O Bosque do Silêncio
Wilde Green
 
Havia algo de podre em Enseada...
 
Cidade costeira, com uma gente feliz e hospitaleira, mas surpreendentemente, nenhuma oposição política. Pelo menos na superfície das coisas. O jornalista Ricardo Brito, ansioso por ascender o mais depressa possível em sua carreira, farejou uma série de contratos milionários que envolviam licenciamento ambiental e venda de terras de mata atlântica a grandes corporações de Resorts. O povo da cidade vivia na mais pacata simplicidade, sem sinal de progresso há décadas. Um lugar parado no tempo, com casinhas de portas e janelas de madeira diretamente abertas para ruas de paralelepípedo.
 
Ricardo jogou a isca: uma reportagem de terceira página ligando os contratos suspeitos a sumiços misteriosos de donos de terras locais e alguns homens e mulheres que tentaram organizar um ensaio de oposição. Havia também uma denúncia de venda irregular de terras indígenas em processo de demarcação, mas nada comprovado até ali.
 
 No dia seguinte, porém, o inesperado: ao invés de represálias ou notas de repúdio, tão em moda na capital, Ricardo recebeu o convite para um cargo importante na Secretaria de Comunicações. Um homem muito bem vestido, dirigindo um utilitário de luxo apareceu no hotel o chamando para uma conversa com o prefeito em pessoa. Ricardo suspeitou, não quis encontrar o prefeito no gabinete e sugeriu um jantar em local público.
 
Chegando ao local, após algumas amenidades sobre os desafios de gerir uma cidade pequena trazendo qualidade de vida a todos, a conversa começou sutilmente a descer a ladeira da boa convivência depois que algumas convicções sombrias do prefeito foram se insinuando por detrás de suas supostas boas intenções.
 
- Ah as pessoas, meu jovem – disse o governante – falam muito sem ter nenhuma propriedade do assunto. Melhor seria se elas não falassem tanto...
 
- Então chegamos ao prato principal: o senhor está tentando me calar?
 
- De modo algum. - respondeu o prefeito - Você é um cidadão participativo com muitas ideias para nossa cidade. Precisamos de gente assim. Quero ouvir suas ideias e me esforçarei ao máximo para pô-las em prática.
 
Ricardo estranhou aquilo, mas pincelou as ideias gerais, disposto a ganhar tempo. O prefeito ouvia tudo com atenção e não devolvia uma só palavra. Em alguns momentos Ricardo chegou a pensar que ele só fingia ouvir. Se o prefeito fingia ouvir, ele fingia contribuir: seu objetivo oculto era entrar na engrenagem para colher mais provas, expor suas entranhas. Por fim o prefeito rompeu o próprio silêncio:
 
- Você sabe que no governo tudo funciona com papel, não é, Ricardo? Preciso que escreva tudo isso como um plano de ação e então entrarei em contato com a base aliada na Câmara para criar um projeto de lei.  Levarei tudo à votação e cuidarei para que seja aprovado.
 
- Ah não, prefeito, eu tenho que voltar à capital amanhã, sabe como é: tenho trabalho a fazer por lá. Não teria tempo de contribuir assim, de maneira tão substancial. – Ricardo se fazia de rogado para não transparecer a sede ao pote. Talvez aquela situação, se não lhe rendesse prêmios jornalísticos pudesse lhe render um legado político. Não havia pensado nisso até então.
 
- Teremos tempo sim. Eu tenho uma casa perto de Praia Bela. É um lugar tranquilo e afastado, você poderá se concentrar na elaboração do projeto.
 
- Eu não sei, eu precisaria fazer umas ligações, passar uns e-mails, reorganizar minha agenda... Esse tipo de burocracia, entende?
 
- Faço questão, Ricardo. Por favor, aceite a cortesia. Preciso me redimir com você. Não precisa responder agora: fique com o telefone do meu gabinete e acerte tudo com meu assessor.
 
Naquela noite Ricardo tomou certas precauções: enviou para sua irmã todos os arquivos do caso, incluindo a trilha de investigação das terras indígenas. Lembrou-se que um amigo seu, correspondente de Nova York, ficaria muito interessado naquelas pistas, pois na região próxima a Enseada havia estudos sobre arqueologia indígena muito importantes para a comunidade internacional. Ficou em dúvida se deveria mandar também para este amigo.
 
No dia seguinte ele telefonou para o assessor do prefeito e disse que aceitaria o convite, que poderia ficar mais uma semana. O assessor apareceu no fim da manhã no carro de luxo, pronto para levá-lo até o local. Ricardo ativara o localizador de seu celular, enviando sua posição em tempo real ao seu contato de segurança. Todo cuidado era pouco, não sabia com quem estava lidando.
 
