Luzes na Noite
A lua cheia brilhava por entre as gomosas nuvens de uma noite típica de inverno no sertão. Perto da parede do açude, Pintinho vinha cantando uma música que ouvira repetidas vezes no rádio. Parecia que ele era o solista de uma orquestra de grilos e sapos-cururus que ecoavam nos matos recém-aguados pelas chuvas de mais cedo. Bem ao longe, ele podia ouvir espaçadamente o vento e um ou outro ruído dos caminhões que passavam na pista asfaltada.
O rapazola de pouco mais de quinze anos empurrava sua bicicleta. Na garupa, trazia uma pequena trouxa. Eram alguns mantimentos que ele levava da fazenda de Doutor Bruno para casa. Sua mãe, Socorro, iria adorar a farinha, o milho e aquele feijão verde recém-colhido. Era uma ajuda que o Zézão, capataz da fazenda, dava ao rapaz. Pintinho o ajudava na lida do gado, no corte do capim, no roçado distante do serrote por trás das Areias, levava os jumentos da fazenda para dar de beber e tomar banho no outro lado do açude. Empurrava a bicicleta, pois tinha tomado algumas doses de cachaça com o Zezão e não queria cair, derramando as encomendas.
Pintinho olhou para cima e viu a lua que brilhava pálida pelo céu. Noite de lua cheia é muito bonito, não precisa nem de lanterna, nem de lamparina. Deu um sorriso feliz, pois sabia que o dia de trabalho seria pago no sábado, que era quando o patrão vinha da cidade. Ele teria dinheiro para ir ao forró do Gogó. Lá, beberia e dançaria como um autêntico trabalhador. Invejava os homens que trabalhavam a semana inteira e, no final de semana, aproveitavam para beber cerveja em dois ou quatro lugares diferentes, farreando, pagando bebida para todos. Esta semana, ia salgar o pé do frango, podia Dona Socorro achar ruim, faria como seu pai, o Gabrielzinho, fazia antes de ir embora de casa. Aqueles caboclos aproveitavam o suor de sua testa para brincar no fim da semana com os amigos.
O rapaz parou a sua bicicleta sobre a parede do açude e observou aquele espelho d’agua bonito refletindo a lua e as nuvens que anunciavam chuva. Aquelas águas calmas já tinham salvado a vida dele várias vezes: quando precisava de comida para se alimentar com a mãe, pescava tucunarés gordos no batedouro de sua tia Toinha ou quando, há dois anos, na seca, o açude não secara por completo, pegava camarões no lodo com um landuá, enquanto seu pai buscava água numa lata para encher os potes de casa.
Um relâmpago clareou no céu e Pintinho soube que deveria apressar o seu passo para chegar logo em casa e não se molhar.
Quando ia recomeçar a andar, percebeu movimentos do outro lado do açude. Olhou por trás das plantas que enfeitavam a margem esquerda do açude como uma mesa de sinuca e percebeu que três pequenos corriam em direção à estrada em que ele estava. Era bem os meninos de Dona Mundica que voltavam pra casa. Pintinho era muito amigo da família de Dona Mundica, praticamente vira os pequenos nascendo, pois sua mãe ajudara no parto de dois deles.
- Ei, bando de bacurauzim, vamos pra casa! – gritou para os meninos - seus “cara-de-cururu-rachado”!
Pintinho percebeu que os meninos pararam e olharam em sua direção. Ele começou a sorrir, pois gostava muito deles.
- Vão se molhar na chuva, bando de menino fuleragem. – gritou novamente, quando percebeu os meninos correndo pela parede do açude em sua direção.
Continuou empurrando sua bicicleta por sobre a parede do açude e observou que as águas do açude eram o próprio céu movimentado de uma noite anuviada.
Pintinho com um enorme sorriso no rosto. Já não se importaria muito de se molhar, caso pudesse abraçar aqueles curumins que tanto queria bem. Mas, para sua surpresa, as crianças pararam a uns dez metros do lugar onde ele estava.
- Ei, Zezim, venha cá me dá um cheiro!- gritou animado.
Não ouviu resposta, apenas, o canto de alguma ave noturna que parecia zombar dele.
A claridade da lua que saiu por detrás de uma nuvem o permitiu ver o contorno dos meninos que não deveriam ser mais altos que o guidom de sua bicicleta. Pintinho estranhou o corpo das crianças, pois pareciam estar mais barrigudos que de costume e aprumando melhor a vista, percebeu as suas cabeças que eram um pouco maiores de como ele se lembrava.
Uma das crianças levantou um braço e o rapaz percebeu uma claridade estranha na palma da mão do pequeno: uma luz esverdeada que clareava mais que uma lamparina e menos que uma lanterna de foquite novo. A luz mudou de cor rapidamente, de verde ficou amarela e clareou-se num tom azulado, até piscar três vezes na cor vermelha.
O som da noite que era cheio de grilos, sapos-cururu e vento foi preenchido por um estranho barulho que parecia a mistura do rádio cheio de estática e um gato ronronando.
O rapaz sentiu um arrepio na espinha, pois acabara de perceber que aqueles pequenos não eram os filhos de dona Mundica, mas alguém, ou pior, algo que a sua mente inocente ainda não tinha imaginado. Percebeu que das cabeças, olhos grandes e negros se projetavam até a testa, observando a imensidão da massa de água calma que estava a sua esquerda. Bocas pequenas e retas completavam um rosto sério e cheio de vazio.
Pintinho puxou sua bicicleta de lado, colocando-se atrás dela. Não sabia que tipo de visagem era aquela, não sabia o que aconteceria. Não tinha pra onde fugir, só se voltasse correndo pela parede do açude ou montasse na magrela e deixasse a sua preciosa carga pra trás.
