Dorinha e seu ursinho
Fez para o seu querido ursinho uma capa de super-herói usando um pedaço da sua blusa. Sabia que sua mãe não iria gostar, mas achava que o seu amiguinho merecia. Ele era um bichinho muito especial. Sua mãe lhe disse que ele lutava contra os monstros que se escondiam debaixo da cama e seres dos pesadelos. Com a capa ele ficava ainda com mais cara de herói.
No dia seguinte seria o dia de levar brinquedo para a escola e ela queria que o bichinho estivesse bonito. Depois de amarrar o pedaço de tecido que simulava a capa foi para a cama aguardando sua mãe. Toda noite ela vinha lhe contar uma história.
Sua mãe entrou no quarto um pouco depois com um grande sorriso no rosto. A face da mulher sempre se iluminava ao ver a pequena filha.
-Que história quer ouvir hoje, Dorinha?
Dorinha olhou para sua estante e pensou. Depois de um tempo decidiu que queria que a mãe lesse a história do Pinóquio. Enquanto a leitura ocorria a mente da menina trabalhava para criar as imagens. O sono foi chegando aos poucos até que seus olhos começaram a querer se fechar.
-Boa noite, querida. Acho que por hoje chega de histórias.- disse sua mãe que parecia está mais cansada do que ela. Mesmo pequena a menina notava o cansaço por trás do sorriso.
-Boa noite, mamãe.
Sua mãe lhe deu um beijo e se direcionou para a saída. Ia fechar os olhos pensando que tinha escapada do provável castigo quando ouviu a voz da mãe dizendo:
-Acho que conheço essa estampa. Amanhã falamos sobre isso.- disse apontando a capa do ursinho.
Dorinha estava com tanto sono que dormiu pensando que no outro dia tudo se resolveria com calma.
Acordou atrasada assim como seus pais, todos dormiram demais. Na correria para chegar a tempo acabou esquecendo seu amiguinho em cima da cama. Sabia que seus pais não iam querer voltar para buscar. Ficou o dia todo meio triste vendo seus coleguinhas brincando com seus brinquedos favoritos. Logo chegou o momento de voltar para casa.
Seus amigos foram embora, as crianças que vão de transporte escolar também e logo ficou apenas ela e algumas poucas crianças. Seus pais estavam demorando. Na primeira meia-hora não se importou, as vezes isso ocorria. Mas conforme o tempo passava foi nascendo uma vontade de chorar. Daquelas que começa bem devagarzinho. As tias da escola estavam tentando a distrair enquanto ligavam para os pais dela.
Seus olhos molhados estavam fixos no portão por isso foi a primeira a ver uma linda moça que entrava.
-Vim buscar a Dora. A mãe dela me mandou. Já fui babá dela.- disse a mulher sorrindo gentilmente. Naquele momento a garotinha a achou semelhante a fada azul da história do Pinóquio que tinha lido. Ao olhar novamente notou que não era apenas semelhante era idêntica. Era como se a ilustração do livro tivesse assumido a forma de uma mulher.
Ela estava com o mesmo vestido azul, tinha os mesmo cabelos encaracolados da figura do livro e o mesmo sorriso que fez o boneco Pinóquio acredita que poderia ser um menino de verdade. Apenas não tinha asas, mas Dorinha achava que fadas não ficam mostrando suas asas por aí.
As tias a olharam fixamente e uma disse que ia ligar para a mãe. O celular chamou sem nenhuma resposta. Tentaram de novo e o tempo foi passando.Tentaram para o pai. Dorinha sabia que seria ainda mais difícil ele atender. Ocorreu a mesma coisa que na ligação para a mãe.
-Você conhece mesmo essa moça, Dora? Ela já foi sua babá mesmoo?- perguntou uma das professoras que ela chamava carinhosamente de tia. Apesar da gentileza era possível notar que ela estava com pressa para ir para a sua casa.
A menina não conhecia a moça. Tinha tido várias babás, mas sabia que essa não era uma delas. Mas sentia que podia confiar nela. Fadas não costumam mentir e por causa disso falou para suas professoras que conhecia a moça, confirmando a história. Após suas palavras que soaram com tanta sinceridade sua saída foi liberada.
- Que olhos bonitos você tem. É uma garotinha muito linda. - disse apertando suas bochechas um pouco forte demais. Naquele momento teve uma sensação estranha e uma parte dela dizia que não era para ela ir com a mulher, mas estava meio tarde para voltar.
-Aceita um doce? - ofereceu a moça quando já estavam dentro do carro. A menina tentou dizer que não, pois se lembrava do que seus pais sempre lhe falavam, porém parecia que aquela mulher exercia uma força misteriosa sobre ela. Tanto que quando a menina percebeu já havia estendido a mão para o bombom.
-Está muito bom.- comentou a menina com uma voz que vinha dela mas que não parecia ser dela.
-Fui eu mesma que fiz. Pegue mais um. - dessa vez Dorinha foi ainda mais rápida em aceitar. Comeu com gosto, mas nem bem terminou começou a sentir um pouco de sono. Antes de dormir ainda ouviu a voz da moça dizer:
-Durma, princesinha.
