O POTE DE OURO

Essa história ocorreu há muito tempo, e alguns podem interpretá-la como crendices de um povo acostumado a ver demônios onde apenas sombras existem. No entanto, posso lhes assegurar que cada vírgula desse episódio realmente fora um fato ocorrido nesse mundo temente a Deus.

Mundo esse que esconde sob as ranhuras da terra todo tipo de sortilégios que, vez ou outra, escapolem para esse plano trazendo consigo nada além de um propósito, uma intenção maligna que cobiça a felicidade dos viventes.

Naquele episódio fatídico, o trio caminhava aflito pelos tortuosos descaminhos de uma mata que deveria ser usual, um ambiente similar a tantos outros do interior do país, mas que, no entanto, acabara por se revelar como um enigma para eles que julgavam a si mesmos como experientes e talhados em percursos que exigiam tanto um forte preparo físico quanto mental. Eles ainda não sabiam, mas o que se escondia naquela mata provinha de um desses rincões distantes, lugares mórbidos que deveriam ficar para sempre reclusos em seu próprio espaço e tempo.

Tony era o mais experiente do grupo e seguia na vanguarda, sendo seguido de perto por sua noiva, Amanda. Seu irmão, Jaime, o novato do grupo, fechava a fila indiana que percorrera espaços apertados por entre os troncos altos e espessos de toda sorte de árvores. O objetivo original era chegar até um ponto tradicional de camping, mas por algum motivo que desconheciam, a trilha que deveria ser infinitamente mais simples do que outras nas quais se embrenharam anteriormente, havia se tornado um desafio para o qual eles não estavam preparados. E, após muita perda de tempo e decisões equivocadas, perceberam que estavam irremediavelmente perdidos, nem mesmo a bússola, fiel instrumento de jornada, se mostrava util.

O sol já havia encontrado sua morada há algum tempo, mas por determinação de Tony, decidiram continuar caminhando, ainda que os recantos da mata só pudessem ser perscrutados, naquele momento, pelo olhar iluminado das lanternas. Nesse tipo de situação, para olhos treinados, as estrelas poderiam servir de alento para quem ansiava por orientação, porém numa noite em que os diabretes correm sem rédeas, até mesmo os pontos cintilantes do firmamento preferiam o refúgio em seu manto escuro. Do céu, apenas uma nesga de iluminação fornecida por aquela que não tomava partido dos viventes e que frequentemente, aliava-se a criaturas nocivas para tudo o que há de bom.

- Tony, espere, já não aguento dar mais nem um passo. Precisamos parar para respirar.

- Vamos, Jaime, precisamos, ao menos, encontrar um descampado ou coisa do tipo. Não me sinto confortável em montarmos acampamento num local tão fechado como esse.

- Ela está certa, Jaime. Sei que estamos andando há horas sem conseguir chegar a lugar algum, mas ficar aqui não é apropriado, pois mesmo com uma fogueira, ainda ficaríamos a mercê de predadores noturnos. Não quero ser acossado por uma onça ou um porco do mato territorialista e...

- Shhh... escutem!

- O que foi, Amanda? – Disse Tony, ainda sem entender.

- Esse barulho. Não ouvem? Parece que é água corrente.

A garota parecia ter certeza em sua afirmação.

- Sim, você tem razão. Acho que é um riacho.

Jaime acompanhava a conclusão da cunhada, mas, dada a sua inexperiência quando comparada a do casal, ainda não sabia se a descoberta era algo a ser comemorado ou não, até que a ordem do irmão desfez suas dúvidas.

- Vamos, pessoal. Vamos seguir na direção da origem do ruído, acredito que o rio não deva estar longe. Seguir o leito nos favorece, uma vez que as chances de encontrarmos algum vilarejo ao longo do curso são grandes.

Os trilheiros seguiram pelo caminho que julgavam ser o mais indicado para reverter a situação delicada na qual estavam mergulhados. Estranhamente, o luar parecia indicar um itinerário à frente, como um farol a lhes guiar o percurso a ser tomado. Após cerca de quinze minutos de caminhada, chegaram até um cenário diferente do que haviam presenciado até então. O riacho surgira de modo repentino, com uma curva abrupta e sinuosa, mas o mais intrigante era o que estava sobre ele: uma ponte de madeira. A construção exibia um desenho atípico e desproporcional, pois apesar da obra ser extremamente alta, parecia ser, ao mesmo tempo, estreita. Seu formato de arco e as setas entalhadas como decoração insinuavam o aspecto de uma mandíbula. Era algo perturbador para se encontrar no meio do nada.

