ATÉ O LIMITE DA DOR

I

Por mais que as pessoas lhe dissessem – e costumavam dizer – que sabiam exatamente o que ele estava sentindo, elas não sabiam. Ninguém sabia. O câncer recém descoberto definhava seu corpo rapidamente, cada vez mais, sem mostras de piedade. Parecia que ele havia envelhecido nos últimos meses muito mais do que em toda a sua vida. No entanto, a dor física que sentia - transtornos do tratamento - não era pior do que os açoites que lhe rasgavam a alma. Saber que a morte o levaria em breve, sem qualquer chance de salvação, o abalava mais do que tudo. Não. Definitivamente não. Aqueles idiotas não sabiam o que ele sentia.

A morte sabia ser cruel quando queria. Ele pensava nisso a toda hora, pois logo agora em que começava a colher os frutos de tanto esforço na vida, a mesma vida lhe tirava os últimos grãos de areia na ampulheta do tempo. Não era um homem plenamente rico, mas estava numa situação em que não dependia mais do dinheiro, absolutamente, porém os recursos que ele esperava usufruir de forma mais amena se esvaíam como água no sorriso aberto de um bueiro. A busca por uma solução definitiva se mostrava como uma obsessão cada vez mais distante, apesar de tudo...

Contudo, foi em um lugar totalmente improvável, e terminantemente pouco recomendado, que ele se viu frente a frente com o que seria a última chance de salvação, mesmo porque quase nada restava do patrimônio que juntara com tamanho esforço. Se fosse em uma situação normal, ele teria acabado com a conversa do estranho – algo próprio de um louco – logo após as palavras iniciais, mas o desespero não permitia tais atitudes.

– Encha o copo, Carlos!

– Senhor Torres, não acha que está exagerando? Não devia...

– Não me perturbe, Carlos! Não basta o que estou passando?

Talvez eu não tenha outra chance para encher a cara. Meu tempo se foi.

– Ou o senhor pode ter muito ainda para viver.

O atendente e o inconformado postulante a alcoólatra se viraram ao mesmo tempo para o desconhecido que se metia na conversa sem qualquer convite.

– Como assim? Quem é você?

– Pode me considerar um amigo, senhor Torres. Alguém que acompanha e ajuda indivíduos na mesma situação na qual o senhor se encontra. Claro, desde que estejam dispostos a pagar por isso.

– Pois saiba, “amigo”, que não me restou quase nada. Você chegou tarde demais.

– “Quase” pode ser o bastante. Podemos conversar ali?

O estranho sinalizou com a cabeça para uma mesa vazia, localizada numa parte pouco iluminada do estabelecimento, com o claro propósito de evitar os ouvidos curiosos do barman.

Despejando uma dose generosa de uísque no copo, o homem de cabelos grisalhos e olhar firme sorria para o moribundo, enquanto palavras saíam de sua boca com a maior naturalidade do mundo.

Não se preocupe, senhor Torres, beba à vontade. Logo, se o senhor quiser, nem isso, nem qualquer outro prazer da vida, será ameaça para a sua saúde.

Mesmo com a desconfiança soprando de leve em sua nuca, Torres virou o copo de uma só vez.

– Muito bem, antes de continuarmos, qual é o seu nome?

– Embora isso pouco importe, os mais próximos me chamam de Jean Louis.

– Com essa entonação mesmo? Você é francês, por acaso? Não vejo sinal algum de sotaque.

– Em parte sim. Mas isso também não vem ao caso agora. O que de fato importa é a oportunidade que estou pronto para lhe oferecer. O que acha de ter a sua vida de volta? O quanto deseja isso? Quanto está disposto a pagar?

Após uma breve pausa, Torres olhou diretamente para o homem que aguardava uma resposta com as mãos cruzadas apoiando o queixo.

– Cem mil reais, senhor Jean Louis. Cem mil reais em espécie.

– Não me faça rir – replicou o francês com ar de desdém – penso em pelo menos cinco vezes mais.

– Você está louco!

– Desculpe por desperdiçar o pouco tempo que lhe resta...

– Espere, por favor, espere – com o desespero nos atos, Torres segurou o braço do estranho que se preparava para levantar – o senhor garante que terei minha saúde de volta? Como isso será feito? Meu fígado, pâncreas, os tumores...

