Os Borges

No condomínio havia piscina, quadras de tênis, pista de corrida, e três torres de apartamentos que podiam ser vistas, imponentes, surgindo por cima dos impenetráveis muros cor bege pastel, eriçados de cacos de garrafas e arame farpado. O portão que dava acesso à garagem era de metal, abria-se mecanicamente assim que algum morador surgisse em seu luxuoso automóvel, e quando o carro passava, o portão fechava bruscamente, como se fosse uma bocarra que devorava os pobres moradores. A entrada para os pedestres era um outro portão, igualmente de metal, com um pórtico em estilo néo-classique, contígua a uma guarita, onde dia e noite, um porteiro passava seu tempo vigiando, jogando paciência e levando esporro dos moradores. Naquela noite de verão, o Porteiro vestia seu habitual terno azul-marinho, ornamentado com o logotipo da empresa especializada em segurança patrimonial. O traje estava empapado de suor, o Porteiro todo parecia derreter por baixo daquela roupa. Sentia-se especialmente triste e solitário preso em sua guarita. Ele via o mundo todo desde seu posto, porém, estava seguro, ninguém o via, ninguém notava sua presença, era como se não existisse, exceto, claro, quando algum morador o chamava para alguma advertência. Quando ninguém sabe que você existe, você realmente existe? Em meio a toda aquela angústia, irritava-se ainda mais diante daquele moleque, de pele morena, magrelo, vestido de maneira ridícula, que insistia em entrar no condomínio. Mostrava um papel amarrotado, manchado, dizia ser um convite, dizia ser parente e amigo íntimo do Doutor Borges, dizia que houvera sido convidado para a festa. Aquele merda já estava dando nos nervos. Lamentou-se por não ter um ar-condicionado. Passou a mão pelo rosto, enxugou o suor que escorria por sua testa, ajeitou os cabelos bastante crespos que lhe cobriam a cabeçorra. Foi tomado pela ideia de mergulhar na piscina do condomínio, tomar um trago na festa dos bacanas, com muito esforço repeliu esses pensamentos absurdos. Sua função era impedir que moleques como aquele entrassem no condomínio. Havia visitado o condomínio algumas vezes, e casou-lhe certo espanto a recusa do porteiro em deixar que entrasse. É verdade que nas outras vezes estivera acompanhado ou por Carolina ou pelo Doutor Borges, mas de qualquer maneira, o porteiro o conhecia. Todas as vezes que o Moleque fora ao condomínio, sempre o impressionara de sobremaneira a imagem das torres. As três torres eram tão altas que pareciam espetar o céu, além das nuvens, até a morada de Deus. Doutor Borges vivia no oitavo andar, o suficiente para se ter uma vista impressionante. O condomínio era uma intransponível fortaleza e isso encantava o Moleque. Era como o paraíso. Do lado de fora havia uma movimentada avenida por onde passavam os ônibus, que empanturrados de gente, seguiam seu caminho ziguezagueando. No horário de pico, a avenida era tomada pelos muitos automóveis parados no congestionamento, com seus motoristas que refletiam desde a mais genuína indignação até o completo conformismo. As calçadas eram apinhadas de pessoas, meio robotizadas, que jamais pediam desculpas quando pisavam os pés umas das outras, o que acontecia com bastante frequência. Saía dos bueiros um ar podre, que contaminava todo o ambiente com miséria. O Moleque vivia em uma favela não muito distante dali. O Porteiro saiu da guarita, aproximou-se do moleque, e quando foi falar, sua cara se contorceu, como se as palavras não lhe quisessem sair pela boca. O Porteiro e o Moleque estavam bastante próximos, ainda que separados pelas grades do portão. Alguém que os visse conversando, poderia supor, apesar da pouca diferença de idade, que o Porteiro fosse o pai do Moleque. -Você não é da família Borges. Você não pode entrar. - disse, por fim. O Moleque mostrou novamente – pela quarta ou quinta vez – o