A ÚLTIMA CONVENÇÃO DAS BRUXAS - CLTS 12
Nix, que gerou muitos monstros e demônios sombrios do ar úmido e gotejante da lua, não poderia encontrar rainha mais orgulhosa e fiel para povoar os pesadelos e trevas do que Hecate, mãe das bruxas, senhora e cuidadora dos fantasmas pagãos de fetos não batizados e de hereges excomungados que escolheram servir ao deus caído e seu séquito.
Direi a vocês, meus inocentezinhos, algumas das verdades nunca antes reveladas, mas nem todas:
A lua, nossa guardiã e vigia atenta de Nix, esconde tais mistérios e nos faz querer dançar nuas e vigorosas sobre os túmulos dos ancestrais dos santos, para que seus espíritos tumultuados pelo desassossego se enfureçam e se inclinem ao pecado e assim o mal vença mais uma vez.
Essa outra verdade, mais amena e doce, que se revela aos poucos antes que se perca para sempre, diz respeito ao dom amoroso que nos concede a graça do amor de Deus. Remédios, bálsamos e pomadas. Tudo que as ervas da floresta e o orvalho sejam capazes de juntos combinarem para resultar em curativos e medicamentos, foram-nos ensinados pela graça do anjo Raphael antes que nos condenassem pelo pecado ridículo de nos rebelarmos contra a subserviência imposta pelos machos. Nós fêmeas que de igual matéria fomos feitas, sujeitas ao cabresto de impotentes criadores de bodes. Esses que também se afastaram da graça e correram humilhados do Éden para a longínqua terra de Muhz.
Agora a pior de todas as verdades. A difamatória verdade. Que se creu e se crê até hoje. De que somos, a maioria de nós, cruéis e sem coração e nossa vingança contra a raça humana não se abranda nem podemos aprender a amar de novo e ser melhores do que já fomos.
Eu, Suzana, unigênita de Elizabeth Rockefeller, uma das mais poderosas bruxas da Grã Bretanha, recebi essa incumbência solene, de importância crucial para a sobrevivência de minhas irmãs espalhadas pelo mundo, de reunir todas nós bruxas, independentemente de sua casa ou de sua formação, para a mais importante convenção da história moderna.
Helen Bishop vem das cercanias de Salém em Massachusetts, junto com sua irmã de Nova Orleans, Abigail. Otizeh Papuá, que é uma negra estéril nascida na Argélia, veio trazida por seu servo Buiú Tombapê, um zumbi ressuscitado por sua mestra. E assim por diante todas vão chegar. Rebecca de Israel, Florence da Escócia e Juntica Lupa do Taití, uma jovem sedutora que hipnotizava homens de todas as idades, belos ou não.
Quando despontou o primeiro raio de sol da manhã do dia 21 de junho do ano de 2010 eu abri as janelas de minha casinha em Durham, Inglaterra, e os corvos vieram me saudar comendo os farelos de milho que eu sempre jogava nas janelas. As lavadeiras que mantinham os costumes de suas antepassadas, atravessavam a floresta com os cestos cheios de roupas a caminho do rio e os fazendeiros se preparavam para mais um dia de trabalho duro.
Florence foi a primeira a chegar. Fez duas horas de carro vindo de Melrose, Escócia, até aqui. A espalhafatosa ruiva magrela com seus chapéus esvoaçantes, blusas transparentes e lenços. De todas que eu conhecia talvez fosse a única que pudesse esconder bem em seu íntimo essa fúria e selvageria que nos tornam às vezes alvos fáceis para farejadores de bruxas. Mas é instintivo, tanto quanto para um gato é segurar-se ao precisar usar a língua para lavar-se.
– Fez uma boa viagem, irmã? –, perguntei.
– Se fiz uma boa viagem? Você sabe. Sempre sou uma boa companhia a mim mesma. E olhe você, a Suzana de sempre. E essa casinha caprichosa de tijolos, com tantas janelas. É tão, tão… inglesa.
Nos abraçamos. Ajudei ela com as duas malas, além da mochila que trazia. Conversamos muito sobre tudo. Fiz o tradicional chá, que é receita secreta de família e os biscoitos com banha de porco, noz moscada, pó de aranhas de cruz, rabos de salamandras e gengibre.