- Eita, Porra! – berrou assustado.
O barulho ia aumentado e o rapaz percebeu que as calmas águas do açude, agora, moviam-se borbulhando como se fossem águas de uma chaleira. De Repente, sob a enorme massa acinzentada de água, enormes luzes brilhantes surgiram.
Pintinho não acreditava no que seus olhos viam. Como era possível aquilo? Se não estivesse com o corpo tomado pelo medo, talvez, tivesse achado um belo espetáculo.
Rapidamente, as luzes emergiam e projetavam-se em claridade, iluminando-se de baixo para cima o açude parecia uma enorme panela de água fervente, borbulhando como louco. Quando o enorme e brilhante objeto oval tomou forma em cima do espelho d’água, apagou-se completamente, mas o barulho era quase insuportável. O som vibrava de uma maneira que o rapaz nunca tinha sentido antes: seus ossos vibravam junto com aquilo e ele só conseguia suportar-se de pé, porque seu corpo estava apoiado na bicicleta. Seus ouvidos começaram a doer, suas pernas tremiam e seus estomago foi tomado por uma sensação de náusea, parecia que ia vomitar.
O objeto boiou por alguns segundos em cima do açude, como se fosse uma enorme canoa. Quando as luzes reacenderam-se, o objeto começou a flutuar no ar e pouco a pouco foi ganhando altitude.
- Valei-me, meu São Francisco! – o rapaz falou, quando sentiu um toque em sua mão.
Um dos pequenos havia se aproximado sem o rapaz perceber e tocou-lhe na mão. O rosto vazio da criatura o encheu de pavor e Pintinho temeu por sua vida. Mas, em sua mente, ouviu uma voz tranquila falando: “Não tenha medo!”. Ele entendeu que, de alguma maneira, aquela pequena criatura falava com ele. “Não precisa ter medo!”, mas aquela voz em sua cabeça só o assustava mais e ele, tomado por uma por uma onda de adrenalina, empurrou a bicicleta em cima do pequeno, deu meia volta e saiu correndo em direção à fazenda. Foi quando uma enorme luz clareou toda a estrada, parecia que o dia tinha raiado.
Pintinho sentiu seu corpo enrijecer-se e correr foi ficando cada vez mais difícil. Começou a caminhar, como se seus músculos não pudessem mover-se mais rápido e suas pernas pareciam pesar toneladas, até que parou estático. Contra sua vontade, caiu paralisado de cara no chão. Respirar ficava cada vez mais difícil, seus músculos pesavam mais e com muito esforço, conseguiu virar-se no chão.
Por sobre sua cabeça, viu um pequeno objeto brilhante que jogava um foco de luz azulada em sua direção.
O rapaz cravou os olhos, pois não suportava a força da luz em suas pupilas acostumadas ao escuro da noite. Foi quando sentiu que o barulho ensurdecedor recomeçou mais forte e notou que não estava mais deitado no chão de terra batida da parede do açude, mas percebeu-se estirado numa fria chapa de metal.
De repente, tudo ficara em silencio e a luz o cegava ainda mais. Sentiu seu corpo exausto. Estava mais cansado que nos dias que jogava bola depois de um longo dia de trabalho pesado na fazenda. Sentiu o cansaço mais forte. Sentiu sono e seus olhos pesaram. Respirar, repentinamente, se tornou mais agradável, pois um cheiro gostoso espalhava-se pelo ar. Nesse lusco-fusco entre a consciência e o sono, Pintinho começou a ouvir barulhos ao seu redor e percebeu-se acompanhado de mais duas ou três figuras ao redor da mesa.
“Relaxe, sinta-se bem. Logo, tudo vai voltar ao normal. Vai ser só uma picadinha.”, ouviu uma voz suave dentro de sua cabeça.
Um pequeno sorriso formou-se em seus lábios e ele adormeceu tranquilamente.
***
Quando acordou, estava deitado no chão, ao lado de sua bicicleta em uma pequena vereda sem vegetação. Um pouco tonto, levantou-se e sentiu seu corpo pesado. O que aconteceu, meu Deus? Não se lembrava de nada. Com algum esforço, levantou a bicicleta que estava suja com uma gosma esverdeada que parecia lodo e empurrou-a com muita dificuldade.
- Nunca mais eu vou beber novamente. – jurou para si mesmo, perdido com o que acontecera.
Seguiu a pequena vereda e saiu no caminho da estrada dos Tucuns e rumou para casa. Ainda estava bastante tonto e sua barriga doía. Vomitou duas vezes, antes de chegar a sua casa.
Uma chuva fininha começou a cair quando ele, finalmente, abriu a porteira do alpendre. Colocou a bicicleta para dentro e percebeu que tinha perdido a sacola de mantimentos que trazia. Era um homem morto! Dona Socorro não perdoaria uma coisa dessas.
Bateu na porta e esperou. Sua cabeça doía.
- Quem é? – ouviu a voz da mãe lá dentro.
- Sou eu!
Rapidamente, o trinco girou e dois ferrolhos foram retirados. Uma senhora magrinha de pele queimada pelo sol, seus olhos expressivos e vivos como um beija-flor, mas com o rosto mais sofrido que de costume apareceu com um olhar emocionado.
- Oi, Mãe. – Pintinho falou baixinho, meio nauseado.
- Meu filho! - disse ela correndo para abraçar o rapaz. – E, onde você estava? Eu estava tão agoniada.
- Oxi, e eu lá sabia que mãe tava tão preocupado comigo assim. – respondeu rindo – Eu vim da fazenda, né.
A mãe o largou por um instante. Colocou os dois braços nos ombros do garoto e disse-lhe olhando em seus olhos:
- Meu filho, você sumiu ... Faz quase... três semanas!