convite que dizia: “A Família Borges convida-o para o Vigésimo Aniversário de Casamento do Doutor Antônio Borges e de Madame Adriana Borges”. Depois de mostrar o convite, explicou uma vez mais, que era namorado de Carolina, que Doutor Borges, além de seu sogro, era um grande amigo. O Porteiro não acreditava, dava risinhos irônicos, e quando o Moleque terminava sua fala, respondia, secamente: -Pois bem, vou ligar para o apartamento dos Borges, se o Doutor Borges confirmar sua história, você entra, mas acho difícil … você não é da família, deveria ir embora porque aqui não há nada para você. Mentira. Mentira! - pensou o Moleque – o Porteiro, nas outras vezes, dissera o mesmo: que iria ligar para o Doutor Borges, mas era mentira, ele só fingia que ligava. Se ele realmente tivesse ligado, o Doutor Borges ter-lhe-ia dito que o convite era real, que o Moleque e ele eram grandes amigos. Divertiu-se imaginando a bela bronca que o sogro daria no Porteiro quando descobrisse o ocorrido. O Moleque tinha o sogro como seu melhor amigo e se mantinha o namoro com Carolina, era simplesmente para que não tivesse abalada a relação que construíra com o Doutor Borges. O condomínio era muito diferente da favela onde o Moleque vivia. A favela era um aglomerado de botecos, igrejas e bocas de fumo, e em meio a esses lucrativos negócios, os cubículos sem reboco onde o povo vivia de aluguel. O Moleque morava numa das ruas sem asfalto, e quando chovia, a casa se enchia de lama. Esses eram os piores dias, porque o Moleque sentia-se um verme revirando-se em meio ao barro. Sua casa tinha na porta uma gaiola com um passarinho, dentro era entupida de tralha, o Moleque vivia espremido com seus três irmãos mais novos, a avó, e a mãe que nunca estava em casa, provavelmente fazendo faxina em algum dos apartamentos do condomínio. A Avó, louca, passava as tardes sobre uma cadeira de plástico que mal aguentava seu peso, totalmente imóvel, exceto pelos lábios que se moviam repetindo uma oração inaudível, contrastando muito com as imagens que a televisão – que nunca se desligava – exibia freneticamente. Se a velha valesse algo mais que qualquer outro objeto da casa, seria porque em algum momento houvera sido algo vivo. A primeira e única vez que levara Carolina à sua casa, arrependera-se. Teve vergonha de sua casa; da favela; de sua avó; de seus irmãos que andavam nus, exibindo seus ventres inchados de vermes e as nádegas cobertas por asquerosas manchas vermelhas. Teve vergonha de sua miséria. Doutor Borges, porém, visitava a casa do Moleque, pelo menos, duas vezes por semana. O Porteiro saiu da guarita, aproximou-se do moleque, e quando foi falar, sua cara se contorceu, como se as palavras não lhe quisessem sair pela boca. -Você não é da família Borges. Você não pode entrar. - disse, por fim. O Moleque mostrou novamente – pela quarta ou quinta vez – o convite que dizia: “A Família 30 Borges convida-o para o Vigésimo Aniversário de Casamento do Doutor Antônio Borges e de Madame Adriana Borges”. Depois de mostrar o convite, explicou uma vez mais, que era namorado de Carolina, que Doutor Borges, além de seu sogro, era um grande amigo. O Porteiro não acreditava, dava risinhos irônicos, e quando o Moleque terminava sua fala, respondia, secamente: -Pois bem, vou ligar para o apartamento dos Borges, se o Doutor Borges confirmar sua história, você entra, mas acho difícil … você não é da família, deveria ir embora porque aqui não há nada para você. O Moleque, assim como toda a favela, foi à inauguração do Shopping—não era para menos, o Shopping era tão impressionante quanto o condomínio, com infinitas lojas com produtos que o Moleque jamais poderia comprar – e justamente naquele dia, conhecera a namorada. Carolina tinha quinze anos, a pele branca, longos cabelos castanhos. Para o Moleque, as mulheres eram seres quase