LUX FERO, O PORTADOR DA LUZ

"Eu sou grato pela minha existência.

Eu amo a minha casa.

Como é maravilhoso contemplar todos os dias a beleza do Éden que é a minha morada!

Como é incrível pisar entre as pedras afogueadas que cobrem o chão!

Meus lábios se abrem em uma bela canção em louvor ao meu criador e o som de minha voz faz as flores do jardim dançarem.

É um som lindo, é o brilho da perfeição.

Criaturas perfeitas tocam seus instrumentos valiosos, produzindo uma sinfonia pura e majestosa.

Meus olhos são bem aventurados, pois veem a cada dia a perfeição criada por meu pai.

Ontem vi minha face refletida na límpida água do lago do jardim.

Eu não conhecia a perfeição, até ver meu rosto.

Eu sou a criatura perfeita.

Não existe perfeição além de mim.

Pense em toda a beleza, imagine toda a glória do universo, tente vislumbrar toda a luz que existe em toda a criação. Nada disso me ofusca. O brilho que minha existência produz é infinitamente maior.

Eu nasci da essência do próprio Deus. Eu sou a sua luz.

Não há limites para a minha perfeição.

A inspiração que me gerou foi mais intensa do que o brilho das estrelas.

Vi tudo isso refletido na água e pude entender quem realmente sou.

Sou o brilho da alva, a resplandecente estrela da manhã. Sou o lírio dos vales, sou a luz e o brilho das estrelas.

Eu sou Lúcifer."

***

" Eu subirei ao céu.

Construirei meu trono acima da majestade, nas alturas.

Não haverá nenhuma criatura mais perfeita e poderosa do que eu. Nenhum ser acima do meu brilho e perfeição.

Serei o aferidor da medida e o modelo de tudo o que é belo.

Já estou arregimentando meu exército formado por seres inferiores a mim. Eles lutarão pela minha causa e construirão meu trono acima do trono de meu pai.

Ao redor do trono haverá um palácio de glória, construído com algo mais valioso que o ouro de Ofir.

Na torre do palácio construirei a minha imagem com pedras preciosas. Ali virão as hostes angelicais e me adorarão.

O trono de meu pai é majestoso, mas o meu será o retrato da perfeição.

Em toda a eternidade não se verá construção com maior brilho e glória do que esta.

Gerações olharão para meu trono, se dobrarão diante dele e me renderão adoração. Os seres que povoam a criação dirão: eis aí a perfeição!

Posso vê-los vindo de todos os cantos das terras celestiais, aproximando-se de meu palácio para verem a glória de meu trono. Eles trarão para mim seus melhores presentes e me adorarão.

Posso ouvi-los cantar em um coro celestial, celebrando o meu meu nome:

  Oh que ser de glória!

Teu nome é a luz!

Será lindo! Será maravilhoso! Eu sei que posso, porque sou perfeito.

Eu sou igual a Deus!"

***

" Meus exércitos não puderam conter os exércitos de meu pai.

Experimentei a derrota.

A guerra me jogou na escuridão. Uma escuridão tão escabrosa que já não me lembro da luz.

Há terrores na escuridão. Terrores que a mente não pode conceber.

A mente, por mais brilhante que seja, enlouquece prontamente ao tentar discernir aqueles terrores.

Eu, um ser perfeito, jogado na escuridão. Minha luz de repente se tornou trevas.

Estendi minha mão ao pai e ele me desprezou.

Ouvi uma sentença sendo pronunciada nas sombras:

- Leviatã! A grande serpente! Veja como estás caído, ó filho da alva. Como caíste! Como foste levado até o inferno!

Então eu vi o fogo, e vi as criaturas que habitavam o limbo, e eram seres horrendos.

Vi minhas asas lindas e douradas mudando. Elas se tornaram negras.

Eu perdi minha forma angelical e me tornei um monstro.

Inferno.

É essa a palavra.  Algo que me acompanhará para a eternidade.

O terror me cobriu por todos os lados, e quando o fogo me consumiu eu olhei para cima e vi meu pai, e  ele debochava.

- Quem és tu filho da alva?! Onde está a tua glória? - A voz não se calava.

E de repente um sentimento novo e desconhecido surgiu e povoou meu interior: ódio.

E como eu amava o ódio! No momento de maior terror e dor, quando meu ser mudava para uma existência maldita, foi no ódio que eu me apeguei, foi no ódio onde encontrei forças para suportar.