– E a Juntica Lupa? Ouvi dizer que ela já foi vista com um novo namorado. Qual terá sido o fim do Alejandro? – Perguntei curiosa. O fogão à lenha atrás de mim soltava estalos com a brasa que queimava e a velha raposa caolha e curvada me chamava apontando a cabeça e soltando ganidos parecidos com gargalhadas medonhas.
– O que ela quer?
– A Felícia? Nada, não. Ela fica assim quando quer passear. Está na hora de colher as ervas e recolher as armadilhas. E ela sempre me acompanha. Não muda de assunto. Quero saber do Alejandro, coitado. Será que virou prêmio também?
– Não, Suzana. Você não sabe de nada mesmo. Ouvi dizer que ela não quer mais saber de empalhar os caras para decorar a sala, o lugar já está cheio. Parece que ela matou esse e enterrou no jardim. Quando sente falta ela aplica uma loção daquelas que acendem o fogo e a ferramenta do defunto fica pronta para o uso.
Rimos juntas e Florence quase se afogou com o chá, enquanto Felícia de tanto incomodar conseguiu escancarar a porta entreaberta e fugiu.
– Sendo assim, por causa da linguiça se fica com o porco inteiro? Seria mais fácil cortar fora e guardar como um brinquedinho, não acha? – Especulei com uma anedota bem antiquada.
– Você não sabe como a Juntíca estava nos últimos anos? Se sentia carente. Acho que cansou dessa vida e quis se enrabichar com alguém. Talvez tenha se apegado, concluiu Florence.
– Pode ser. Bem que a morte parece mesmo uma bela forma de agradecer Alejandro por tê-la presenteado com o amor.
Mal terminei de dizer essas palavras e a porta rangeu devagar, precipitando uma forte batida como um soco, que fez um estrondo violento ao se chocar contra a parede. Era Papuá, a irmã argelina. Trazia um balaio tampado com uma alça, na qual uma corda colorida trançada se prendia e de onde penas negras sobejavam. Os olhos da preta eram verdes como as águas do Caribe e sua testa alta e a cabeça lisa e brilhante ostentavam a insolência despudorada do povo do norte.
– Bidh uisge aibhne a ’sruthadh, gaoth a’ sèideadh bho na coilltean, tonnan mara a ’briseadh. Trì volleys agus trì urram. Tha fàilte ort agus leig le stuamachd a thighinn a-steach agus leig le fois a thighinn a-mach. – Disse, saudando minha amiga africana. No que ela respondeu radiante com um sorriso ensolarado que desanuviou seu semblante sombrio:
– Bidh mi a ’cur fàilte air beannachdan gu toilichte agus a’ roinn gàirdeachas na dachaigh leis an aoigh agam, a ’faighinn a-mach leis na tha neo-mhiannach.
O gaélico escocês era usado para cumprimentos entre os iniciados e os veteranos em todas as formalidades e eventos sociais. Sempre depois disso a mão esquerda de quem cumprimenta toca o punho direito fechado do cumprimentado. Papuá largou o balaio o soltando pela corda ao chão e bateu os pés para deixar a poeira dos sapatos lá fora. As suas contas de pedras coloridas, miçangas penduradas e adornos balançavam com seus gestos espontâneos ao falar. Soltou-se na cadeira, levando a mão nas costas.
– Sem chá, sem chá. – Rejeitou Otizeh Papuá, pedindo água. Se abanava com um leque amarelo e bojudo e do jeito que se sentou parecia desmaiada.
– Ora, ora. Como a remelenta refugiada de Igangan, resistindo a infância com tão pouco e coroada de desgraças se torna essa esnobe com escravo zumbi e ainda exige o que quer beber na casa da anfitriã? Que tempos são esses, não?
Logo depois de minhas palavras, nada amistosas pelo que parecia, Papuá levantou-se sorridente e me abraçou. Nossa amizade é tão antiga quanto os primeiros ancestrais da civilização humana, pode-se dizer. Mil e noventa anos atrás, sete gerações desde os druidas, sábios e filósofos detentores e mantenedores da sabedoria do carvalho. Resistentes bastiões da cultura e mitologia celtas. Voughan, meu ancestral mais antigo, cujo nome quer dizer pequeno guerreiro em céltico, viveu 218 anos, numa longínqua era em que a nossa raça vivia mais tempo que hoje. Akin, descendente de Papuá, era um argelino que saiu com seu povo do solo árido de Tabelbala na peregrinação de 10 anos em busca de uma vida melhor em que muitos dos descendentes Papuás, se fixaram e se espalharam do Marrocos até Espanha e França, firmando raízes finalmente nas planícies do sul da Inglaterra.