Um sorriso discreto se formou nos lábios de Jean Louis.

– Tudo o que posso lhe garantir é que não sentirá mais dores, nada mais o incomodará, uma vida renovada o espera.

– Está bem. Está bem. Quando assinamos o contrato?

– Não há contrato. Não há garantias ou regras. O senhor me entrega o dinheiro vivo nas mãos e, em contrapartida, lhe dou a cura para o mal que o assombra. Simples assim.

– Agora é o senhor quem me faz rir, Jean Louis. Só pode ser brincadeira.

O semblante sério do homem determinava que não havia espaço para jogos naquele momento.

– Isso é sério?

– Muito.

– Tudo bem. Está certo. Dê-me dois dias para levantar o dinheiro.

– Eu ligo de volta. Tenho o seu número. Foi bom fazer negócios com o senhor.

– Espero dizer o mesmo.

Jean Louis se levantou e desapareceu pela porta, deixando um rastro de curiosidade e incerteza no ar. Torres encheu novamente o copo e deixou o líquido amargo entorpecer seus pensamentos.

II

Jatos de sangue cortavam o ar, manchando de dor a maciez alva dos lençóis.

– Pai! Pai!

O acesso de tosse não terminava, por mais que o rapaz tentasse acalmar o colapso nervoso do debilitado homem em seus braços.

– Eu...eu...estou bem, Juliano. Estou...be...bem...agora...

Limpando o rosto com o dorso da mão, Torres tentou em vão se levantar.

– Descanse pai, descanse.

– Não. Não quero descansar. Quando morrer, eu descanso. Não agora.

– Pai, o senhor não está...

– Não. Escute, filho, escute – buscando fundo o ar, Torres tentava continuar – você é a única família que tenho, desde que, desde que sua mão se foi. Somos só nós dois. Sei que torrei quase tudo que tínhamos e...

– Não diga isso...

– Quieto! Não me interrompa, por favor. A verdade é que gastei muito mais do que devia em busca de um tratamento eficiente, uma cura. Mas ainda há como reverter a situação, tenho uma última carta na manga, mas se não der certo, erga as empresas, toque-as em frente. Ainda há chance de reverter a situação, talvez você seja um administrador melhor do que eu fui.

– Do que está falando? Não entendo.

– Não se preocupe com isso. Vai dar certo. E, se não der, que você seja feliz com o pouco que lhe deixo. Por favor, chame o Régis para me ajudar.

III

Uma forte chuva despencava na zona oeste da cidade. Torres resolvera tomar um táxi, não queria envolver ninguém em seja lá o que estivesse se envolvendo.

Há muito as luzes dos prédios haviam ficado para trás. Provavelmente, apenas o pagamento antecipado, negociado em dobro, respondesse pelos motivos que levaram o taxista naquela viagem incomum.

O veículo seguiu por cerca de uma hora e meia através de uma repetição incessante de montes arredondados e mato rasteiro. A monotonia viria a terminar no final de uma estrada enlameada. Apenas uma casa, não muito grande, mesclada em alvenaria e madeira crua, se apresentava como um ponto solitário na imensidão da área em que os olhos alcançavam. Nenhum muro ou qualquer outro tipo de proteção ladeava o imóvel.

Tão logo o amarelo do automóvel deixou o campo de visão, a silhueta conhecida de Jean Louis surgiu no vão escancarado da porta. Sem que qualquer palavra fosse proferida, uma mala de couro trocou de mãos. Amparado pelos braços do anfitrião, Torres ganhou as dependências da residência.

A iluminação indireta não permitia que muitos detalhes do interior da casa fossem avaliados. Mas Torres não estava muito preocupado com isso, a despeito da dor que o obrigava a andar envergado, o que mais lhe incomodava era a incerteza sobre o que o aguardava.

Jean Louis, ao mesmo tempo em que desejava se mostrar calmo, também deixava escapar alguns toques de apreensão. Torres não percebeu, mas filetes de suor descreviam um caminho irregular pelas têmporas do sujeito que o amparava.

Caminharam até o meio de um corredor, chegando até uma porta que levava a um cômodo vazio, onde apenas uma portinhola de madeira, na parede defronte a entrada, se fazia presente.