O ódio me fez enxergar nas sombras. O ódio me fez crescer, e junto ao ódio descobri uma ambição: vingança.

Agora eu almejava coisas novas, agora eu queria me vingar. Agora eu era leviatã, o terror, o mal.

Eu era a maldade. "

****

" Meu pai enlouqueceu. Ele criou um mundo repleto de seres bestiais.

Como são horríveis e desprezíveis aquelas criaturas!

Meu pai lhes deu glória, mas sua glória é inferior. Eles vivem em um patamar inferior ao meu.

Fico enojado ao ver aquelas criaturas. Seres feitos de algo tão decrépito que é o barro.

Meu pai as colocou em um paraíso.

Não posso admitir a existência desses seres.

Preciso fazer algo para destruí-los.

Sim. É a minha chance de vingança.

Destruirei a criação de meu pai, assim como ele me destruiu e me transformou no que sou.

Depois que eu terminar com aquelas criaturas patéticas o próprio pai as expulsará. Elas ficarão fedendo. Um cheiro tão terrível que o pai não suportará e as mandará para longe de si.

Então eu acabarei com todos os planos perfeitos de meu pai.

Ele se arrependerá de tê-los criado, e ele mesmo as destruirá.

E a terra, o lugar onde ele as colocou, se tornará como o meu mundo: caos e escuridão.

Como amo essas palavras! "

***

" Eu vi o brilho majestoso  da árvore que meu pai plantou  no meio do jardim, e confesso que fiquei impressionado.

Por um momento me lembrei da glória que tinha antes da traição de meu pai,antes que seu egoísmo me tornasse no que sou.

A árvore era o retrato da perfeição.

Me aproximei dela e provei de seus majestosos frutos.

O pai colocou neles tudo o que ele sabe, todo o conhecimento do universo.

Eu deslizei pelos seus galhos e um dia vi a criatura fêmea se aproximar.

A decrépita criatura tem a sua beleza. Meus olhos viajaram nas curvas de seu belo corpo.

Foi uma sensação estranha, por um momento a desejei, imaginei como seria tê-la em meus braços.

Precisei me concentrar para focar em meu objetivo: destruir toda a criação.

A criatura se aproximou e eu me mostrei a ela.

- Quem é você?

- Não importa quem sou eu. O importante é você saber quem é você, e qual o seu propósito.

- Eu sou Eva.

- Eva! Porque você é a primeira. Mas é apenas um nome. A questão é: quem realmente é Eva? - Me aproximei dela  tocando seu corpo, sentindo seu estonteante cheiro. - Porque Eva está aqui?

" Nunca se perguntou Eva? Quais são os segredos do universo? O que existe além dos limites da compreensão?"

Apanhei um dos frutos da árvore.

Os olhos da criatura brilhavam. Eu podia sentir seu desejo, eu conseguia vislumbrar todos os pensamentos e emoções mais íntimas daquele ser.

O pai  havia dotado aquele ser de livre arbítrio e isso era ótimo.

O destino da criação estaria agora sob o peso de uma decisão. Não seria minha culpa. Tudo o que eu precisava fazer era mostrar o caminho.

- Não pode pegar isso! O pai nos proibiu!

Eu sorri. Eu mostraria a ela o caminho e ela faria sua escolha. Depois daquilo eu me daria por satisfeito.

- É assim que Deus disse: não comerás dos frutos das árvores do jardim?

- Podemos comer das árvores do jardim. Mas da árvore que está no meio do jardim disse Deus: não comam dele para que não morram.

Como meu pai era patético! Ele precisava testar a sua criatura, mesmo sabendo que ela o trairia.

- Certamente vocês não morrerão. Deus disse isso porque não quer que vocês sejam iguais a ele.

- Do que está falando?

Mostrei a ela o fruto. As pupilas de seus olhos se dilataram. Eu podia sentir o cheiro do desejo. Era maravilhoso.

- Quando comer isso seus olhos se abrirão, e você conhecerá o bem e o mal. Você terá a mente de seu criador. Não quer ter a mente de seu criador Eva?

Eu podia ver que aquilo era tudo o que ela queria, descobrir que mistérios insondáveis eram aqueles.

Então ela usou seu livre arbítrio, ela fez a sua escolha e tudo o que eu pude fazer foi observar os passos da queda daqueles seres decrépitos.

Escondido entre as folhas das árvores vi quando Eva trouxe seu companheiro até ali e lhe deu do fruto que ela mesma havia comido.

Foi assim que aconteceu. Eu precisei apenas mostrar o caminho.

