Sexta-feira, 00:22
Vi, como num filme, quando ainda no colégio eu conheci aquele homem na biblioteca que me observava através das estantes. Vi quando ele se aproximou de mim tendo nas mãos o livro que eu procurava, quando ele me chamou pelo nome embora eu não o conhecesse, e quando ele me disse que não revelaria seu nome. Vi as horas se escoando dentro da biblioteca enquanto ele me falava sobre o meu destino e sobre a minha história. Vi quando ele me chamou para participar do seu clã e vi quando ele disse que sempre vivera muito bem e que não precisava de nenhum poder especial para continuar meu rumo.
E vi quando, com um sorriso nos lábios ele disse que um dia eu mudaria de idéia, e que ele estaria lá quando isso acontecesse. E então ele se foi tão repentinamente quanto veio.
Depois disso minha vida passou por uma série de graves turbulências que foram aos poucos se acalmando. Entrei para a faculdade, conheci Lívia, nós ficamos juntos por cinco anos até que ela morreu daquela forma estúpida.
E no dia do enterro, quando até as nuvens choravam a morte dela, eu reconheci, além das lágrimas e da chuva, aquele mesmo olhar que vi entre as estantes há tantos anos atrás. E quando todos se afastaram e eu chorava sobre a lápide, ele se aproximou e disse:
- Você pode tê-la de volta. Basta vir comigo. Basta me pedir.
E cego de dor eu fui andando com ele por caminhos que nem me lembro até uma pedreira abandonada distante do centro. Devo ter andado muito, pois já estava escuro quando cheguei lá.
Chegaram também mais cinco homens vestido de preto e começaram uma reza silenciosa, mas que eu podia sentir em cada centímetro da minha pele. Então o chefe – aquele que falava comigo – me fez repetir algumas palavras para em seguida fazer um corte em meu pulso com seu punhal e recolher o sangue em uma vasilha.
E foi aí que eu acordei. Percebi o quanto tudo aquilo era insano e me pus a correr. O chefe então gritou:
- Peguem aquele desgraçado! Ele é nosso!
Corri pela escuridão ouvindo passos atrás de mim até chegar a uma rodovia. Estava tão desesperado que nem tive tempo de perceber os faróis de um carro à minha esquerda. Minha próxima lembrança foi de um quarto de UTI três semanas após o acidente. A primeira coisa que fiz após acordar e saber a data foi olhar meus pulsos: intactos! Nem mesmo uma cicatriz. Então me convenci de que era tudo imaginação ou delírio do coma.
Mas agora eu sabia que não era. Aqueles cinco estavam atrás de mim novamente e eu sentia vontade de me entregar. Só não o fazia porque Lívia estava ao meu lado. E ela disse:
- Quando eu disser já, vire a esquerda para atravessar a rua... já!
Atravessei pela faixa de pedestres e bem na hora que alcancei o outro lado o sinal abriu detendo os cinco do outro lado. Lívia falou:
- Não perca tempo! Continue seguindo a avenida!
E assim o fiz. Agora, apesar de ainda estar sendo perseguido eu sabia que tinha uma vantagem maior sobre meus perseguidores. Ela falou então:
- Fica calmo, meu amor, já está quase acabando. Ta vendo este prédio à sua esquerda? É um estacionamento vertical. Eu quero que você entre por este portão largo que você está vendo.
Me preocupei em como entrar sem ser visto, mas minha preocupação se foi quando vi o porteiro cochilando. Passei por cima da cancela e subi a rampa procurando não fazer ruído.
- Siga em frente até o elevador. Vá para o último andar – disse ela.
Aquela altura do campeonato eu já sentia uma dor aguda de lado e uma sede insuportável. Por sorte o elevador já estava de portas abertas me esperando. Enquanto o elevador subia eu tentava descansar e refletir sobre o que fazer. Quando estava no meio do caminho vi apavorado que uma luz havia se acendido sinalizando que alguém chamava o elevador lá em baixo. Desesperado eu murmurei:
- Deus, será que isso nunca vai ter fim?