Jean Louis foi à frente, fazendo sinal com a mão para que Torres o seguisse. Abrindo a porta da espécie de alçapão, o anfitrião sorria de forma amarelada.

– É por aqui.

– O que significa isso?

– A salvação.

– Como?

– A cura. Você irá encontrá-la lá embaixo.

– Lá?

– Oui.

– Ah, agora você tem sotaque?

– Não perca mais tempo. O que lhe prometi está além dessa passagem.

– Você não vem?

– Prefiro ficar aqui. Mas se o senhor quiser redenção, esse é o caminho.

Resignado, porém temeroso, Torres procurava vencer os degraus da melhor maneira que as pontadas dolorosas lhe permitiam.

Uma coloração âmbar dominava o interior do porão, o qual, a julgar pela primeira vista da casa, parecia muito maior do que ele poderia supor. Um estrondo, que ressoou num eco absurdamente perturbador, denunciava que a porta do alçapão havia sido fechada. Quase ao mesmo tempo um odor pesado se espalhou pelo ar. Torres estalou os lábios e um gosto amargou lhe assaltou de súbito.

Um vulto pareceu cruzar seu lado esquerdo, atiçando sua visão periférica.

– Ei! Ei você! Espere.

Mas seja lá quem estivesse lhe servindo de companhia, preferiu permanecer no anonimato. Torres seguiu pela mesma direção. Talvez o sujeito fosse o detentor de sua salvação. O piso de madeira rangia, mesmo com seus passos vacilantes por conta da dor.

Ao dobrar um corredor, Torres se viu frente a frente com um desconhecido. Nenhuma vestimenta revestia seu corpo, mas era nítido que o homem tinha um grilhão atrelado a uma de suas pernas e que, também, várias dobras de uma espessa corrente se postavam ao seu lado.

─ Você! É você a pessoa que vai me ajudar?

Nenhuma resposta veio. Pelo menos não em palavras discerníveis. O que se ouviu no interior do porão foi apenas um grito. Um som doloroso de se ouvir. A pouca iluminação se foi quase no mesmo instante e, julgando que o rapaz precisasse mais de ajuda do que ele próprio, Torres tentou se mover em sua direção, mas barras de ferro, ou algo do tipo, impediram que ele seguisse adiante.

– Garoto? Garoto? Você está be...

Antes que pudesse terminar a indagação, Torres foi atingido pelo que julgou ser uma armadilha de urso. Lâminas afiadas perfuravam uma de suas panturrilhas. Ele gritou. Tão alto e forte como o som aterrador que ouvira há pouco. Fazendo uso de uma força que jamais imaginou, sobretudo pelas atuais condições, ele conseguiu se desvencilhar, mas tendo a certeza de que pedaços de sua carne ficaram espalhados pelo chão.

Doía. Doía tanto quanto as lacerações da doença que o consumia. Torres não conseguia organizar os pensamentos, mas de uma coisa ele tinha certeza: mesmo que conseguisse sair dali, não estaria em melhores condições do que quando entrou.

Deixando um rastro de sangue pelo caminho, ele chegou até a porta do alçapão. Gritos de agonia e dor chegavam aos seus ouvidos. Gritos humanos, mas que pareciam conduzidos por um demônio.

– Abra! Abra a porta Jean Louis! Seu miserável! Deixe-me sair daqui!

Contrariando as expectativas, a porta se abriu e o francês apareceu lhe estendendo um braço.

– Maldito! Eu vou te matar!

– Calma, calma, mon ami. Dê-me a sua mão, eu te ajudo.

– Eu...eu não estou...não estou aguentando...

Torres, tomado por uma dor que ele julgava ser incapaz de existir, tendo em vista que experimentara toda sorte de agonia nos últimos meses, foi lentamente perdendo contato com a lucidez, ao mesmo tempo em que uma escuridão tomou conta de sua visão. Não tardou para que perdesse os sentidos.

IV

Uma brecha estreita na janela permitiu que um vento gelado esbofeteasse o rosto de Torres, retirando-o do sono profundo no qual estivera mergulhado nas últimas horas. Ele estava no próprio quarto, não sabia como, mas estava. Sua mente era uma mescla de torpor e incertezas, as lembranças ofereciam-se fragmentadas. Mas, apesar de tudo, de uma coisa ele tinha certeza: a agonia da dor havia desaparecido.