Acordou em uma cama e a primeira coisa que notou foi que aquele não era o seu quarto. Tudo tinha um cheiro de mofo, até os lenços que apesar de limpos aparentavam serem velhos. Ao levantar notou que estava sem uma de suas sapatilhas. Preferiu ficar descalça, não conseguiria andar somente com um calçado. Sentia que talvez logo tivesse que correr, pois era como se todo o ambiente lhe mandasse fugir rápido.
Esfregou os olhos querendo acordar. Aquilo devia ser um pesadelo. Como os que ela tinha em noites de tempestade. Queria poder correr para o quarto de seus pais como fazia nessas noites em que tinha medo.
Pensou que logo acordaria e descobriria que ainda estava no seu quarto. Mordeu os lábios para não chorar. Não conseguiu segurar o grito ao ver um pote de vidro com o que parecia ser um bebê ou uma boneca gelatinosa dentro. O pequeno ser flutuava em um líquido.
-Vejo que já conheceu a minha primeira Maria.- disse a moça entrando no quarto e acariciando o porte de vidro. Ela não parecia mais tão amigável, apesar de ainda ter o seu sorriso intenso. Aquela aparência de fada de livro infantil começou a se modificar. A face dela começou a derreter e escorrer formando pequenas poças de um líquido viscoso no chão. O pânico não permitia que a pequena menina corresse ou gritasse. O rosto de Dorinha era puro horror.
Depois de quase todo seu rosto ter escorrido como cera, ela limpou o que sobrou com o avental. A nova pele que surgiu era amarelada e com aspecto um pouco esponjoso. O sorriso estava ainda mais intenso, pois os lábios rosados dela tinham ido embora. Era possível ver somente gengivas e dentes em um sorriso perpetuo.
-Que belos olhos você tem.- o elogio falado por aquela face e naquele lugar soava como se fosse ameaça. Imagens assustadoras começaram a se formar na sua mente. Ao olhar para o pote começou a ver seus olhos flutuando no líquido. Piscou os olhos e a imagem continuava lá. E logo mais olhos começaram a surgir dentro do recipiente. De forma semelhante a bolhas de sabão fazendo um barulho alto de quando elas estouram.
Algo estava errado... Aquelas imagens não vieram da sua imaginação. Aquela casa estava brincando com a mente dela.
“Não é real. Não é real.”- repetiu para si mesma fechando os olhos. Da mesma forma que fazia quando ficava com medo de alguma coisa que acreditava se esconder no seu guarda-roupa. Queria que o seu ursinho estivesse por perto, ele poderia lhe ajudar.
Ao abri-los novamente os olhos tinham sumido do pote, porém o bebê gelatinoso continuava. Sabia que tinha que vestir sua capa invisível de coragem e encontrar uma saída daquele lugar estranho. Deixaria para ter medo quando estivesse na segurança do seu quarto, da sua casa. Olhou ao redor e não viu nada que pudesse lhe ajudar. O sorriso intimidador continuava lhe encarando, dessa vez com um ar de crueldade. Como se dissesse que não tinha saída.
Um barulho seco invadiu o local.
-Acho que minha outra Maria está chamando.- disse a mulher assustadora agarrando o seu braço de forma repentina. Dorinha tentou se soltar, mas ela era mais forte que ela e foi a arrastando por um corredor com cheiro sufocante. A mulher chutou uma porta que logo se abriu revelando um quarto com papel de parede rosa descascando.
-Maria essa é a Maria. – disse a mulher colocando Dorinha de frente para a menina estranha que tomava chá com bichinhos de pelúcia remendados e com a espuma saindo. Os brinquedos estavam sem os olhos ou com olhos a mais costurados ao longo do corpo. O líquido que estava dentro do bule de brinquedo e que era servido nas pequenas xícaras era semelhante ao que tinha dentro do pote de vidro e a medida que ia sendo derramado ia escurecendo e virando sangue. Aquela visão lhe deixou tonta. Morria de medo de sangue. Sentiu a visão ficar turvar.
-Olá, Maria.- disse a menina se virando e sorrindo de forma assustadora. Naquele momento foi como se não lembrasse mais o porque de está naquele lugar e qual era seu nome de verdade. – Se sente para tomar uma xícara de chá.
Cada célula do seu corpo lutava contra aquela ordem, mesmo que sentisse a casa querendo exercer a força sobre ela, Dorinha conseguiu ser mais forte. Sua aversão a sangue a ajudou a ter forças para correr porta a fora. Ouviu risadas logo atrás dela. Como se fosse isso que a mulher estranha e a garota esperassem que ela fizesse.
Viu-se diante de um corredor escuro com várias portas.
-Como é seu nome?- uma voz sussurrou no seu ouvido. Parecia vim de dentro e ao mesmo tempo de fora. Era como se a casa zombasse dela de dentro da sua mente. E o mais assustador era que o seu nome não vinha a sua memória. Sabia que ele estava escondido em algum lugar, porém não conseguia vim a sua boca.
