Crônica de Horror

Mais uma noite insone. Mas estou me adaptando rápido. Conheço bem a casa e, mesmo sem acender as luzes, consigo caminhar entre os móveis sem neles esbarrar. Gosto de sentar à janela da sala, sobre o braço de um dos sofás, e olhar a rua. Existem belas árvores ao longo das calçadas e, vez ou outra, alguém caminha cantarolando uma canção. Não foram poucas as vezes que assisti ao nascer do sol daquela janela. E fins de noite assim seriam agora cada vez mais frequentes. Não sei se meu rosto podia ser visto, da rua, por entre as cortinas. Mas é bem possível que sim.

A sala é meu lugar preferido. Eu sempre dizia, meu reduto. E aquele sofá, somente meu. A bela e grande TV, na qual assistia às minhas séries preferidas. Na estante, algumas miniaturas que um grande amigo fazia com notável maestria. Eu tinha um Freddie Mercury, um Angus Young, todos os integrantes da formação mais clássica do Kiss, um Slash e, por fim, o Shin, o único, entre os demais, vindo do universo dos animes. Nas paredes, alguns quadros, ainda sem moldura, fruto do meu hobby de pintor. Eu sabia serem obras medíocres, mas me orgulhava delas mesmo assim. Ah meu piano... talvez meu mais querido bem material. Nunca consegui tocar como gostaria, mas eram prazerosos os momentos em que sentava para praticar, tendo ao lado uma taça de bom vinho seco.

Hoje chove. É uma chuva fina, silenciosa. Uma garoa na verdade. A rua está ainda mais deserta do que de costume. Não se vê ninguém... mas é claro, são três horas da manhã, e esse é um bairro residencial. Apenas um cachorro, com os pelos úmidos, revira os sacos de lixo em busca de algum alimento. Estava prestes a rasgar um dos sacos quando para e olha em minha direção. Por alguns instantes permanece daquela forma, olhando para a janela na qual me encontro, encarando. Ele tem o olhar sereno, porém curioso e atento. Não demora muito e percebe valer mais à pena dedicar atenção ao saco de lixo que parece conter restos de uma farta ceia, ceia na qual se comemorava algo, mas não sei dizer o que... um momento para brindar com os amigos, e festejar. Nunca, jamais, de lembrar dos mortos. Não era o momento para isso.

Ele encontra, finalmente, alguns ossos. Resolve não fazer ali, sob o meu indiscreto olhar, sua pobre ceia. Sai sorrateiro pelo mesmo caminho que viera, com a boca cheia, agora ainda mais molhado, pois a garoa já começava a se tornar uma chuva. Contra as luzes dos postes, os finos fios proporcionam um belo espetáculo, mesmo que bastante frio e melancólico.

Logo deve amanhecer. Sei que será um dia frio, úmido e cinzento. A sala, meu eterno reduto, impecável e caprichosamente arrumada. Silenciosa e triste. Levanto de onde me encontro e, propositadamente, esbarro em um dos quadros, o último que fizera, deixando-o torto na parede. Tenho que fazer isso. É uma das formas que encontrei de ser, de alguma maneira, lembrado.