De súbito, se lembrou do porão, do rapaz e do ferimento. Num reflexo tateou a perna, mas não havia nada além de uma suave cicatriz. Apressado, saltou da cama e abriu a janela a fim de inspirar, com vontade, o ar noturno. Ele se sentiu com há muito não se sentia, o ar gelado preenchendo seus pulmões lhe remetia à vida, à ausência de dor. No entanto, mais um aspecto inerente à vida o tomou de súbito: a fome. Mas não era uma fome comum, era uma necessidade urgente que lhe açoitava tão ou mais violentamente que a dor que até pouco tempo o dominava por completo. Só que para a dor ele sabia que fora difícil o caminho da liberdade, mas para a apetência seria muita mais simples a solução.

Com uma desenvoltura que julgava ser incapaz de dominar, Torres revirou a despensa e a geladeira, mas não encontrava nada que lhe apetecesse. O desespero começava a possuí-lo, ao mesmo tempo em que uma queimação ameaçava derreter todos os seus órgãos. Ele tinha plena consciência de que precisava comer, era mandatório aplacar aquela necessidade, mas nada, absolutamente nada, preenchia satisfatoriamente sua demanda. Ele imaginava que perderia os sentidos a qualquer momento. Foi quando percebeu uma fresta na porta da cozinha e algo se movendo. Torres não sabia que tipo de força o impelia, ele só tinha a certeza do que precisava fazer.

Decidido, agarrou o gato de estimação e, com uma só mordida, decepou a cabeça do bicho, sorvendo o líquido quente que jorrava pelo vão escancarado, terminando a refeição com as vísceras do dorso retalhado.

Torres experimentou uma sensação inédita em sua vida. A satisfação que lhe invadia era incomparável. No entanto, ele precisava de mais e estava decidido a conseguir. Livre de pudores, tomou o caminho do pequeno canil que dispunha na propriedade, sempre fora um apreciador dos cães, mas, agora, eles lhe serviriam para outro propósito. Ele não tinha as chaves do portão que lacrava o ambiente dos animais e, por conta do descontrole e do desespero, sacudia as grades de ferro de forma enlouquecida. Os cachorros latiam e ganiam, como se pudessem adivinhar o destino que lhes aguardava.

A confusão não passou despercebida, de modo que Régis, o enfermeiro de Torres, despertasse e fosse até a origem da desordem.

– Sr. Torres, o que está havendo aqui?

Régis ainda não sabia, mas logo iria perceber que aquele homem, a quem conhecia como o seu patrão, já não dominava as próprias vontades, tampouco as ações. Os olhos vermelhos e injetados de Torres, assim como a sua boca escancarada e salivando em profusão, eram sinais inequívocos de que ele deveria fugir dali o mais depressa possível, mas, no final não houve tempo para isso, pois Torres saltou sobre o funcionário e o dominou com extrema facilidade, a despeito de toda a resistência que este demonstrava. Os dedos enrijecidos daquilo que já fora um homem procuravam espaço na maciez do abdome de sua vítima na ânsia de liberar o acesso aos nutritivos e suculentos órgãos internos.

Régis gritava de dor e desespero enquanto o líquido rubro vertia farto pelas aberturas infligidas em seu dorso. Os cães uivavam alto, como se compartilhassem de sua agonia. Os dentes enlouquecidos de Torres dilaceravam carne e músculos.

– Pai?

Juliano, o filho de Torres, também atraído pela balbúrdia, anunciava a sua presença num momento extremamente complicado. E, ao ouvir a voz do rapaz, a lucidez do homem ressurgia em estalos, de maneira intermitente.

– Fuja...Juliano...saia...saia daqui...agora!

– O que o senhor está fazendo, pai? O que está havendo?

Enquanto falava o rapaz se aproximava perigosamente, ainda que de modo inadvertido, pois ele não tinha consciência acerca da nova condição daquele a quem amava e venerava.

– Pai, deixe-me ajudá-lo.

Juliano tocou o ombro do pai, mas foi a última coisa que viria a fazer em sua curta existência.