Entretanto, o que se mostrava para além da estrutura de madeira lhes trazia um pouco de alento. Um campo aberto oferecia-se pelo vão até onde seus olhos enxergavam, porém para chegar até o local seria necessário passar por baixo da ponte, atravessando um ínfimo caminho de terra que ladeava o rio. O curso d’água corria veloz pelo mesmo local, chocando-se com violência nas pedras afiadas da margem, mas logo depois da passagem circundava o descampado de forma plácida.

- Não sei – disse Tony – me parece muito perigoso seguirmos adiante. Aquela passagem é muito estreita. A água esta batendo forte ali, basta qualquer desequilíbrio para cairmos nas pedras e sermos levados pelo riacho.

- Mas meu amor – interpelou Amanda – a essa altura não temos opções. Estamos cansados e perdidos. Pelo menos naquele descampado poderemos montar as barracas para passarmos a noite e continuarmos com segurança ao amanhecer.

- Eu não seu, Amanda...

- Deixe comigo, Tony – interferiu Jaime – sou mais novo, leve e ágil.

A gente finca uma corda nessa extremidade, eu atravesso a passagem e fixo a outra ponta no descampado. Assim vocês podem atravessar com mais segurança.

- É perigoso, Jaime, não vou deixar...

- Tony, a ideia é boa, alguém precisa ir, se ele não for, eu mesma irei.

- Está decidido. Não podemos perder mais tempo.

- Tome, Jaime. Use isso para dar sorte.

Amanda colocou um cordão dourado com um pingente de mesmo tom no pescoço do cunhado. A convicção do irmão e a decisão da noiva calaram quaisquer argumentos que o líder poderia ter. Assim, Jaime tomou posse dos equipamentos necessários e se lançou na difícil empreitada. E, apesar das expectativas contrárias, o rapaz atravessou com surpreendente facilidade a estreita faixa de terra, fixando o gancho com a corda. Logo, os três estavam no local desejado, mas o que deveria ser uma conquista acabou por se mostrar como uma mescla de decepção, frustração e medo.

- Mas o que é isso?!? – Gritaram em uníssono com a surpresa, pois até mesmo Jaime, o primeiro a chegar, admirou-se com o cenário que se apresentava, uma vez que instantes antes estava diferente.

Não havia descampado algum, na verdade, apenas alguns metros de terra e pedra os cercavam naquele momento. À frente, exibia-se de maneira inacreditável uma queda d’água como sequência do curso do riacho.

Desiludidos, chegaram a conclusão de que a única atitude a ser tomada seria o regresso pelo mesmo caminho, no entanto, perceberam algo diferente, uma coisa que não estava lá quando passaram, ou pelo menos assim achavam.

- O que é aquilo? – Questionou Jaime.

- Não faço a menor ideia – replicou Tony.

O que estava diante deles era um par de pontos vermelhos com uma coloração intensa e brilhante. O fenômeno radiava como se fosse queimar o ar ao seu redor, mas conforme o portador do brilho começou a revelar seus contornos, o faiscar evanesceu.

A criatura sob a ponte não ostentava mais do que um metro e vinte de altura, mas era desproporcionalmente horrenda às suas dimensões. O brilho avermelhado provinha de suas órbitas, círculos que exalavam um ódio incompatível com esse plano. Da boca, um sorriso de setas curtas e afiadas escapava, como um deboche ao horror que os olhos mortais testemunhavam. Pelos espesso e alaranjados escapavam dos diminutos braços e pernas e acumulavam-se em profusão sob o queixo arredondado. Retalhos de um tecido pútrido e esverdeado ornavam seu tronco.

- Eu quero o meu ouro! – Bradou o ser sob um timbre rasgado e gutural.

- Do que essa criatura está falando?

Questionou, em retórica, Tony, enquanto Amanda, visivelmente estarrecida, não conseguia emitir uma só palavra.

- Eu não sei, mas irei acabar com isso agora! – Ao mesmo tempo em que proferiu tais palavras, Jaime seguiu apressado com um facão na mão na direção da criatura, vencendo os limites do caminho estreito como se fosse a mais segura das vias.

- Jaime! – O grito do irmão de pouco adiantou.

O ser, fazendo uso de um salto com destreza, postou-se diante do rapaz, antecipando-se a qualquer ação por conta da surpresa. De modo tão rápido quanto o salto que executara, o pequeno demônio desarmou a ameaça e posicionou as duas mãos a centímetros da cabeça de um submisso Jaime. Como se espremesse o ar, o ser agia sobre o corpo do rapaz sem nem ao menos tocá-lo.