Uma hora e meia de viagem, silêncio absoluto no carro. A paisagem era magnífica, a estrada contornava a orla, um mar agitado, sem banhistas. Dia cinzento. No horizonte, uma tempestade se anunciava.
 
Ricardo imaginou uma residência de veraneio, à beira da praia, mas em lugar disso, encontrou uma casa de muro alto, distante uns 300 metros do mar. Era uma rua extensa, repleta de terrenos baldios, o chão cheio de lama devido à chuva da noite passada, em alguns pontos o carro tinha dificuldades em passar.
 
Aquela era uma das poucas casas da rua. As demais pareciam vazias, eram residências de veraneio, o lugar ficava deserto àquela época do ano. O terreno estendia-se a perder de vista, tinha muitas árvores, parecia abandonado, tomado de mato por todos os lados. O tempo estava mudando, os galhos das árvores se agitavam de tal maneira que pareciam prestes a quebrar. Ouvia-se o barulho de água corrente, em algum lugar próximo dali talvez houvesse um córrego. Ricardo tentou checar sua localização, mas percebeu que há um bom tempo não havia mais sinal de telefonia.
 
- Tem certeza que é este o lugar? - perguntou Ricardo.
 
- Absoluta. Já trouxe outros amigos do prefeito aqui - respondeu indiferente o motorista. - Não se assuste. O terreno está mesmo precisando de um trato, mas a casa é confortável, você vai gostar. Bem, eu fico por aqui. Tome a chave. Boa sorte com sua missão.
 
O homem ligou o veículo e foi embora por aquela rua tortuosa. Ricardo entrou e passou a chave no portão.
 
Apesar do desleixo do quintal, a casa era um charmoso exemplar de arquitetura rústica. Portas, janelas e dobradiças novas, uma confortável cadeira de balanço na varanda e um sino dos ventos. O interior também não decepcionava. Era uma casa modesta, mas mobiliada por alguém de muito bom gosto. Absolutamente tudo era de madeira: os móveis, o assoalho, a escada que levava ao segundo pavimento.
 
 Tudo de madeira. Trabalho em madeira ricamente adornado.
 
O térreo tinha uma sala confortável, a cozinha e um banheiro. O segundo pavimento tinha um escritório charmoso, com uma condição de luz aconchegante, uma cafeteira, um armário com pães e biscoitos, um frigobar com água, suco e até vinho. Uma bela escrivaninha toda de madeira, trabalhada artesanalmente. No canto, uma cama aconchegante. Uma porta levava a uma varanda exterior construída ao redor do tronco de uma grande árvore, cujos galhos se estendiam cheios de liberdade em todas as direções.
 
"Esse cara sabe mesmo como desmantelar a oposição", pensou Ricardo com um sorriso vitorioso. Atirou a mochila num canto e se jogou na cama pra pensar em como começaria. Adormeceu.
 
Tempos depois, a violência dos trovões acordou Ricardo de seu sono restaurador. Despertou confuso, uma terrível dor de cabeça. Acendeu a luminária, luz fraca e quente criando um clima acolhedor. Tomou um banho e voltou disposto a trabalhar a noite inteira. Mas quando voltou, ouviu ruídos onde só deveria haver... silêncio.
 
- Quem está aí? - perguntou enquanto um estranho arrepio subia pelos braços. Não obteve resposta.
 
A luminária se movimentava como um pêndulo desesperado, ele correu para fechar as janelas. Contudo, podia jurar ter visto uma sombra, uma silhueta se esgueirando para trás da mesa. Abriu a mochila, pegou a arma - não confiava no prefeito o suficiente para ficar isolado numa propriedade dele sem ter uma arma.
 
- Estou armado, vou logo avisando – e engatilhou. Nenhuma resposta.
 
Foi até a mesa e nada. Ouviu algo no pavimento inferior. Desceu as escadas, pisando corajoso sobre os degraus de madeira maciça. Uma lufada violenta de vento empurrou a porta até o canto e entrou derrubando a jarra sobre a mesa. Um relâmpago forte invadiu a sala e as janelas abriam e fechavam convulsivamente.
 