– Serviram chás nos voos e esses chás industrializados são como mijo de cavalo. Não que eu esteja rejeitando o seu, Suzana, mas meu estômago está se revirando para dentro de tanta náusea. Preciso de água para me purificar.
– Seu criado Buiú, onde está? Perguntei.
– Fez amizade com um bode cinza aqui das redondezas. Pelo que escutei gritando ao chamá-lo, trata-se de um escultor traído que foi transformado no animal pela esposa. Acho que têm muito o que conversarem.
– O seu zumbi problemático continua se compadecendo dos enjeitados e enganados, mana? – Observou Florence, referindo-se ao espírito generoso do zumbi inocente. Buiú Tombapê tornou-se um morto-vivo depois de morrer atropelado por um ônibus ao fugir da polícia. Ele estava parado na frente de uma farmácia que acabara de ser assaltada. Os bandidos fugiram e quando a polícia chegou se deparou com o filho adotivo de Papuá.
– Tombapê é um produto, mana, – retrucou Papuá revirando os olhos e levantando o nariz nessa parte, – da multiplicação da maldade e do preconceito humanos. Ele sofre em silêncio e se compadece das pessoas que também sofrem como ele, ou por qualquer motivo que pareça banal para os que são frios de coração. Na Nigéria ele tinha as crianças refugiadas e as escolas. Ele ensinava o pouco que sabia e cantava, dançava. Ele adorava aquelas crianças. Mas muitos os queriam longe porque sabiam que essa bruxa velha aqui tinha-o tornado zumbi pela velha tradição vodu e também por acharem que estava desvirtuando e distraindo as crianças do que consideram o ensino tradicional dos professores europeus voluntários.
– Vão parar as duas? Eu estava escutando da cozinha. Toma Papuá, sua água. Daqui a pouco vocês estão brigando como sempre fazem no whatsapp. Melhor sairmos para ver a fazenda. Ordenhar as vacas, pastorear as ovelhas, pentear os cavalos. Qualquer coisa pra distrair a cabeça. Vamos? Eu disse, porque já sabia onde aquela conversa sem sentido iria parar.
Helen e Abgail chegaram por volta das três horas da tarde quando fazíamos um piquenique naqueles vastos campos verdes. As mais novas herdeiras da tradição milenar da bruxaria trouxeram lembranças tristes do novo mundo. Todas as crendices e superstições de colonos assustados e ignorantes, o que para nós do velho mundo já era conhecido e normal, tomou uma roupagem nova e algumas paisagens mais sombrias e cabulosas. Velhas que faziam adolescentes sentirem coisas que nem as próprias podiam explicar, muito menos provar e desde sempre coisas sem explicação recaiam em nosso colo simplesmente por acharem que somos servas de Satã. Algumas são suas servas, não há dúvida. Eu Suzana sou, Papuá também. Rebecca não é. Sua cultura judaica evoca Lilith não como maldita ou demoníaca mas como mãe e protetora das mulheres. Helen é diferente. Era boa, nunca foi bruxa mas acusada de ser uma. Perdeu a filha, morta a pedradas. O marido foi embora de casa, bebendo, covarde demais para aguentar lúcido a paranóia dos puritanos que ainda hoje, acreditem, assolam aquelas terras. Ao conhecer Abgail, uma bruxa de verdade, Helen aprendeu e superou a sua mestra, praticando a bruxaria em prol de uma vingança retraída e alimentada ao longo dos anos por choro, raiva e padecimento. Em um mês o vilarejo pequeno de quinhentas pessoas virou uma enorme pira em brasas incendiada por montanhas de corpos que ardiam, se desmanchando em cinzas secas do seu próprio ódio, do qual acabaram sendo vítimas.