Houve trevas no céu do jardim, trovões e relâmpagos protestaram com veemência diante do nascimento daquela coisa maravilhosa chamada pecado, algo que eu havia criado e que funcionava muito bem.

As criaturas de esconderam do pai quando ele surgiu no jardim, mas foram achadas e não puderam esconder seu erro, não puderam esconder o pecado.

O pai os amaldiçoou, eu os vi sendo expulsos e dancei no meio do barro fétido de onde aquelas asquerosas criaturas tinham sido feitas.

Agora o homem tinha a mancha do pecado em si, e era uma marca que jamais o abandonaria.

O livre arbítrio os tinha conduzido a uma existência decrépita, longe da eternidade.

Eu acompanhei aquelas criaturas de longe, eu os vi sofrendo a danação que o pai lhes tinha imposto e estive presente quando sua prole nasceu, igualmente manchada pelo pecado.

Eu os vi crescer e como foi bom ver que o ódio e o rancor habitava os corações daquelas criaturas!

Um dia encontrei um deles no campo, seu nome era Caim, e seu coração estava cheio de ódio por seu irmão chamado Abel.

Foi o motivo de ter o amado. Eu podia sentir o maravilhoso ódio em seu coração e o desejo de vingança que eu mesmo sentia em relação a meu pai.

Então eu resolvi agir. Resolvi criar uma obra prima, algo que até então não existia no mundo, mas que, depois daquilo, se espalharia como um câncer.

Me aproximei dele e o envolvi em um abraço. Mesmo que ele não visse, mesmo que eu fosse invisível a seus olhos mortais.

- Porque não o mata e acaba logo com isso?

- Eu deveria matá-lo!

- Sim. Uma pedra. Uma bem grande. Deve acerta-lo bem na cabeça e o problema estará resolvido.

Aquilo era o bastante. O livre arbítrio, a possibilidade da escolha faria o resto. E ele fez a sua escolha.

Um dia ele estava no campo com seu irmão Abel. Então eu apareci.

- É agora. Esse é o momento. Não existem testemunhas.

Os olhos vidrados de caim desviaram para o chão e viram pedras enormes. Ele pegou uma e sem titubear acertou a parte de trás da cabeça de Abel, que caiu imediatamente.

Estava feito. Ele havia feito a sua escolha, e eu me deliciava com o resultado. Eu exultei quando Caim se dobrou sobre Abel e começou a golpear sua cabeça com a pedra em um frenesi louco, enquanto seu rosto era pintado com o sangue, o sangue maculado do pecado, o sangue maldito.

Depois ele se deitou no chão ao lado da cabeça destruída do irmão e começou a rir feito um louco, e eu ri com ele. Eu estava feliz, porque a criação perfeita de meu pai era um fracasso, a imaculada criatura agora estava manchada com o sangue da morte.

Não havia mais luz. A única luz era a minha, porque eu sou o portador da luz, e minha luz são trevas, e eu amo essas trevas. Eu amo a maldição.

A partir daquele momento eu infectei o mundo com o terror do homicídio. Eu libertei a morte das garras de sua prisão e os homens a amaram, os homens se mancharam com o sangue da maldição e eu fiquei a assistir o espetáculo.

Até o dia em que meu pai se arrependeu de tê-los criado e resolveu destruí-los.

A terra se tornou uma sombra escura coberta de água.

Eu pairei sobre a face das aguas, voando com minhas asas negras que produziam um impetuoso vento.

Estava maravilhado, contemplando a minha obra.

Minha vingança estava completa. A criação estava destruída, e eu podia descansar.

Qual foi a minha surpresa quando vi surgir de entre as ondas impetuosas uma arca. Uma embarcação onde descobri que meu pai ainda preservava a vida.

Aquilo era inusitado. Eu não contava com aquilo!

O que meu pai estava pensando? Qual era o seu plano daquela vez?

Será que ele ainda acreditava que aquela criatura decrépita e absurda ainda podia dar certo? Mesmo depois de toda a decepção que ela havia lhe causado desde a sua criação?

Bem... O que esperar de uma mente insana? Apenas a insanidade.

Um novo mundo aguarda a criação, um mundo onde espalharei a minha luz negra

Eu sou Lúcifer, o portador da luz. E eu destruirei toda a criação. "

TEMA - SOBERBA

Luis Fernando Alvez
Enviado por Luis Fernando Alvez em 15/07/2020
Reeditado em 01/07/2024
Código do texto: T7006427
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