-Seu nome... Qual seu nome?- quando mais a voz perguntava mais sentia sua mente embaralhar e o desespero apertar sua garganta que não conseguia emitir nenhum som que fosse.
Foi abrindo uma porta atrás da outra na esperança de encontrar a saída, mas a cada porta se via novamente de volta ao quarto com a mulher e a garota. Depois de perder as contas de quantas portas abriu caiu de joelhos totalmente cansada. As figuras a sua frente lhe encaravam com ironia.
-Eu quero ir para casa.- disse finalmente deixando as lágrimas molharem o seu rosto.
-Você já está em casa, Maria. Não lembra disso?
-Aqui não é minha casa e esse não é o meu nome.
-Você está cansada, por isso está falando essas coisas. Porque não me deixa lhe colocar para dormir?- perguntou a mulher tentando se aproximar dela. A garota sabia que se ela dormisse naquela casa seria o fim. Quando despertasse não se lembraria de mais nada e terminaria como a menina tomando chá com os bichinhos bizarros.
-Fique longe de mim.- disse recuando alguns passos. Mas ao invés de sentir a parede na sua costa sentiu alguma superfície mole. Gritou ao olhar para trás e ver um clone da mulher assustadora. Que se aproveitou da sua surpresa para lhe agarrar com seus braços gelados como o esquecimento.
-Então como é o seu nome? Se me falar o seu nome me convenço de que talvez tenha pego a menina errada e não a minha Maria. Se esse for o caso pode voltar para sua suposta casa.
-Não acredito em você.
-Lhe dou minha palavra, pequena Maria. – Falaram as três criaturas ao mesmo tempo e no tom delas soube que não tinha a menor chance de se lembrar do seu nome. – Mas terá apenas três chances.
Um momento de silêncio se seguiu após isso. Naquela ausência de palavras sentia o clima ficar mais pesado. Seria tudo ou nada.
-Qual o seu nome?- perguntou a menina ainda sentada na sua estranha mesa de chá.
Esforçou-se para lembrar. Imagens borradas até surgiram na sua mente, de pessoas que sabia que amava, mas que não lembrava nome e nem rosto. Elas a chamavam por um nome que não conseguia compreender, pois era como se falassem em outra língua.
-Não entendo o meu nome.- acabou falando em voz alta o que disse para si. Percebeu em desespero que perdeu uma das suas preciosas chances.
-Dois. Qual o seu nome?- perguntou o clone da mulher.
Ficou em silêncio, se esforçando para lembrar. Não queria desperdiçar mais essa chance. Seus pés começaram a bater de forma involuntária no chão devido ao nervoso. Olhou ao redor em um último esforço. Pensando que talvez algum desses objetos lhe fizesse lembrar. Olhou na direção dos ursinhos de pelúcias remendados e notou um que não combinava com o ambiente. Ele estava novo e tinha até uma capa feita de tecido.
Aquele objeto lhe era semelhante, mas não conseguia lembrar se era seu ou de alguma daquelas pessoas sem rosto das suas lembranças. Aqueles olhos fofos lhe encaravam e pareciam querer lhe dizer alguma coisa. Um nome.
“Ele vai lhe ajudar a vencer monstros”- a voz pareceu vim de dentro daquele olhar, de um dos rostos do seu passado.
-Seu tempo acabou. – disse a mulher má se aproximando ainda mais- Três. Qual o seu nome?
Começou a escorrer um suor frio que se misturava com lágrimas. Sua mente chamava por nomes que não lhe diziam nada. O mesmo olhar do ursinho. Um nome sussurrado bem baixo dentro da sua mente. Em uma parte que a casa ainda não tinha conseguido alcançar.
-Dora.- repetiu aquele nome para si mesma, em voz alta sem reparar. Tremeu ao notar que usou sua última chance. Algo mudou, as paredes começaram a se dissolver assim como o teto. Os braços da criatura se afrouxaram ao redor dela. Sentia que a casa não queria lhe deixar ir, mas algo a obrigava a cumprir a promessa. Seu olhar se cruzou com o do ursinho e ela sussurrou um breve agradecimento.
Acordou assustada. Olhou ao redor e estava dormindo em um dos bancos da escolinha. Os detalhes do pesadelo iam se apagando. Seu ursinho de pelúcia especial estava bem perto dela, mesmo que Dorinha tivesse certeza que não tinha o trazido para a escola. Achou aquilo meio estranho, porém o abraçou muito aliviada. O carro de seus pais não demorou a chegar. Suas tias a levaram até o carro. Depois de tudo queria apenas ir para casa.
Eles se desculparam pelo atraso. Ainda se desculpavam quando pararam no semáforo perto de uma escola. Dorinha viu a fada falsa do pesadelo se aproximando da entrada do local. A criatura fez sinal de silêncio e se virou. Mesmo de costas Dorinha sabia que ela estava sorrindo enquanto ia buscar outra criança que tinha ficado até tarde esperando os pais lhe buscarem.
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Planejo algum dia escrever uma continuação para esse conto. Uma história mostrando a Dorinha (mais crescida) e seu ursinho tentando salvar outras crianças da moça misteriosa.