O Aparelho

A lua ainda não tinha nascido. A boquinha da noite era escura, tinha uns contornos densos e espectrais. Iluminado por um pequeno lampião, o alpendre da casa de Bastião era invadido pelas sombras que se alongavam pelo piso de cimento queimado recentemente.

Bastião era um homem simples, agricultor e devoto da São Judas Tadeu. Morava naquela região desde que se entendia por gente. Dizia que tinha medo da cidade grande e de gente com muitas posses. Era casado com Mariazinha, a costureira da região desde muito tempo e com ela, tinha dois filhos: Raimundinho, um menino pequeno e Terezinha, uma mocinha de uns 14 anos.

As crianças brincavam no terreiro com uma pequena bola de meia. O menino chutava a bola para a mocinha que tentava rebater com o pé descalço.

- Coidado pra mode não rasgar a chapuleta do dedão! – dizia a menina.

Bastião deitado em seu tucum via os filhos brincando, enquanto esperava Mariazinha voltar da casa de Dona Rosa, comadre deles, que morava do outro lado da parede do açude. Ela tinha ido buscar uma encomenda de tecido. Enquanto tinha esse momento de paz, vendo as crianças brincando, lembrou-se do tempo de menino quando brincava nu pelas veredas indo em direção ao riozinho tranquilo que corria na várzea, atrás da casa de seu avô. Era um tempo bom que não tinha preocupação. Perdido em suas memórias de outrora, voltou a si quando ouviu o grito da filha:

- Pai! Olha aquilo ali! É o aparelho?

De um salto, o cabra levantou-se. Barão, o cachorro da família, começou a latir do outro lado da casa.

As pessoas daquela região andavam dizendo estar vendo umas estrelas estranhas no céu. O primeiro foi o Raimundim Pezão que disse ter visto uma bola de fogo em cima das capoeiras de milho dele. Disse que parecia dia claro. Disse também que as cores mudavam de repente e que ele ficou maravilhado com a boniteza do negócio. Disse ainda que a luz sumiu de repente: o que era dia virou noite, num instante. Depois, foi Seu Riba que jurava de pé junto ter visto uma estrela colorida correndo o céu, ziguezagueando pros lado da serra. O pior é que pra confirmar a história de Seu Riba, a Neta tinha visto essa estrela também. E outras histórias da estrela começaram a brotar. Até que o Lili, vaqueiro da fazenda de Doutor Bruno disse ter sido queimado pela estrela que correu atrás dele. Foi quando começaram a chegar notícias do mercado: na cidade, as pessoas de outras localidades estavam vendo também uma luz estranha que corria atrás das pessoas e tinha queimado um homem nas Imburanas e sumido com outro perto dos Coités. Era o aparelho.

Bastião era homem de coragem. Não tinha medo de homem, não tinha medo de bicho. Caçava na lua cheia e já tinha matado onça com tiro de espingarda. Andava de madrugada e nunca tinha visto visagem. “Tenho medo dos vivos e não dos mortos”, dizia empolgado. “Alma, eu espanto com a oração que vovó me ensinou. Num tem quem possa mais do que Deus.”

Bastião olhou para o céu e viu um pequeno ponto luminoso que passava brilhando dentro do céu escuro. Era só uma estrelinha? Mas estrelas não se mexem assim... Mexem? Foi quando percebeu que a estrela aumentava o tamanho. Parecia que aumentava e diminuía, crescia e encolhia, pulsava ofegante. O homem coçou a barba preta que nascia em seu queixo quadrado e apertou os olhos, como que para enxergar melhor. Foi quando percebeu: a luz andava pelo céu em sua direção.

- Pai, parece que tá vindo é pra cá! – berrou o filho mais novo.

- Saí do meio do tempo, bando de inseto! Venham pra dentro de casa! – ordenou pras crianças – Vai que um satanás desses vê vocês e vai queimar vocês que nem fez com o vaqueiro.

Bastião olhou pra cima e a estrela tinha sumido.