A cabeça de Jaime era espremida como por uma morsa. Filetes de sangue escapavam de cada poro. Os globos oculares saltaram do rosto desfigurado. Tony gritava em desespero pelo irmão, enquanto Amanda tentava segurá-lo no intuito de evitar que ele fosse até a criatura e encontrasse o mesmo fim.

Não tardou para que um estalido fosse ouvido. O demônio segurou a cabeça de Jaime e inspirou forte o ar ao redor da mesma, largando o corpo sem vida a seguir.

- Eu vou te matar! Eu vou te matar, maldito!

- Não, não vai, rapaz. Você vai trazer o meu ouro. Vai fazer do jeito que eu te ordeno, caso contrário nenhum dos dois sairá vivo daqui.

- Tony. Tony. Escute. Não temos como derrotar esse...esse demônio. Vamos ver o que exatamente ele quer que façamos, só assim acho que poderemos sair com vida daqui.

As palavras de Amanda buscavam sentido na mente do noivo, mas o desespero era um elemento avassalador em sua alma. Com paciência, a garota segurou suas mãos e olhou diretamente em seus olhos.

- Por mim. Vamos tentar sair dessa.

Tony, aos poucos, foi recobrando o domínio de seu raciocínio.

- O que você quer que façamos?

- O que eu quero que “você” faça. A mulher vai ficar aqui comigo. Será uma garantia até que você volte com o meu ouro.

- Ora seu...

- Tony, Tony, está tudo bem. Vá atrás desse ouro e venha me buscar. Eu confio em você.

Resignado, Tony ouviu da criatura que ela não poderia sair do seu confinamento sob a ponte e que ao passarem por seus domínios, eles ficaram presos em sua armadilha. Agora o rapaz precisaria sair em busca do seu pote de ouro que estava em algum ponto da cidade, mas que a moeda que ele, Tony, levaria consigo o guiaria até o local exato. Em seguida, bastava ele trazer o tesouro de volta para a ponte para poder seguir livre com Amanda.

Perplexo, Tony percebeu que o que o ser chamava de moeda era, na verdade, uma peça de ouro puro do tamanho de um prato e que pesava, pelo menos, uns quinze quilos.

De posse da peça de ouro, o rapaz tomou o rumo pela mata e, conforme o demônio lhe dissera, com a chegada do amanhecer, os caminhos de volta ficaram tão claros como as águas cristalinas de uma nascente.

Não tardou para que ele encontrasse o local de onde partiram. E, de lá, seguiu com a caminhonete até a cidade. Enquanto guiava, vislumbres de imagens assolaram a sua mente. Eram sucessões de fragmentos como um quebra-cabeça em flashes intermitentes. No início parecia não fazer muito sentido, mas, conforme o tempo passava, o cenário foi ficando mais claro até que no fim da viagem ele sabia exatamente para onde ir.

Entretanto, outros pensamentos também invadiam a mente do rapaz durante o mesmo trajeto. Eram ideias que começaram tímidas, mas que logo ganharam corpo. Ora, a criatura tivera a vantagem porque eles estava indefesos e fáceis de serem subjugados. Talvez, se ele voltasse para lá com reforço e preparado, conseguisse salvar a noiva e ainda por cima se vingar do maldito que assassinou seu amado irmão. E, como bônus, ficaria com uma fortuna em ouro, um prêmio que seria muito bem recebido e que ajudaria no casamento e numa nova vida.

Assim, antes de seguir em busca do ouro, Tony convidou para a empreitada dois amigos que ocupavam o ofício de seguranças em estabelecimentos locais. Os homens possuíam armas e ambicionavam o retorno financeiro que não teriam em anos de trabalho. Tony havia partido a moeda ao meio e dado uma parte para cada um, com promessa de mais. Logo, o grupo partiu na jornada de redenção e vingança.

A moeda, mesmo dividida, parecia realmente guiar o trajeto até um ponto distante da cidade. Como se um imã os chamassem, Tony e os demais foram levados até um beco formado pelo encontro de dois edifícios abandonados. Era um local sujo e deprimente. O chamado da moeda indicava que deveriam seguir por dentro de um bueiro localizado nos fundos da viela.

Um dos homens levantou a tampa e o grupo desceu pela entrada. Como era de se esperar, o local era um ambiente ainda pior do que a superfície. Uma correnteza de esgoto escorria por seus tornozelos. Ratos e baratas debandavam pelas frestas a cada facho de luz atirado a esmo.