"Esqueci tudo isso aberto?" - pensou. E correu para fechar a casa, quando viu com toda certeza algo saltar da varanda para o quintal. Ricardo correu na direção e atirou. O tiro foi abafado por um trovão. A sombra esgueirou-se pelo capim alto. Não parecia silhueta humana. Um medo primitivo ligou o alerta dos instintos do homem. O coração se acelerou e os olhos ficaram mais atentos. Ricardo suava ao mesmo tempo que o vento o fazia sentir frio. A saliva desapareceu da boca.
 
O vento agitava a vegetação, ora mais calmo, ora mais enfático, como se fosse uma coisa grande e invisível transitando pelo terreno. Acercando-se dele, visível apenas onde sua vista não alcançasse. Preparando-lhe algo terrível, inescapável.
 
Ele pensou se aquela sombra não era apenas sua imaginação assustada pelo isolamento e a tempestade. Ou se estaria em um pesadelo. Corajoso, engoliu seco, respirou fundo e prosseguiu pelo terreno, os raios torturando as árvores suplicantes. Correu e tropeçou no toco de uma árvore cortada, agora podia ver, havia vários daqueles tocos ali. Ele foi até o meio do terreno, o olhar vigilante como de uma coruja, varrendo toda a área. Chegou até uma grande árvore frondosa de tronco bem largo. As muitas árvores pareciam querer quebrar, a ventania as jogava de um lado para outro de um jeito desesperador, como se fossem pequenos animais torturados por uma fera.
 
Ricardo sentiu um calafrio tenebroso, um pressentimento sombrio de que havia tomado uma decisão muito errada ao ir até aquele quintal. Sentiu-se observado. Incauto, olhou tudo ao seu redor, mas não olhou para o chão, onde algo rastejava perverso até seus pés. Quando se deu conta, raízes sombrias já se enroscavam por suas pernas. Ele tentou se desvencilhar, mas foi inútil. Atirou no chão, mas armas não destroem sombras e aquelas raízes eram feitas de escuridão. As raízes subiram pelo seu corpo, começaram a estrangulá-lo e puxá-lo para o subsolo, como a enterrá-lo vivo. Sentiu o corpo sendo esmagado e tragado, até que seus gritos não mais eram ouvidos. Teve a estranha sensação de ir endurecendo inteiro de dentro para fora e viu sua pele sendo transformada em madeira; suas pernas, veias e vasos sanguíneos se convertendo em raízes, buscando desesperadamente a água do solo; seus braços buscando as alturas do céu. E quando ao acaso seus olhos miraram nas outras árvores, viu claramente o rosto dos vários inimigos políticos do prefeito, há meses desaparecidos. Seus rostos estampavam expressões de sofrimentos atrozes sob a forma de nodos e rugas nos troncos.
 
Ele ficou ali parado, à mercê da tempestade. E nos dias seguintes não comeu, não dormiu, não falou, não chorou. E sentiu uma imensa necessidade de tudo isso, sua humanidade trancafiada no corpo imóvel de uma árvore. A vida parecia decorrer de maneira diferente, como em câmera lenta, ao mesmo tempo que acelerado. Ele começou então a ouvir aqui e ali frases soltas, como sussurros ao vento:
 
“Matou meu pai...”
“Ladrão, imundo...”
“Corrupto...”
 
Eram as vozes daqueles que agora lhe faziam companhia, tudo o que eles podiam expressar através de farfalhares e rangidos, numa linguagem própria daquele bosque.
 
Um tempo depois, que Ricardo não podia precisar se eram dias ou anos, o ruído de carros rompeu o silêncio das árvores. "Mais vítimas?" - pensou a árvore Ricardo - "Dessa vez são muitas". Várias pessoas desceram dos carros, dentre eles, o próprio prefeito. Ele parecia apresentar o lugar àqueles homens. - "Seriam compradores?" - E depois de um tempo, quando todos já haviam entrado, o prefeito saiu pela porta em direção ao quintal. Passos calmos, confiantes, ar triunfal. Ele chegou ao meio do terreno, cercado de árvores por todos os lados, aqueles seres mudos, imóveis, inofensivos, o vento derrubando as folhas velhas e secas. Então ergueu as mãos para o céu, banhando-se na chuva de folhas mortas como se fosse uma chuva de glórias e honrarias ao pequeno César daquele mundo medíocre, encerrado em silêncio perpétuo. Então ele pegou algo no bolso, um pequeno artefato em cerâmica com vários orifícios. Soprou por eles, e sua voz se fez ouvir como num troar, ressoando na madeira do corpo de Ricardo. O prefeito não movia os lábios, mesmo assim o infeliz jornalista podia ouvir claramente o que ele queria lhe dizer:
 
- Sei que podem me ouvir. Triste daqueles que me desafiam. Assim os prefiro: calados, vulneráveis, a meu dispor. É melhor ser um senhor de árvores do que governante de uma gentalha rebelde que só atrapalha.
 
