MEU PIOR INIMIGO



Todos nós temos um medo bobo, não é? Aquele medo irracional que nos consome quando somos expostos a ele, mas que para as outras pessoas é a maior besteira do mundo. Eu estava pensando sobre isso no chuveiro. O meu é de, ao fechar os olhos durante o banho, ao lavar o cabelo, surgir alguma criatura monstruosa ou demoníaca e me pegar nesse instante.

Fechei os olhos por alguns segundos. Chegou o momento. É só tirar o shampoo do cabelo rapidinho e logo estará tudo bem. Não há nada a temer.

De repente, ouvi um trovão. Algo estourou lá fora. A água, antes morninha, agora ficou gelada. Dei um grito com o susto. Abri os olhos apenas para o shampoo cair neles. Droga! O que era para ser poucos segundos de escuridão agora são minutos que mais parecem uma eternidade.

Tentei manter a calma, mas meus olhos ardiam muito! Peguei a toalha e comecei a me enxugar, pois já tinha acabado o banho. Fui procurar meu celular para ter ao menos um pouco de luz na casa.

Após sair desengonçadamente do box do banheiro, saí tateando o breu. Meu Deus do céu, que escuridão é essa!? Tinha posto o meu celular para recarregar na cama. Será que ele teria pego carga o suficiente?

Ao sair do banheiro, ouvi o vento uivar na janela do meu quarto. Um vento frio balançou a cortina. Não me lembro de ter deixado a janela aberta. Eu moro em um sobrado situado numa área com muitos terrenos baldios, próximo ao cemitério da cidade. Foi o aluguel mais barato que pude encontrar. Assim, colocar a cabeça para fora para ver algum foco de luz não resolveu muita coisa. O céu estava escuro, uma chuva que engrossava cada vez mais caia lá fora. Era melhor fechar logo isso.

Tateando a cama e o gaveteiro, encontrei o meu celular. Mal o peguei e ele saiu da tomada. Droga, não o enfiei na tomada direito! Não deve ter recarregado nada. Dito e feito, tentei ligá-lo, mas ele não deu nenhum sinal de vida.

Sentei na cama e suspirei. Até me deitei, só para me levantar num susto. Ouvi um barulho muito estranho vindo lá de baixo. Uma mistura de choro de criança com um murmúrio. Senhor do céu, será que uma alma penada entrou na minha casa!?

Sentei-me novamente. Não sabia se me cobria com o lençol e esperava aquilo tudo passar ou ia ver o que estava acontecendo. Eu não podia ficar simplesmente na cama. Vai que o Capitoro decide me visitar de novo. Teve uma vez que eu fui dormir e tive a nítida impressão de um ser com chifres estar sentado em cima do meu tórax, o que me deixou com uma terrível dificuldade de respirar e totalmente imóvel. Só depois de muita reza brava eu consegui me livrar daquela situação.

Meus amigos disseram que aquele episódio tinha sido apenas uma “paralisia do sono”, que não era nada demais. Se Deus permitir, não quero ter aquilo nunca mais na minha vida! Lá vou eu começar a desenvolver uma paranoia diferente: medo de dormir. Se não posso ficar na cama, vou ao menos ver se consigo pegar uma vela ou um fósforo lá em baixo.

Nesse meio tempo, a minha visão já começou a se acostumar minimamente com a escuridão. Ao menos estou conseguindo ver os contornos dos objetos e a distinguir a porta da parede.

Criei coragem e segui o corredor para descer as escadas. Calma, um passo por vez. É só seguir segurando firme no corrimão. Primeiro passo, segundo.... Ouvi um barulho de algo quebrando lá em baixo. Tem alguma coisa na minha casa, ou alguém. Será? Não sei o que é pior, um ladrão ou uma assombração.

O vento trouxe o cheiro de algo podre. Algo fedendo a enxofre. Mais uma vez aquele barulho que misturava de choro de criança com um murmúrio. Parei e me benzi. Rezei um Pai Nosso às pressas. Coloquei a minha cabeça na curva da escada, para ver se conseguia enxergar algo: um vulto cruzou a sala numa velocidade estonteante. Com certeza aquilo não era humano! Esse cheiro podre, as coisas quebrando, esse som, seria uma assombração, um poltergeist?