As peças de ouro indicavam que eles deveriam continuar a seguir em frente. Desse modo, permaneceram por horas, atravessando curvas e retas, num emaranhado de paredes bolorentas e podres até que algo diferente aconteceu.

No início acharam que era o som da podridão do esgoto sendo despejada em algum ralo, mas logo perceberam que o som era mais forte e claro, como o correr livre de um...

- Um rio! – Gritou surpreso um dos seguranças.

- Não – interrompeu Tony – esse é “o” rio.

Estarrecido e sem saber como, o rapaz percebeu que estava de volta ao maldito refúgio sob a ponte. Na reentrância esculpida no rochedo, a toca da criatura, ele percebeu um imenso barril repleto das mesmas moedas de ouro, um tesouro que sempre estivera sob o domínio do demônio.

- Apareça de onde estiver, maldito – ordenou o rapaz, enquanto os amigos erguiam suas armas apontando para a escuridão. Logo duas faíscas rubras surgiram, prenúncio da chegada da criatura.

- Eu não te disse, Amanda? Não te disse que ele a trocaria pelo ouro? Como todos fazem. Assim é e assim sempre será!

Amanda surgia logo atrás do diminuto ser.

- Como você pôde, Tony? Como? Era só chegar até o pote de ouro sem intenção de tomá-lo para si que estaríamos livres.

- Não é isso, Amanda, você não entendeu. Atirem nele, vamos, atirem!

Os homens acionaram suas armas, mas nenhum projétil atingiu a criatura que não temia metal algum, fosse esse ouro, prata... ou chumbo.

- Você lhes ofereceu ouro, rapaz? Sim, vejo que sim – disse o ser ao perceber a peça de ouro na cintura de cada segurança.

O demônio, de uso do mesmo artifício já presenciado pelo casal, manipulou o ar e esmagou os invasores com uma pressão invisível. Então, da mesma forma que fizera com Jaime, aspirou o ar que rodeava o corpo inerte dos homens. Em seguida, falou:

- Vamos, Amanda, você já teve a prova que queria em seu momento de dúvida. Vamos, ofereça-o a mim conforme prometido em nosso primeiro encontro. Você já me ofereceu o outro quando lhe deu o seu cordão de ouro e o mandou até mim. Você os trouxe até mim. Vamos, ofereça-o e receba seu pagamento.

- Amanda, do que ele está falando? – Tony exibia um olhar suplicante.

- Vamos, Amanda, ele tem o seu ouro? Você lhe deu ouro? – Insistia o ser.

- Sim, eu lhe dei sim. Tony carrega no anelar direito a aliança de noivado que trocamos.

- Ótimo! – Sentenciou o ser, enquanto gargalhava.

Tony não teve tempo de reagir, apenas sentiu o ouro da aliança arder como brasa em seu dedo. Ele gritou, mas logo o som de seus gritos foi suprimido enquanto sua cabeça era esmagada por uma força improvável. Em segundos, que lhe pareceram uma eternidade, sua vida foi apagada como o pavio de uma vela ao soprar de uma brisa. Mas ele não teria seu descanso na eternidade porque a criatura, ávida por mais um tesouro, inspirou cada fragmento de sua alma, assim como fazia com todas as suas vítimas.

- A cada alma que sorvo, uma nova moeda é colocada no pote de ouro. Tome, fique com as que correspondem às almas que você me trouxe. Você está livre para ir, assim como obtenho uma fração de liberdade para buscar no mundo mais moedas para o meu recipiente, até que a maldição me traga de volta para a prisão sob a ponte.

De posse de sua paga, Amanda arrastou os quase sessenta quilos de ouro pelos caminhos do esgoto, rumo a uma nova vida.

Como eu disse no início, muitos devem acreditar que essa história não passa de crendice. Mas posso lhes assegurar que tudo aconteceu exatamente assim. Digo isso porque ouvi o relato da boca da própria Amanda, minha avó, que a contou para o meu pai em seu leito de morte.

Meu pai não acreditou na origem da fortuna da velha, mas eu sim, e desde criança planejo seguir os mesmos passos. A mulher no outro cômodo, a qual carrega o anel de noivado que lhe ofereci há pouco mais de um mês, não tem a menor ideia disso. Nem ela, nem toda a sua turma de bandeirantes, onde cada aluna carrega um providencial broche de ouro, presente que lhes dei, mérito por bravura, desculpe, mas não posso conter as risadas. Amanhã bem cedo partiremos para um acampamento numa mata bastante conhecida.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 07/07/2020
Reeditado em 07/07/2020
Código do texto: T6999127
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.