Os meninos correram em direção a casa, mas quando entraram no alpendre, Raimundinho lembrou-se da bola e voltou correndo para pega-la. O menino abaixou-se para pega-la e viu de canto de olho uma figura cabeçuda na porteira de casa. Quando se levantou e pode olhar para ver melhor, percebeu uma figura vestida de branco com uma enorme cabeça que estava abrindo a porteira. Com o susto que levou, virou-se e correu para dentro de casa gritando.

Bastião percebendo o susto do menino começou a rir, pois reconheceu a sua mulher que chegava a casa com uma saca de tecidos na cabeça. Maria fechou a porteira e se dirigiu, em seu passo curto, pelo terreiro, ao alpendre.

Barão, agora, latia agoniado, no quintal da casa.

Foi quando o caboclo viu a noite clareando-se. O que era negro e denso transformou-se em luz. Todo o alpendre, o terreiro e os matos próximos foram preenchidos de uma claridade azulada que ele nunca tinha visto igual. Sentiu um calor sobrenatural e por sobre o telhado, Bastião percebeu a fonte da luz que aparecia pouco a pouco no céu. A estrela flutuava sobre sua casa, o aparelho parecia que ia cair em cima do telhado.

Com os olhos arregalados, o homem viu quando algumas telhas se espatifaram no chão. O filho mais novo começou a gritar e caiu no chão, pois o calor era demais para ele. A filha também desmaiara de susto. A pele dele parecia queimar sob o sol escaldante das duas da tarde. Sentiu a pele dos braços ficarem coradas, a testa encher-se de suor. Viu sua mulher no terreiro jogar a encomenda que trazia sobre a cabeça no chão e proteger a vista com as mãos.

Bastião não pensou muito, abriu a porta da sala e foi até a dispensa onde guardava suas espingardas, mas as duas socadeiras demorariam demais para ficarem prontas. Ele pegou então a velha espingarda Mauser 98, dada de presente pelo Alemão, antigo dono da fazenda vizinha, ao seu pai, pois a arma seria mais fácil de carregar e o tiro seria mais rápido. Engatilhou o ferrolho e correu para fora.

Quando o cabra pulou o alpendre para o terreiro, deu um grito de loucura. Sua mulher estava com o rosto arregalado, todo cheio da luz. Seus braços e pernas esticados como se estivessem presos, a pele queimada como a dele. Ela estava na ponta dos pés e sua boca aberta gritava, porém nenhum som era ouvido. Foi quando o sertanejo percebeu que a mulher desgrudava do chão. Parecia começar a levitar, ela levantou-se um metro do chão e continuava a subir.

Bastião deu um girou nos calcanhares e, rapidamente, apontou a espingarda para o foco de luz que vinha de cima da casa. Não sabia no que mirava, não via o que mirava, mas sabia que deveria atirar naquela direção da luz brilhante que o cegava. Quando puxou o gatilho, sua mente caiu em um acesso de loucura, pois pelo cano da espingarda não escutou o barulho de combustão da pólvora, mas um som, como de uma cachoeira, pois não foi o projétil de chumbo, calibre 8 mm, que foi disparado da boca do cano, mas um forte jato de água, a espingarda parecia uma mangueira jorrando água.

Um grito de loucura saiu da boca de Bastião.

A estrela que emitia a luz azulada e quente começou a ficar colorida de várias cores do espectro visível: passava de tons azulados para avermelhados, tons verdes e amarelos, violetas e alaranjados. Até que uma cor branca que ofuscava a vista, mesmo de quem não olhasse para ela ou estivesse de olhos fechados se expandiu pelo céu e sumiu instantaneamente.

Quando a luz sumiu, Mariazinha caiu no chão, torceram-se seus tornozelos e ela bateu a cabeça desmaiando instantaneamente. Bastião enlouquecido pelo que acabara de testemunhar caiu ofegante para trás e jogou a espingarda de lado. Desmaiando logo em seguida.

A boquinha da noite voltou a ser escura e com sombras densas de contornos espectrais. O lampião emitia uma leve luminescência que manchava de luz as sombras na parede da casa.

João Murillo
Enviado por João Murillo em 12/07/2020
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