sobrenaturais, dotadas de poderes mágicos. As mulheres despertavam sentimentos bons como o amor, mas também lhe traziam sentimentos ruins, como ciúmes, a raiva e a impotência. Quando viu Carolina, sentiu-se confuso, teve medo, descobriu que não sabia falar, que sua linguagem não era nada mais que meia dúzia de frases superficiais com pobre vocabulário. Se não fosse pela ajuda dos amigos, jamais teria falado com a menina. Carolina, em algumas semanas, disse estar apaixonada e então o Moleque teve o direito de começar a frequentar o condomínio. Carolina vivia com os pais e o avô paterno. O Moleque trocava apenas algumas poucas palavras com a sogra, que passava os dias trancada em seu quarto, dormindo à base de remédios. A mulher tinha um nome pomposo, algo como Vasconcelos Duarte. O sogro, Doutor Borges, era diferente, passara a infância em um bairro não muito diferente da favela, era um homem ao qual admirava mais que a todos os outros no mundo. Doutor Borges caminhava e falava como se conhecesse os mais profundos segredos, reservados somente aos grandes homens, totalmente ignorados pelos medíocres. O Avô, Eugênio Borges, um senhor que o Moleque achava ter, pelo menos, cem anos, contava, orgulhosamente, como havia matado o sócio para poder ter total domínio sobre a transportadora que o fez um homem rico. “Matei o sócio e joguei o corpo no meio do mato. Quando foi o velório do infeliz, chorei ao lado do caixão, disse que estava triste por agora ser o único dono da empresa. Os filhos do morto, medrosos, nunca contestaram o meu poder.” A transportadora da família Borges, um império. O Moleque não tinha o pai, que abandonara a casa, mudara-se para outra cidade não muito distante e juntouse com uma mulher mais jovem. Tinha feito uma nova família e esquecido a antiga. No início, o Moleque mantinha a esperança de que o pai retornasse – ainda o amava—depois a ideia foi perdendo força e por algum tempo recusava-se a pensar no homem que lhe transmitira os olhos de cílios longos, e quando pensava era com profunda tristeza, sentia-se culpado, sentia-se indigno de ter pai. Com o tempo, porém, o amor que sentira, tornara-se um ódio que se impregnara em sua alma. Odiava o pai, queria matá-lo, matá-lo por haver abandonado o próprio filho. As roupas que usava naquela noite haviam sido presentes do Doutor Borges, que exigia que o genro andasse vestido com o melhor que o dinheiro pudesse comprar. Quantos presentes já ganhara do sogro? Muitos. Sentia-se feliz por ser um Borges. O Porteiro saiu da guarita, aproximou-se do moleque, e quando foi falar, sua cara se contorceu, como se as palavras não lhe quisessem sair pela boca. -Você não é da família Borges. Você não pode entrar. - disse, por fim. O Moleque mostrou novamente – pela quarta ou quinta vez – o convite que dizia: “A Família Borges convida-o para o Vigésimo Aniversário de Casamento do Doutor Antônio Borges e da Madame Adriana Borges”. Depois de mostrar o convite, explicou uma vez mais, que era namorado de Carolina, que Doutor Borges, além de seu sogro, era um grande amigo. O Porteiro não acreditava, dava risinhos irônicos, e quando o Moleque terminava sua fala, respondia, secamente: -Pois bem, vou ligar para o apartamento dos Borges, se o Doutor Borges confirmar sua história, você entra, mas acho difícil … você não é da família, deveria ir embora porque aqui não há nada para você. Doutor Borges tinha os cabelos negros, as sobrancelhas quase se uniam, o queixo protuberante, os braços musculosos, porém o que mais chamava a atenção naquele homem era seu abdômen imponente. Pelo menos duas vezes por semana, Doutor Borges ia a casa do Moleque. O Moleque, então, acompanhava o Doutor Borges até a loja, que ficava do outro lado da rua. Na loja vendia-se de tudo: maconha, cocaína, crack, loló. Os dois entravam na fila, e quando chegava a sua