Uma amiga minha, que é espírita, me falou uma vez sobre encostos e obsessores. Ela me disse que eram pessoas que nós prejudicamos numa encarnação passada. Seria então algum inimigo meu? Se for, ele deve estar com muita raiva de mim. Posso ouvir as panelas caindo na cozinha. Acho que ele derrubou mais alguma coisa na sala. Talvez tenha sido o porta-retrato: uma as poucas lembranças que tenho da minha família.

Eu ainda estou criando coragem para descer a metade final da escada. Volta e meia sinto aquele fedor no ar. Minhas pernas simplesmente não me obedecem. Estou suando frio, tanto que as minhas mãos estão escorregadias. Se ele for meu inimigo, ele pode muito bem tentar me empurrar dessa escada e querer me levar para o outro mundo! Estou me segurando no corrimão o melhor que posso. Mas se eu ficar aqui, é capaz de não sobrar nada da casa!

Engoli a seco, lembrei-me dos programas de televisão que passam à meia-noite, em que pastores exorcizam seus fiéis. Criei coragem e gritei dali mesmo:

— Vade retro! Está repreendido em nome de Deus!

Tirando a minha voz trêmula e levemente embargada devido à vontade de chorar, acho que surtiu efeito. Os barulhos pararam.

Vou repeti a frase com mais ênfase. Está dando certo!

Logo após, ouvi um barulho estranho. Um grunhido de dor, agudo e grosso ao mesmo tempo, ecoou desde a cozinha. Então era só uma questão de fé! Se Deus quiser vou me livrar desse espírito trevoso! Repeti mais uma vez a frase. Emendei um “e volte para onde você veio!” com toda a fé e confiança que eu tinha.

Aquele grunhido, quase um urro, veio da sala. Tomei coragem e virei a segunda metade da escada, fazendo o sinal da cruz no ar, que nem o padre do exorcista. Meu corpo todo tremia, tomado por uma energia descomunal. Meus olhos marejaram. Mesmo morrendo medo, fui fazendo o sinal da cruz e repetindo aquelas palavras como um mantra.

Um relâmpago iluminou tudo. Por um instante, pude ver aqueles olhos amarelos vindo em minha direção. A chuva, que já estava intensa, havia ficado ainda mais forte. O som das gotas d’água batendo na janela e no telhado pareciam o barulho da televisão quando ela fica chiando. O vento forte uivava alto, trazendo lufadas de um vento frio e pestilento, com aquele cheiro podre.

Aqueles olhos cruzavam o ar. Era uma mancha negra que se deslocava rapidamente. Ele veio direto para cima de mim. Pude sentir a fúria daquela entidade. Aquilo me empurrou da escada. Sorte que me impulsionou de frente para trás, fazendo-me cair de bunda sobre os degraus. Se fosse no sentido oposto, eu poderia ter morrido na queda.

Aquilo era o que empesteava a casa com o cheiro de enxofre. Quando tocou a minha pele, senti algo úmido, viscoso. Lembrei-me do que alguém tinha falado sobre o ectoplasma, que ele teria a consistência gosmenta. Será que eu sobrevivi a um ataque espiritual?

Ele subiu as escadas. Essa era a minha chance de pegar algo na cozinha para iluminar aquela escuridão macabra. Segui rapidamente tateando os móveis. Volta e meia eu pisava em algo nojento, pegajoso. Mas não tinha como identificar naquele breu.

Quando alcancei a cozinha, estranhei que os armários estivessem abertos. Os pratos quebrados e as panelas espalhadas pelo chão. Apenas as gavetas seguiam fechadas. Por que será?

Finalmente achei a gaveta com os fósforos. Acendi um e pude ver um pouco melhor. O ideal seria encontrar uma vela ou uma lanterna. Sei que deve ter alguma por aqui, nas gavetas lá de baixo. Ao me abaixar para acessar a parte inferior do móvel, pude perceber que haviam pontos negros-esverdeados pelo chão e nos armários. Aquilo fedia horrores. Seria o rastro de ectoplasma daquela criatura?

Abri a gaveta e fui tateando. Finalmente achei uma lanterna, graças a Deus! Ou não… será que eu aguentaria ver uma assombração daquelas frente a frente? Para variar, a bateria estava fraca, mas era infinitamente melhor que aquela luz tremulante e efêmera do fósforo.

