2006 - O Ódio
– Foi ela! Sei que foi ela. Era a voz da madrasta e pelo tom coisa grossa se preparava. Escondida na dispensa viu o pai, de tronco nu, vir de cinto na mão e ferocidade no olhar. Quando a agarrou por um braço o medo era tanto que não sentiu o castigo nem a urina a ensopar as meias. Depois disso sempre que o escutava escondia-se, sempre que via a mulher do pai morriam-lhe todos os sons na garganta e nenhuma palavra lhe vinha como defesa. Aprendeu a dissimular os seus actos, a viver por dentro e sempre desligada do que lhe diziam. Depois de algum tempo, quando se lhe acabou a paixão, o Pai começou a cobrar a comida salgada, a sopa insossa, as calças mal vincadas, a qualidade de tudo o que lhe era servido. E batia-lhe também. Ficou assim montado um trio de dor e ódio, de desamparo. Alegrava-se quando o pai batia na Dália e esta ria-se muito quando lhe tocavam a si as pancadas. Odiavam-se todos entre si. Quando nasceu o menino houve uma paz podre que durou pouco. A Dália era agora uma matrona desleixada, uma mãe pouco zelosa, uma mulher digna de dó. Um dia, o pai emagreceu muito, gritava com dores e morreu. Vestiram-se de preto para melhor viverem a sua libertação. Passado o nojo veio a avó buscá-la. Haveria de crescer como um animal bravio que todos rejeitaram.