V

Torres acordou em sua cama. Sentia-se forte, saudável, disposto, como nunca estivera em toda a sua vida. Seu corpo estava incrível, incomparável, mas a sua mente era o oposto. Ele tinha plena consciência das atrocidades que cometera e jamais poderia viver com uma dor maior do que a que lhe acometia com a doença. Monstros existiam, afinal. E se tinha uma coisa que ele sabia sobre monstros é que deveriam ser destruídos e, para ele, o maior monstro era o maldito Jean Louis. Aquele francês dos infernos pagaria com a vida.

Ele não esperaria pela chegada de uma nova noite e de uma possível perda de vontade para a fome. Era preciso estar no controle da situação para acabar com aquele ciclo de horror.

Assim, Torres tomou a direção de seu próprio veículo, uma vez que agora estava apto para tal, e seguiu rumo à casa do maldito. Era um caminho que jamais seria capaz de esquecer. No intuito de manter o elemento surpresa, ele estacionou o carro fora dos domínios da propriedade e caminhou de modo furtivo pelo terreno que ladeava a casa. O tempo nublado ajudava em suas projeções. A melhor opção seria invadir o local pela porta dos fundos, e assim ele fez.

De forma inesperada, a porta estava destrancada. Lentamente, ele percorria um longo corredor, o qual já tinha visto antes, mas pelo caminho inverso. Torres trazia nas mãos um revólver calibre.38, instrumento necessário para o propósito que carregava. Se a sua memória estivesse certa, e ele sabia que estava, no meio daquele corredor ficava o alçapão que levava ao rapaz enclausurado.

O homem percorreu com cautela cada recanto da casa, mas, inesperadamente, ela parecia vazia. Assim, ele julgou que seria prudente dar um jeito na situação do rapaz. Ou ele ficaria livre para trilhar o próprio destino, ou, caso fosse necessário, encontraria um fim ali mesmo, o mais importante seria impedir que Jean Louis continuasse a lucrar enquanto fazia o mal.

Pé ante pé, ele desceu os degraus do porão e alcançou o ambiente que lhe era familiar. A luminosidade âmbar diminuía o seu poder de visão, mas ele sabia para onde ir. A jaula, agora ele tinha plena convicção de que havia uma, ficava logo adiante. Mas por mais que se aproximasse, nenhum ruído era perceptível, bem diferente de sua última estada. Ele tateou as grades com uma das mãos, enquanto a outra apontava o revólver e percebeu que o portão estava aberto.

– Ei, ei, tem alguém aí?

– Sim!

A resposta veio acompanhada de uma pancada na nuca de Torres, um golpe violento que o jogou no chão privando-lhe dos sentidos. Jean Louis chegou de maneira tão sorrateira, como se a prática o tivesse conduzido a perfeição. Sorrindo para o homem desacordado, ele disse:

– Mon ami! Eu já estava achando que não viria.

VI

Elegantemente trajado, como sempre, e fazendo uso de sua oratória convincente, o francês conduzia uma bela jovem pelos braços. A menina caminhava com muita dificuldade, como se a dor a acompanhasse em cada movimento.

– Por aqui, mademoiselle Sofia. E como eu disse, seu investimento terá um retorno mais do que satisfatório. Logo, nem se lembrará mais da fibromialgia e, como bônus, não precisará nunca mais buscar uma boa forma em academias. Basta seguir pelas escadas, seu destino está lá embaixo.

A moça, assustada, mas confiante, desceu os degraus onde encontraria uma tênue luminosidade âmbar, ouviria o som arrastado de pés se deslocando e uma respiração ruidosa. Mais alguns passos adiante, seria subitamente mordida por uma criatura enclausurada numa jaula, a qual se esgueiraria por uma ínfima fresta em sua prisão. E, em breve, também sentiria uma fome inumana, mataria, recobraria a consciência junto do desejo de vingança, pois tudo sempre se repetia. Assim, num futuro próximo, ela mesma estaria naquela jaula, tal qual aquele homem que nunca viria a conhecer. Do mesmo jeito que Sofia não sabia, Torres, a criatura faminta que a atacaria logo, também ignorava que só poderia existir uma criatura por vez, e, que logo após passar o seu legado adiante, todas elas encontravam o inevitável fim. O rapaz enclausurado antes de Torres já não existia mais, logo ele próprio também não sentiria mais dor.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 30/06/2020
Reeditado em 30/06/2020
Código do texto: T6992543
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