Micaela

O começo de tudo foi em um dia comum em que Micaela estava na praça. Ela estava sentada lendo um livro que já tinha lido várias vezes. Entre uma página e outra olhava o movimento das pessoas.

A leitura era uma forma de tentar passar o tempo até o encontro com o noivo. Micaela sempre fixada em pontualidade tinha chegado bem mais cedo que o combinado. Aproveitava esse tempo para, além de ler, pensar o quanto sua vida era maravilhosa. Iria se casar em breve e foi promovida recentemente.

Aquele era um dia particularmente agitado e cheio de pessoas apressadas. Olhava para as pessoas e foi quando viu um rosto conhecido na multidão. O choque foi tanto que o livro caiu da sua mão e ela não conseguiu evitar de arregalar os olhos. Era como se tivesse se visto frente a frente com o passado que queria esquecer.

Os anos passaram, mas ela logo reconheceu o rosto de Daphne. Os cabelos da garota estavam arrumados em um penteado que parecia ser o mesmo que ela usava na época que elas estudavam juntas,até a forma de vestir era parecida com daquela época . Ela não estava muito diferente do que Micaela lembrava e isso assustava, mas o que realmente assustou foi a cicatriz no rosto de Daphne. A marca que Micaela tinha causado. Enquanto encarava Daphne, a mente de Micaela voltou para a época da escola,especificamente para o dia em que tudo ocorreu.

No dia em questão Micaela tinha levado uma tesoura afiada para a escola. Planejava cortar o cabelo de Daphne ou algo do tipo, pois estava muito chateada. Foi uma atitude mal pensada.

No dia anterior ao ocorrido Micaela tinha visto o namorado dela beijando Daphne e tinha ficado com raiva. Não agiu na hora, mas planejou como faria Daphne pagar. No fim decidiu que tinha que ser o cabelo dela ou a jaqueta que ela tanto gostava.

O cabelo de Daphne era lindo e sedoso. Pensou em fazer um corte para estragar aquele bonito penteado ou quem sabe cortar a linda jaqueta dela. Esse era o plano. Micaela não queria que ninguém se machucasse de verdade, todavia algo deu errado.

Mesmo depois de alguns anos Micaela não conseguia lembrar todos os detalhes do que ocorreu. Lembra de ter a seguido sorrateiramente até o banheiro com a tesoura escondida dentro do casaco.

Micaela e Daphne se cumprimentaram de forma automática. Micaela fingiu lavar as mãos para ficar de olho na outra. Ela aproveitou o momento em que a outra menina fechou os olhos para lavar o rosto para aproximar a tesoura. Depois disso tudo ocorreu rápido.Lembra da garota agarrando seu pulso rapidamente, do barulho de vidro quebrando e o sangue no rosto de Daphne. De alguma forma a tesoura tinha pego em seu rosto, mas exatamente na bochecha.A visão do rosto ensanguentado dela foi a última coisa que viu antes de desmaiar.

Quando acordasse na enfermaria sentiaria um pouco de dor na cabeça e perceberia um pequeno corte na cabeça que associaria ao desmaio. Micaela achava que devido a perda de consciência suas memórias ficaram confusas. Mas ela lembrava bem do que ocorreu depois.

O resultado não poderia ser diferente. Foi expulsa da escola e não teve a chance de pedir perdão para Daphne, pois a garota se mudou. Queria realmente ter pedido perdão, pois umas semanas depois do ocorrido viu seu namorado Diego de olho em Renata, outra menina do bairro . Naquela ocasião viu que o problema não era Daphne.

Micaela foi para uma nova escola, mas o que ocorreu sempre parecia lhe seguir. As vezes quando saia com suas amigas tinha a sensação que a qualquer momento Daphne ia aparecer e contar tudo que Micaela tinha feito. Era como se aquele fato tivesse sempre a espreita, pronto para lhe acusar.

Algumas vezes nessa época pensou ter visto Daphne a seguindo de longe. Sempre escondida em meio a multidão de rostos no ponto de ônibus ou nas ruas movimentadas. Mas quando Micaela olhava novamente ela não estava lá.