vez, Doutor Borges comprava pó e maconha. O Moleque gostava de maconha, e Doutor Borges criticava-o por este motivo. A maconha, dizia o sogro, era uma droga inferior que destrói o espírito empreendedor, a cocaína, por sua vez, faz saltar no homem o que há de melhor na raça humana. O Doutor Borges adorava a cocaína. Dizia que seu império era devido a duas coisas: a valentia do velho Borges em fazer o que era preciso, e a cocaína que o mantinha sempre disposto. Depois iam ao Shopping, onde comiam chocolates, pipoca, tomavam refrigerantes e, às vezes, assistiam algum filme no cinema 3D. O Moleque tinha especial predileção por filmes de super-heróis. Doutor Borges era uma ótima pessoa. Um dia seria como o Doutor Borges. O que mais gostava no condomínio era a piscina. Carolina fazia aula de piano. O Porteiro saiu da guarita, aproximou-se do moleque, e quando foi falar, sua cara se contorceu, como se as palavras não lhe quisessem sair pela boca. -Você não é da família Borges. Você não pode entrar. - disse, por fim. O Moleque mostrou novamente – pela quarta ou quinta vez – o convite que dizia: “A Família Borges convida-o para o Vigésimo Aniversário de Casamento do Doutor Antônio Borges e de Madame Adriana Borges”. Depois de mostrar o convite, explicou uma vez mais, que era namorado de Carolina, que Doutor Borges, além de seu sogro, era um grande amigo. O Porteiro não acreditava, dava risinhos irônicos, e quando o Moleque terminava sua fala, respondia, secamente: -Pois bem, vou ligar para o apartamento dos Borges, se o Doutor Borges confirmar sua história, você entra, mas acho difícil … você não é da família, deveria ir embora porque aqui não há nada para você. Quando o Porteiro voltou para a guarita, o Moleque deu-se conta de algo. O Porteiro, que antes possuía uma vesta cabeleira negra, agora não tinha mais que dois tufos de cabelo que surgiam sobre as orelhas e cobriam parte da nuca, seu corpo atlético tornara-se somente um punhado de ossos dentro de um saco de pele enrugada. O próprio Moleque percebia como seu corpo também estava diferente, arqueado, frágil, por baixo dos olhos haviam crescido duas bolsas de gordura e seu rosto estava coberto por uma longa barba grisalha. Esquecera-se porque estava na frente daquele condomínio, quando havia chegado, o que fazia lá? Desesperado, meteu a mão no bolso da calça, tirou um papel amarelado, tentou ler o que havia escrito. As letras se embaralharam diante de seus olhos, parecia estar escrito em árabe, chinês, alguma língua estrangeira totalmente desconhecida. Quantos anos havia passado desde sua primeira conversa com o Porteiro? Centenas de milhares? As almas daqueles dois estariam enredadas naquele eterno momento, condenados às suas respectivas tarefas, ele tentando entrar e o Porteiro impedindo-o. O Porteiro saiu da guarita, aproximou-se do moleque, e quando foi falar, sua cara se contorceu, como se as palavras não lhe quisessem sair pela boca. -Você não é da família Borges. Você não pode entrar. - disse, por fim. O Moleque mostrou novamente – pela quarta ou quinta vez – o convite que dizia: “A Família Borges convida-o para o Vigésimo Aniversário de Casamento do Doutor Antônio Borges e de Madame Adriana Borges”. Depois de mostrar o convite, explicou uma vez mais, que era namorado de Carolina, que Doutor Borges, além de seu sogro, era um grande amigo. O Porteiro não acreditava, dava risinhos irônicos, e quando o Moleque terminava sua fala, respondia, secamente: -Pois bem, vou ligar para o apartamento dos Borges, se o Doutor Borges confirmar sua história, você entra, mas acho difícil … você não é da família, deveria ir embora, porque aqui não há nada para você.

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Esteban Donato Ardanuy
Enviado por Esteban Donato Ardanuy em 25/06/2020
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