HORA MORTA.
Madrugada. Lua cheia. Três horas e trinta e três minutos. Dois gatos desceram do telhado. Pareciam pressentir algo. Eunice acordou assustada. A penumbra do quarto. Ela olhou para a porta encostada. Um arrepio no corpo todo. Tentou, em vão, puxar o edredom. Certamente deixara a porta da sacada aberta. Dois olhos a observavam. Havia alguém de pé junto a porta. Eunice suou frio. Teve medo. A boca seca. Tentou se virar. O corpo não obedeceu. Uma força nas costas. Mãos a impediam de se virar na cama. O rosário no criado mudo. O abajur. Precisava alcançar o abajur. As pernas não se mexiam. Ficou imóvel. Dirigiu o pensamento para os afazeres do dia seguinte. Eunice sentiu o corpo levitar. Seu espírito se desprendeu. Ela estava junto ao teto. O guarda roupas. Aquela teia de aranha no canto do gesso. O quarto estava iluminado agora. Ela viu, do alto, o seu corpo encolhido, tremendo de frio. O marido roncando ao lado dela. A porta entreaberta. A avó Helena. O filho Elbert. A vizinha Dinorá. O amigo de empresa Sebastião. Todos de pé, ao redor da cama. Ela rezara pelas almas deles, antes de dormir. Sentiu saudades da vizinha e melhor amiga. Eunice atravessou o telhado. Os dois gatos passaram por ela. Eles a olharam, curiosos. Eles olharam para o alto. Eunice também olhou. Havia um portal de luz no céu. Uma escada reluzente descia do portal até a terra. Seres de luz intensa saíam do portal. Os gatos correram. Eunice sentiu um arrepio. Um mundo inteiro se materializou. Eunice viu uma cidade espiritual sobre a cidade material. Era como a aurora boreal. Ela estava admirada. Era uma outra dimensão. Um show de luzes. Uma legião de anjos passou por ela. Ela viu lobisomens, esqueletos, pessoas com trapos e expressões tristes, demônios, bruxas, seres estranhos parecidos com alienígenas, animais passeando pela cidade. Era tão real. O relógio da torre da matriz bateu quatro horas. Eunice se virou na cama. Ela puxou o edredom. Deu um tapa na careca do marido dormindo. Ele virou de lado e parou de roncar. Eunice acendeu a luz do abajur. Foi ao banheiro. Um copo de água na cozinha. Voltou ao quarto. Pegou o rosário. O celular. Olhou as horas. Quatro horas e trinta minutos. Fechou a porta do quarto. Odiava dormir com a porta entreaberta. Começou a rezar. Pai nosso. Ave Maria. Salve Rainha. Adormeceu após cinco minutos. O marido acordou as cinco horas pra trabalhar. Eunice acordou as oito. Uma dor nas costas. Um banho. Um café preto. Ela colocou a roupa suja na máquina de lavar, antes de ir pra academia. Passou no supermercado. Os remédios na farmácia. A horta. Limpou o apartamento. Passeou pelos canais da tevê. O programa da Sônia Abrão. Não gostava desse tipo de programação mas resolveu assistir. Uma sensitiva explicava sobre a hora morta. -" TRÊS HORAS E TRINTA E TRÊS DA MADRUGADA É A CHAMADA HORA MORTA. O MUNDO ESPIRITUAL SE CONECTA COM O MUNDO FÍSICO. UM PORTAL SE ABRE. NESSE TEMPO, AS ORAÇÕES SE TORNAM FORTES E PODEROSAS. AS INTENÇÕES DE MALDADE TAMBÉM POIS OS DEMÔNIOS E ESPÍRITOS MAUS GANHAM FORÇA. SE VOCÊ ACORDAR NESSE INSTANTE, ORE!!! ORE COM FERVOR E PEÇA AJUDA DOS SERES ESPIRITUAIS DE LUZ DO BEM. GATOS E CÃES PODEM VER E SENTIR A PRESENÇA DE SERES ESPIRITUAIS!!!! " Eunice recordou que acordara nesse horário. Será que sonhara?!? Os olhos na porta. A dor nas costas. Estava confusa. -" TIVE UM PESADELO." Disse a si mesma. Eunice resolveu tirar a roupa da máquina. Uma tapioca seria seu almoço. Um suco de maracujá. Resolveu olhar os álbuns de fotografia. A foto da avó Helena, morta há dez anos. Uma mulher incrível. As festas da empresa. Sebastião lhe arrumara o emprego. Ele mesmo a promoveu, dois anos depois. Um amigo precioso. O filho Elbert, falecido ainda adolescente. Momentos felizes. Era um anjo. A vizinha querida dos tempos de escola. Ela era amiga de todas as horas. Fazia falta. Todos já falecidos. Eunice sorriu. Algo lhe dizia que sonhara com eles. Estavam bem, no mundo espiritual. O interfone. Era a filha com o esposo. O neto de dez anos. Uma chuva fina a tarde. Eunice sentiu vontade de fazer bolinho de chuva. Café fresquinho. Queijo da serra da Canastra. Seguiu a receita ensinada pela avó. Um aroma delicioso no apê. O netinho bateu na porta da sacada. Eram os dois gatos se protegendo da chuva. Eles olhavam fixamente pra Eunice. -"É AQUELA HUMANA QUE SAIU DO CORPO NA HORA MORTA. BEM QUE PODERIA FAZER BOLINHO DE CHUVA SABOR ATUM PRA GENTE!!!!!" Disse um dos gatos. F I M