Assoprei o fósforo e liguei a lanterna. Sua luz era fraca e, vez por outra, ela apagava do nada. Eram os meus instantes de terror. Aqueles momentos de escuridão me davam a impressão de que mais criaturas trevosas estariam me cercando, com se a luz fosse um campo repulsor de monstros.

Dei uma pancada, para ver se a luz ficava mais estável. As coisas estavam caindo e sendo jogadas de um lado para outro lá em cima. Mas agora eu já sabia das “palavras mágicas”. Antes de subir, peguei um crucifixo simples que ficava pendurado na parede, que estava meio torto inclusive. Aqueles pontos negros esverdeados apareciam nos mais diversos locais: teto, parede, chão. A distância era ou muito curta, ou muito longa. Não tinha como ser um humano! Eram pontos e riscos. Seria aquilo alguma mensagem em código Morse?

Um pouco mais confiante, segui em direção à escada, subindo-a lentamente. Segurando o crucifixo numa mão e a lanterna na outra. Aquilo deveria estar no meu quarto. A porta se encontrava entreaberta. Num impulso de coragem, dei um chute na porta e entrei de supetão.

Aquele corpo completamente enegrecido cruzou o quarto num salto, quase num voo, indo parar no banheiro. A colcha de cama, a cortina e algumas roupas que estavam em cima de uma cadeira estavam todos rasgados, espalhados, com traços daquela substância pútrida. A cortina estava especialmete tenebrosa, lembrando aqueles retalhos que ficavam tremulando sob o vento nos filmes de terror. Meu Deus, o que poderia fazer um estrago daqueles?!

Aquele ser estava encurralado no banheiro. Era agora ou nunca! Eu ainda estava com o corpo todo tremendo, com as pernas bambas. A boca seca e todos o pelos do meu corpo estavam arrepiados. Rezava mentalmente com toda a minha força.

Depois de um pico de barulho de objetos sendo jogados no chão, um silêncio estarrecedor. A porta estava apenas encostada. Tomei coragem e joguei o meu ombro contra a porta, entrando de uma vez no banheiro, bradando o mais alto possível:

— Vade retro! Está repreendido em nome de Deus! Volte para onde você veio, eu ordeno!

Para a minha surpresa, o banheiro estava todo revirado, aquelas marcas tenebrosas, pontos e traços estavam por todo o lugar: teto, paredes, chão, toalha… o box era de um tecido plástico, muito frágil. Ele foi rasgado, ficando enrolado no chão.

Suspirei em alívio. Aquele foi o meu primeiro exorcismo? Comecei a rir. Sentei-me no vaso sanitário, limpando todo aquele suor frio que estava no meu rosto. Iria precisar de mais um banho depois daquilo tudo.

Ledo engano. Um choro de criança distorcido ecoou pelo banheiro. Arregalei os olhos, procurando de onde viria. Depois, aquele grunhido estranho veio novamente. Será que porque cantei vitória antes do tempo aquela entidade teria retornado? O som parecia vir debaixo dos restos rasgados do box que estavam no chão. Apontei a lanterna e a cruz naquela direção. Senti um calafrio percorrer todo o meu corpo de cima a baixo.

O retalho começava a se mover, parecia se contorcer, criar vida. Para o meu desespero, aqueles dois olhos amarelos e brilhantes me encararam. Como uma criatura disforme a parir, uma massa negra, amorfa, saiu debaixo daquilo. Não conseguia fazer nada mais se não ficar no canto da parede, gritando em total desespero.

Aquilo tudo durou apenas um instante. Logo depois, um gato preto, sujo de uma substância gosmenta, provavelmente oriunda do lixo dava aquele cheiro insuportável.

Passado o susto, o bichano se acalmou e consegui dar um banho nele. Enquanto esfregava a sua pelagem, percebi um nódulo em sua garganta. Talvez fosse aquilo que deixasse o seu miado tão estranho.

Os dias se passaram e agora eu e Satanás somos melhores amigos. Foi assim que nos conhecemos.

Manassés Abreu
Enviado por Manassés Abreu em 01/07/2020
Reeditado em 19/02/2024
Código do texto: T6993247
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