? Fincou a unha na palma da mão, para se certificar de que estava acordada. A sombra escorreu pela parede e formou uma poça ao lado da penteadeira, depois se ergueu, como fumaça e tomou forma: uma figura de capuz exalava um cheiro nauseante, semelhante a alho, ou algo assim. Na verdade, mais “algo assim” do que a alho. E a figura deslizou, sem emitir ruído, direto para o berço da pequena Lívia, que dormia profundamente. Foi aí que a figura estacou, emitindo um silvo: havia algo errado. Farejou em torno do berço e começou a guinchar, praguejando, em alguma língua que há muito tempo nenhum ser deveria falar. Inconformada, a sombra veio até a cama de Liz e também farejou e guinchou. Suas garras de rapina se esticaram até o peito da moça, mas depois recuaram como se o fogo de sete fornalhas estivesse ali. A figura, então, se expandiu até cobrir todo o teto, como uma nuvem, rodopiou e correu para a sala. Liz, cuidadosamente, se levantou e foi atrás com algo que escondera embaixo do travesseiro.
Na sala, a figura se contorcia e emitia silvos surdos, diante da porta. Liz se aproximou dela, pé ante pé, descalça e cravou-lhe a velha tesoura enferrujada, de costura, com toda força, até o cabo.
- Minha filha, não, sua maldita! - Liz gritou para aqueles olhos vermelhos, que lembravam certo alguém.
- Como?! – perguntou uma agonizante coisa-Iracema.
- Eu descobri: uma volta e três quartos na fechadura. Vai se alimentar no inferno!
Abriu a porta e chutou para fora, a velha, que caiu e saiu rastejando. Ainda deu uma escarrada na direção da criatura e fechou a porta: uma volta e três quartos.
No dia seguinte, Iracema já não estava na cidade. Desaparecera misteriosamente.
Naquele mesmo dia, mais tarde, Liz marcou uma hora com o padre:
- Quero me batizar.