Então o pequeno César abaixou as mãos e caminhou por entre seus dissidentes agora neutralizados.
 
Os companheiros vegetais de Ricardo começaram a se agitar e praguejar em sua linguagem própria:
 
“Porco!”
“Seu Monstro!”
“Deus te mande pro inferno!”
“Canalha!”
 
- Ninguém além de mim sabe o que é melhor para esta cidade. Eu sou mais valoroso que todos vocês juntos, eu vejo a ameaça que todos vocês representam para a honesta gente daqui. Sempre só pensaram em vocês mesmos, só queriam projeção e nada mais. Só eu posso construir um reino de ordem e justiça nesta cidade e banir o mal. Ninguém ficará no meu caminho. Se não podem trabalhar comigo, então serão tolerados, mas em silêncio, no meu bosque, contidos pelos meus limites, mergulhados no silêncio eterno, suas angústias sendo ignoradas por todos. Gritem. Gritem mais. Seu silêncio é música para mim.
 
Ricardo reuniu toda energia que tinha para gritar algo, para produzir som como seus companheiros. Sua vontade fez a seiva fluir, o tronco se torcer, as folhas tremerem:
 
“Como?”
 
O prefeito, que já se virara para sair, se deteve e voltou. Assoprando novamente o objeto de cerâmica, respondeu:
 
- Eu tenho isso. Tirei da urna do índio. Agora eu controlo os espíritos daqui. Faço o que quero!
 
Sorrindo, o soberbo monstro devorador de vozes então respirou fundo e gritou para o grupo que veio com ele:
 
- Pessoal, a pracinha precisa de brinquedos e bancos novos. Escolham as que vocês quiserem, mãos à obra!
 
Os operários olharam e escolheram as árvores de tronco mais reto. Uma a uma, eles as derrubavam: uma seiva vermelha e grossa escorria dos talhos feitos à motosserra. Nenhum operário estranhou, talvez os homens fossem incapazes de entender a seiva como sangue das vítimas que ali derrubavam ou talvez só as árvores vissem aquele sangue. Eles conversavam alegremente enquanto trabalhavam. De um modo ou de outro, mesmo que vissem o sangue viscoso descendo pelos troncos, o prefeito teria alguma história estapafúrdia sobre minerais do solo daquela região. Eles nem prestariam muita atenção, mas acreditariam piamente só porque foi dito por seu ídolo. A madeira rangia e gritava em desespero enquanto caía pesadamente ao chão. Lentamente os homens esquartejavam as árvores para melhor transportá-las, e uma a uma as vozes de protesto foram silenciando definitivamente. Ricardo e os que restaram assistiam tudo em desespero, no início temendo serem os próximos, depois em silêncio enlutado pelos caídos.
 
No dia seguinte o prefeito trouxe seu círculo de apoiadores mais influentes e amigos mais próximos para uma festa. Ricardo usava todas as suas forças para gritar, mas sua voz não existia, nada se ouvia além da brisa leve do mar e os risos daquela gente feliz. Quis chorar, mas não tinha olhos, nem lágrimas para transbordar seu sofrimento; quis se debater, mas o desespero estava confinado em seu espírito, pois não tinha um corpo capaz de mover-se por vontade própria. Estaria condenado para sempre a afogar-se todos os dias em seu próprio desespero, sem nada poder expressar. Ninguém além daqueles outros seres condenados sob a forma de árvores ouviria seus lamentos. Seres que como ele, também nada podiam fazer a não ser afogarem-se em suas próprias dores.
 
Nem mesmo o feliz silêncio do sono sua alma teria, pois nunca mais ele dormiria. Nem mesmo um fim derradeiro poderia dar a sua existência. Nada. Ele só poderia assistir indefeso e esperar o dia que alguém ceifasse sua vida.
 
Embaixo, na festa, os convivas erguiam taças de champanhe ao redor do prefeito. Era a festa de lançamento de sua candidatura à reeleição. Alguém propôs um brinde:
 
- Ao nosso prefeito! Nosso eterno comandante. Por mais quatro anos e quantos forem possíveis. Porque esta é a vontade do nosso povo.
 
E a festa continuou sob o olhar desesperado e silente daquelas árvores, ao som de gritos e aplausos daquela gente feliz.
 
Wilde Green
Enviado por Wilde Green em 15/07/2020
Reeditado em 27/01/2021
Código do texto: T7006810
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