Relato de um taxista da madrugada

Esse é meu relato, já quero deixar claro que nunca fui de acreditar em assombração ou coisa do tipo…

Sou taxista em uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, uma cidade de porte médio, uns 30 mil habitantes, e com uma grande área rural, trabalho aqui há uns 15 anos, sempre trabalhei à noite, pois gosto do trânsito calmo e do clima ameno das noites de verão e no inverno é frio de renguear cusco, mas nada que um poncho e um mate bem quente não resolva.

Nunca aconteceu nada de diferente comigo, além do normal a todo taxista, como tentativas de assalto, motoristas mancos ou bêbados, passageiros abusados querendo enrolar e não pagar a corrida, mas, até hoje, tudo se resolveu de formar tranquila…

Não peço que acreditem, mas preciso contar a alguém, mesmo que seja de forma virtual, pois foi algo tão incrível, que quando paro para pensar nem mesmo eu acredito.

Bem..vamos lá…

Era uma noite normal, estava no ponto sozinho, além de mim apenas outro colega trabalhava na madrugada, e neste dia ele estava de folga, eu estava pestanejando sentando no carro, já era mais de 3 horas, cerração baixa, uma noite bem agradável, céu limpo e aquele clima fresquinho de início de madrugada.

Me acordei em um susto ao ouvir o telefone tocar, me levantei e fui atendê-lo, era da delegacia de polícia, precisavam de uma corrida para um bairro mais distante do centro, um distrito como chamamos por essa região, era para levar uma moça que havia sido assaltada para casa.

Respondi que não teria problema, em 05 minutos estaria lá, afinal o ponto do táxi era a uns 5Km da DP, antes de desligar o policial ainda me disse:

- Só te um porém, como te falei, ela foi vítima de um assalto, levaram tudo dela, só vão te pagar quando chegarem no sítio da família dela, tudo bem para o senhor?

Respondi prontamente, - Claro, sem problema algum!

Afinal, estava pegando a passageira na DP e não na rua, por aqui, durante a noite, sempre cobramos a corrida de forma adiantada, para não se incomodar com algum malandro, como já havia dito antes.

E lá fui eu, combinei antes de desligar que ela esperaria na porta da DP, pois só tinha um policial no posto e estava atendendo a outras ocorrências e como a moça estava um pouco abalada, chorando de nervosa, ele conseguiu convencê-la que seria melhor já esperar lá fora, pois o táxi estava chegando e além disso tinha um ou dois repórteres lá dentro e ele queria que ela ficasse longe deles...achei meio grosso e insensível pela parte do policial, mas, cada um na sua, pensei, deve ter os motivos dele…também pensei, repórteres??! Será que era para falar sobre o assalto que ela sofrera ou deu algo mais grave na nossa calma cidade interiorana...mas como ainda estava com a cabeça meio anuviada do sono, ao entrar no carro, já havia esquecido esses detalhes…

Como combinado cheguei à DP e ela estava lá, mas para minha surpresa, não era uma, mas duas moças, uma de braços cruzados chorando e a outra abraçada nessa com o cabelo negro sobre o rosto, pensei, tudo bem, quem leva uma leva duas...parei o carro e desci, a moça de braços cruzados veio na minha direção, a outra continuava abraçada, perguntei se elas estavam bem, só uma respondeu: - na medida do possível, sim!, e agradeceu por eu ter perguntado.

Abri a porta traseira do carro e fui para o outro lado para abrir a porta para a outra moça (a dos cabelos sobre o rosto), mas quando ia abrir, vi que as duas já tinham entrado. Bem, pensei eu, importante é que entraram…

Já sabia o distrito e a rua, mas não sabia em qual dos sítios era, então, enquanto ajustava o banco e o retrovisor, perguntei qual era o endereço, olhava para as moças pelo espelho, a que chorava me respondeu baixinho, mas consegui entender, a outra continuava de cabeça baixa e com o braço sobre a amiga, imaginei que ela assim consolava a chorona, porém, não falava nada e também não a ouvia chorar...ela apenas estava ali...e ainda não conseguia ver seu rosto, pois agora ela escorava a cabeça no ombro da moça assaltada…

Durante a viagem não liguei o rádio e também não tentei puxar assunto com as moças, pois sempre fui discreto e respeitoso com os passageiros, sabendo o meu lugar de motorista, pois na madrugada ou as pessoas querem silêncio ou falam de mais, eu prefiro a primeira opção.