– Uma linda paisagem para um piquenique, irmãs. A Inglaterra tem esse ar velho, – disse, respirando fundo, – que é o delta que desagua de uma só vez vários rios no mar. Tudo misturado, o velho e o novo sempre se renovando e ambos aprendendo um com o outro. Que saudades do lar dos meus antepassados. Vamos iniciar os trabalhos? Estou empolgada. Concluiu Helen Bishop. Abgail levantou os ombros e sorriu demonstrando o mesmo entusiasmo e juntaram-se a nós no piquenique. A tarde findou trazendo Rebecca e o começo da noite trouxe consigo as bestas selvagens que habitavam as matas e toda a orda invisível que atravessa e ocupa ocasionalmente o nosso mundo terreno.
Tendo a lua de luzeiro os nossos corpos nus se contorciam e se curvavam e nossas pernas emanavam como raízes da terra toda a energia transmitida pelos braços que os devolviam para a terra na reenergização necessária e benéfica para cada uma e todas. Depois que depositamos nossas oferendas no grande carvalho ao centro, eu clamei para mãe terra e o céu, os rios e mares, a lua e as estrelas. Os cinco elementos e os animais, para que conosco ajuntassem esforços e a conexão começasse.
Lobos uivaram, ursos urraram o bode cinza baliu e Buiú sentiu urgência em voltar para a terra, cavando um buraco no chão com as próprias mãos.
Abgail, preparando-se para o ritual, bebeu o sangue quente do bode cinza que acabara de ser morto e em seguida todas nós o tomamos direto de uma taça feita de ferro pelos anciãos de outrora. Na orgia descontrolada que as ervas alucinógenas e o sangue quente descendo pela garganta propiciou, todas passamos a juntas nos tocarmos e fazer carícias umas nas outras. Helen, de olhar vidrado e cabelos desgrenhados e sujos trouxe uma cabaça grande contendo o resto do sangue e derramava sobre todas e nela mesma. Nos sujávamos de terra e nos beijávamos. As bocas tocavam as vaginas e trocavam fluidos com elas. Os ventres se arqueavam de prazer e dor. Arranhões e sensações mistas de êxtase e sofrimento físico despertavam nossos sentidos nos aproximando das divindades supremas e da natureza. Foi quando a levitação começou e todas demos as mãos em pleno ar. Com cara de loucas, descabeladas, sujas, gargalhando e gritando. Rindo sem motivo, dizendo coisas sem sentido. Tivemos a visão que todas esperavam. Satã encarava-nos do chão, sentado no seu trono de fezes humanas secas, esculpido na forma de uma grande privada, coroada atrás por espetos pontudos que formavam uma semi-coroa. Ele comia, das nossas ofertas, um pedaço de cada. As galinhas pretas que Papuá trouxe da Nigéria,
os bolinhos chamados de Varenike da Rebecca, entre outras coisas. Fumando o charuto que Juntica Lupa comprou em Cuba, ele ria pra nós e fazia movimentos ritmados e circulares com os braços para nos empolgar. Passamos a disputar nas danças sensuais para ver quem ganharia sua atenção e acasalaria com ele. Mesmo sabendo que ele poderia querer todas nós, como já aconteceu.
Depois de se fartar e se cansar de nós ele levantou, se despiu e apontou pra cima e com o indicador chamou Juntica Lupa. Todas nós caímos no chão imediatamente, mas ela permaneceu no lugar e o seu senhor subiu com ela e eles copularam em acrobacias inexplicáveis. Mesmo tristes nos confortamos umas nas outras e com os animais da floresta. Alguns lobos montaram em nós e nos satisfizeram. Dormimos abraçadas com eles e Juntica Lupa também, depois que Satã se desfez em névoa até a próxima vez.
A convenção ocorrida antes das oferendas e da orgia foi de modo geral benéfica. Discutimos e democraticamente votamos mudanças importantes para serem implementadas em prol de nossa sociedade. Mas isso tudo estará nos livros e estatutos, junto com as tábuas e grimórios de todos os que nos antecederam. E sobre esses relatórios não falamos publicamente. Por isso reles leitores, fiquem gratos que já é muito que disso saibam. Pois nem nisso terão dicernimento. Vocês que dormem, pobres mortais, continuem dormindo. Boa noite.
– Ah, há, há, há, há, há, há, há, há!
Bruxas