- Já está acabando, meu amor – disse Lívia.
Quando o elevador chegou ao último andar eu saí, vendo horrorizado as portas fecharem-se e o elevador descer. Lívia falou:
- Siga à direita e em seguida à esquerda. Você verá uma porta de madeira. Ela está aberta e leva para o topo do prédio por uma escada.
Tudo estava exatamente como ela disse. Mas e agora, para onde ir? Lívia respondeu:
- Caminhe para a direita. O que você vê?
- Nada, tem uma queda de sabe lá Deus quantos metros!
- Eu quero que você olhe para frente, e não para baixo. O que você vê?
- O topo de outro prédio há um metro e pouco de distância.
- É para lá que você vai.
- Você está louca? Você quer que eu pule para o outro prédio?
- Sim eu quero! Volte, tome impulso e salte.
- Eu não consigo!
- Você tem que conseguir porque em um minuto eles estarão aqui. Salte!
Fiz o que ela falou: voltei, corri e, de olhos fechados, saltei no ar caindo um tanto desajeitadamente no prédio ao lado. Nesse momento eles irromperam pela portinha que dava para o topo do estacionamento e me viram. Ela falou então:
- Você ainda não está seguro. Continue correndo.
Corri então sobre o alto do prédio, até me deparar com outro pequeno abismo, que saltei conforme Lívia sugeria. Me virei a tempo de ver os cinco saltando do estacionamento para o prédio em que eu estivera.
Fiquei estupefato com o que vi: eles não precisaram pegar impulso para saltar facilmente o vão entre os dois prédios de uma amplitude totalmente absurda. Enquanto saltavam abriam os braços com mãos em forma de garras, fazendo com que o vento sacudisse suas vestes transformando-os em corvos sinistros. O vento, porém, não era capaz nem por um momento de retirar-lhes os capuzes, que continuavam emoldurando a escuridão que existia onde deveria haver um rosto.
- Continue – falou Lívia.
E corri, saltando quando ela falava até chegar no alto de um prédio realmente grande, com um heliporto no alto. Minha corrida estancou quando me deparei com uma queda vertiginosa para uma larga avenida. Olhei para trás e eles se aproximavam. Estava tudo acabado.
Mas, ao olhar para frente, vi Lívia flutuando no vazio. Um vento suave que só existia para ela fazia oscilar de leve seus cabelos e seu vestido de deusa. Uma luz evanescente emanava de sua figura que sorria docemente e me estendia a mão dizendo:
- Vem!
Finalmente eu estaria com ela, finalmente poderia tocar seu rosto e beijar seus lábios... Finalmente! Então tudo ficou em câmera lenta enquanto eu saltava em sua direção.
Porém num lapso de segundo percebi que havia algo de errado com seu olhar: seus olhos antes castanhos agora eram negros, negros como o espaço existente entre as estrelas; vazio. Vi também seu sorriso doce se transformar num sorriso de triunfo e sua mão estendida cair junto ao corpo enquanto uma sarcástica gargalhada começava a sair de sua boca.
E caí naquela mesma câmera lenta ouvindo sua fria e congelante gargalhada aumentando em meus ouvidos, enquanto o chão ficava cada vez mais próximo. Uma voz interna me falou: “Ninguém foge do destino”.
Quando o chão estava bem próximo eu acordei tremendo com aquela frase e aquela gargalhada ainda em meus ouvidos. Foi então que apanhei papel e caneta para anotar cada detalhe antes que eles se desmanchassem no tempo.
Agora me sinto estranho... Como se estivesse sendo observado. Mas estou com muito medo de olhar para a janela.
Ninguém foge do destino...
Não há jeito de mudar. E Lívia me olha da janela para, num piscar de olhos desaparecer e reaparacer do meu lado dizendo em meu ouvido:
- Corre!