226 - A Cobrança
Estava ali para trabalhar! Agarrou o peixe pelos opérculos, enfiou a faca e em menos tempo do que leva a contar, livrou-o de tripas e guelras. Ainda assim, a passadeira haveria de registar a pausa. Nunca foi capaz de pensar sem interromper a tarefa. E o chefe, atento, perguntou: - há algum problema? – Não, senhor Justino, está tudo bem. A seguir, limpou as escamas que lhe subiam pelos braços, ajeitou a touca, limpou as lágrimas que teimavam em assomar, fungou junto às costas da mão e retomou, com gestos repetidos, o amanho dos peixes para a conserva. Conseguira emprego ali a acreditar que a vida tomaria jeito e, em vez disso, via-se naquela repetição, no sufocar das pressões que levavam o pessoal a deprimir-se. Ninguém conversava e o homem poderia ocultar falhas, demoras, atrasos mas tudo seria cobrado à saída, no armazém, no cubículo que lhe servia de gabinete. Não era esquisito. Importavam-lhe menos os cheiros a peixe, as mãos gretadas da lida, as queixas a pedir clemência. Levantava as saias, com a manápula fria, marinhava pelas coxas, afastava o que estivesse ainda no caminho e gozava que nem um porco, um minuto depois. Sobrava a humilhação, o rubor no rosto, a raiva impotente. Hoje, pensou, ele nem sabe o que o espera se ousar. – Ó menina, chegue aqui, por favor. Já sem a bata, segurou atrás das costas a lâmina usada para o peixe e quando ele veio trocista devassá-la sem qualquer contemplação, castrou-o.