Mas notei que as moças não trocaram nenhuma palavra, tirando o som baixinho das lamúrias de uma das moças, o qual logo abstraí, era quase como se estivesse sozinho no carro, em algumas quadras eu já nem olhava mais pelo retrovisor, apenas segui com atenção na estrada de chão batido esburacada.

Mesmo sendo no interior, e indo devagar nas estradas escuras e sem iluminação, não foi demorado chegar ao sítio indicado pela moça.

Os familiares já esperavam com a porteira aberta, mal cheguei e nem havia desligado o carro ainda, os parentes já estavam nos cercando e abrindo a porta, nem vi as moças descerem, um senhor veio rapidamente a minha porta e me deu uma nota de 100 reais, nem deu tempo de dizer a ele que tinha que devolver o troco, pois ele me disse: - obrigado, moço, fica com o troco, serei eternamente grato por ter trazido minha filha sã e salva até em casa...não temos carro, o senhor foi um anjo na nossa vida, obrigado, repetiu ele.

Eu não entendi bem, porque de tanto agradecimento, só fiz meu serviço, mas tudo bem, agradeci e segui meu rumo, se bem que acho que ele nem ouviu meu agradecimento, pois eu nem tinha acabado de agradecer ele já estava fechando a porta da casa..

Resolvi ir para minha casa, pois já havia garantido o ganho do dia, e ao mesmo tempo me sentia meio estranho, como se um clima pesado tivesse ficado dentro do carro, na realidade, quando elas entraram no carro já senti aquele clima, mas não me importei, achei que era pelo choro, mas havia permanecido no carro mesmo depois da saída delas…

No outro dia acordei cedo com a minha esposa, para conversarmos um pouco antes de ela ir trabalhar, depois voltava a dormir, mas dessa vez foi diferente, quando cheguei a cozinha ela estava parada em frente a TV, assistindo atentamente ao telejornal, eu perguntei o que houve e ela apenas fez o sinal de silêncio levando o dedo indicador aos lábios e apontou para a TV, para eu prestar a atenção

Na TV aparecia a foto de uma jovem de longos cabelos negros que havia sido assassinada em um assalto na noite passada em nossa cidade, entendi a razão de minha esposa estar atenta a olhar para a TV, não era todo dia que acontecia algo assim na nossa cidade, então prestei atenção também, e vi quando a apresentadora disse: Infelizmente nessa trágica notícia, onde uma jovem perdeu a vida, assassinada ao defender a vida da amiga em um assalto, as duas moças, saindo de um bar foram abordadas, e sob a ameaça de armas, ela levou um tiro no rosto ao se pôr entre o assaltante e a amiga, que, graças a ela, nada sofreu...e neste instante surgiu na TV uma foto das duas amigas, tirada minutos antes da tragédia dentro da festa em que estavam...neste momento, eu fui sentando, sentindo uma tontura, minhas pernas tremeram...tudo escureceu…

Voltei a mim, logo após com minha esposa gritando comigo, dizendo: - o que houve? O que houve? Você está bem? …

Eu balancei a cabeça afirmativamente, balbuciei, sim, estou bem, foi só uma tontura, talvez por ter dormido pouco..e ela me olhou desconfiada e servindo a xícara de café, disse: - Deve ser mesmo, meu amor, ahh, viu que perigo está trabalhar de noite, por favor, pensa sobre isso..

Ela saiu e eu pensei, pensei, penso nisso até hoje...penso diariamente naquela foto. Naquela foto estavam elas, a moça que levei para casa e a assassinada, que mesmo eu não vendo o rosto, reconheci pela roupa e pelos longos cabelos negros..agora entendo o porquê de tanto alarde da família quando cheguei no sítio, entendo porque uma só chorava, entendo porque uma não falava e entendo porque ela continuava abraçando a amiga, ela ainda a protegia…

Logo após minha esposa sair, levei meu táxi ao padre e pedi para ela o benzer, rezei pela moça.

Fui ao velório da assassinada, não sentia mais nada de negativo no meu carro, vi a moça que sobreviveu no enterro, ela continuava chorando...mas a amiga não estava mais ao lado dela...acho que a missão dela havia acabado….

Nilvio Alexandre Fernandes Braga. 06/2020

Nilvio Alexandre Fernandes Braga
Enviado por Nilvio Alexandre Fernandes Braga em 06/07/2020
Reeditado em 18/07/2020
Código do texto: T6998168
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.