Balançou a cabeça tentando afastar esses pensamentos, pois isso apenas piorava a tensão que sentia. Tinha desviado os olhos duas vezes, mas Daphne continuava lá. Não sabia o que fazer. Ainda estava a encarando quando Daphne virou as costas e foi embora, lentamente sumindo na multidão. Um pouco depois seu noivo chegou.

Aquele não seria um incidente isolado. No dia do ensaio do seu casamento e no dia em que foi comprar o vestido de noiva viu Daphne, com a cicatriz bem aparente, observando de longe, como um lembrete do que tinha feito . Aquilo lhe deixou aterrorizada e chegou a sentir um pouco de falta de ar. Sua mente imaginava a garota contando a verdade para todos no dia do casamento.

Micaela começou a se sentir culpada pela felicidade que sentia tendo em vista o que fez no passado.

Não conseguia dormir direito, pois sempre tinha variações do mesmo sonho que se resumia em Daphne lhe encarando com aquela cicatriz cada vez pior. A cada sonho ela parecia aumentar de tamanho. Em um desses pesadelos, o mais assustador, ela chegou a acordar com a sensação de que não conseguia se mexer , em um tipo bizarro de paralisia do sono ou consequência do sonho ruim. Aos poucos a sensação passou e ela se levantou da cama.

Foi até a janela e ficou um tempo admirando a quietude da noite. Pensava que quanto mais se foge do passado mais ele se aproxima. Durante esse momento tomou a decisão: iria atrás de Daphne.

Resolveu também não contar toda verdade para seu noivo Kaio sobre o porque de querer achar Daphne.

Micaela contratou um detetive particular especialista em encontrar pessoas. Ele logo encontrou onde Daphne estava morando. Micaela foi sem saber o que falaria, mas ela sabia que independente do resultado o encontro tinha que ocorrer. Bateu na porta com medo de encarar a cicatriz que tanto mexia com ela.

-Pois não? - uma moça abriu a porta sorridente contudo cautelosa ao mesmo tempo.

-Gostaria de falar com a Daphne por favor. -Disse Micaela sem jeito.

-Sou eu mesma. -respondeu a moça sorrindo.

Micaela estava em choque. A moça a sua frente que dizia ser Daphne não tinha nenhuma cicatriz no rosto e tinha o sorriso de quem não carregava trauma.

-E a cicatriz do seu rosto? -disse Micaela quase sussurrando.

-Que cicatriz? - respondeu Daphne confusa lhe encarando com muita atenção. Foi quando a reconheceu. - Micaela?

-Eu sinto muito por ter machucado seu rosto. Não era minha intenção. Me perdoe. - disse logo o que queria ter dito há muito tempo.

Daphne por um momento não sabia o que dizer. Era óbvio que ela não esperava esse encontro com o passado. Ela parecia está escolhendo as palavras.

-Olha, eu tenho que me desculpar também. Não devia ter batido sua cabeça no espelho. - disse Daphne e Micaela se lembrou do barulho do espelho e das suas memórias confusas.

-Mas o corte no rosto não deixou cicatriz? -aquilo ainda incomodava Micaela, pois lembrava das vezes que viu Daphne em vários lugares. Em todos ela estava com a cicatriz bem aparente.

-Não. Foi superficial. Em duas semanas não tinha mais marca nenhuma.

-Que bom. Eu... fiquei me culpando achando que tinha ficado cicatriz. Sinto muito mesmo.

-Está tudo certo, Micaela. Éramos adolescentes na época. Adolescentes fazem besteiras. E como disse também não foi legal da minha parte bater tua cabeça.

-Está tudo certo mesmo? Sem rancor?

-Está. Deixe o passado no passado. Além disso, se isso não tivesse ocorrido não teria me mudado de cidade e conhecido meu marido.

Elas ainda conversavam mais um pouco até que se despediram de forma gentil. Enquanto voltava para o carro Micaela viu a figura com a cicatriz do outro lado da rua. Micaela ficou lhe encarando por um tempo até que logo sentiu que aquela figura lentamente sumia dentro de si. O inesperado perdão parecia ter a mandado embora. Finalmente em paz com o passado sorriu enquanto fechava a porta do carro.

Ana Carol Machado
Enviado por Ana Carol Machado em 18/06/2020
Reeditado em 20/06/2020
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