A ave amarela
É estranho colocar nesses termos. Nikolai sempre esteve em minha cabeça. Literalmente, digo. A princípio, tratei o assunto com a doce indiferença da infância. Afinal era apenas uma brincadeira, uma voz para moldar e brincar enquanto as outras crianças me deixavam de lado; uma figura para me proteger enquanto meu irmão, sempre distante, só parecia interessar-se por garotas e guerras.
Somos fruto de uma família não tão pobre, logo era comum nos encontrar em trajes de 3a mão, ainda que alimentados e saudáveis. Meu irmão se destacava em meio à nossa condição pois simplesmente brilhava em todos os aspectos de sua personalidade e aparência. Os atributos da miséria vieram somente em meu sangue: fui um garotinho magro e calado, um ninguém de quem se desvia o olhar, detestável criança que facilmente amaldiçoava a companhia de qualquer um- a não ser, obviamente, a de Nikolai. Por tais rudezas, as crianças não tinham jeito comigo, ninguém queria ser visto conversando com tamanha aberração boçal.
Quão fácil esquecê-los... Nikolai sempre apoiava meus ideais e princípios, dos quais ele mesmo ajudava a construir. Contávamos tudo um ao outro, ele um tanto mais; me ensinava precocemente os termos, situações e mecanismos do mundo. Conforme ia me apegando àquela doce criação, perdia domínio sob ela. Até que meu amigo finalmente conseguiu se desprender das amarras da mente e atingir sua independência. Tornamo-nos um e meio, sempre oscilando a posse da razão. Mostrou-se um ser rude porém leal, sombrio mas permanentemente benéfico à nós. Nikolai era a mais perspicaz das invenções.
Certa vez, enquanto frequentava o colégio da cidade, um dos luxuosos bastardos da turma, Anthonie, pregou uma maldosa peça pública em mim. Iniciou por zombar de meu surrado casaco de inverno, chamando a atenção do restante das crianças durante o recreio. Acabou por apossar-se de minhas vestes, deixando apenas o mínimo possível para cobrir as intimidades, fez isso às gargalhadas, salivando. Após a intervenção da diretora, já em sala de aula, todos os estudantes se dirigiam à mim como poste de farrapos. Nikolai se debatia para honrar nosso ego.
Essa foi a primeira vez em que comandou a nossa pessoa. Arquitetou o plano ensinando-me, como verdadeiro mestre, a inestimável arte de estudar todas as aberrações e ajustá-las ao nosso bel prazer, semelhante ao que fazíamos com a solidão nos longuíneos dias da primeira infância.
O primeiro passo foi afanar um velho canivete de meu irmão, que à essa altura estaria em Londres, pronto para se casar. O segundo, consideravelmente nojento e odioso, foi colecionar tampões usados, que se encontravam aos montes nas lixeiras femininas do colégio. Para essa fatídica tarefa, era necessário esperar que todos os alunos voltassem para casa, vestir luvas de limpeza e procurar cuidadosamente pelo próximo quarto de hora. Ao fim de uma semana, havia um tampão para cada estudante de minha turma, exceto para um.
Na manhã em questão, levantamos dispostos e sem um mísero traço de temerosidade. Tudo iria correr como o esperado. Chegamos cerca de uma hora antes dos outros alunos, a fim de cumprir todos os preparativos. Aos fundos do colégio, não foi difícil encontrar um pequeno e destinado pássaro, amarelo com grandes e encantadores olhos. É doloroso relembrar a frieza fatal com que tivemos de esquartejá-lo. Para Nikolai, sempre foi uma digna causa. Assim, designamos cada parte do pobre animal ornamentada com o tampão para um respectivo estudante. A professora ficou com a cabeça, enquanto à mim, sobrou apenas um pedaço da pata. Deste modo, a sala exalava o odor podre de mil mortos. Saímos do cenário para voltar com os demais estudantes, às 7h.
Magnífico espetáculo! O espanto maior foi estampado na face amarelada de Anthonie, ao notar o velho canivete por entre seus livros. Ficou claro, assim, quem foi a maléfica e obscura figura responsável por tamanha atrocidade, afinal, não haviam pedaços cadavéricos nem sequer tampões em sua mesa, tudo estava limpo ali exceto pela lâmina. Foi o bastante. O esperto garotinho precisou tentar se explicar pelos próximos seis meses em seus novos aposentos dentro do hospital psiquiátrico da cidade -ao menos foi esse o tempo que levou para que fossemos notificados de seu lastimoso suicídio, concretizado na ala 47.
A partir deste trágico evento, Nikolai e eu fizemos o trato de jamais envolver sangue em nossos julgamentos novamente, tanto vivo quanto morto.
Me tornei então um estimável adulto, redator do mais influente jornal da cidade. Figura esguia, invejada e desejada. Todavia meus romances não se estendiam para além de uma única noite promíscua; Nikolai preferia a agressão enquanto eu saboreava da boa e velha sedução. Desistimos do consenso há um tempo, restando agora todos os demais frutos do sucesso.
Acontece, prezado leitor, que me encontro em verdadeiro tormento, qual navio à guisa do Bojador. Evito-o por medo e sobretudo por vergonha. Escrevo agora para que deixem-o livre e abonimem a mim, não Nikolai. De fato, jamais poderia sair impune dessa aventura descabida, e a dor que me corrói a alma não deverá chegar na infindável existência de minha criação.
No início do inverno, apresentou-se um jovem talento nas propriedades do jornal. Alexei, um rapaz belo e delicado, iniciaria um breve estágio como editor durante a temporada. Recém chegado de Moscou, possuía um humor zombeteiro que logo me aborreceu profundamente. Nikolai o enxergava como saboroso brinquedo. E tão breve ganhou atenção dos funcionários, criou uma intimidade para com eles que não seria nada promissora.
Dada manhã de rigorosa nevasca, escorreguei ao descer do bonde e acabei por rasgar meu maldito casaco de neve. Durante a reunião semanal do jornal, atravessado de ódio e frio, tentava estupidamente transparecer calma diante de tamanha exposição ao ridículo. E então Alexei apareceu.
“Eu não sabia que hoje teríamos festa à fantasia! Ótimo traje de lama adubada por sinal, senhor redator.” - todos riram da brincadeira.
Não pude suportar Nikolai dentro de mim, e, por mais que mudada a abordagem, soube que iríamos agir cruelmente com o pobre rapazola. Não era admissível que um ser tão inferior e fraco pudesse simplesmente zombar de mim, não novamente. Eu não era mais um simples e pobre estudante, e definitivamente não suportaria este tratamento. Era preciso investigar o inimigo desavisado.
Dias depois convidei Alexei para tomar café. Durante o encontro, algo me chamou atenção à respeito de sua aparência. Nikolai, louco para poder tomar as rédeas, era todo risos e luxúria, como se estivesse em frente de sua Vênus. Mas a impressão em mim era definitivamente outra.
Desenhei mentalmente seu nariz afiado enquanto me contava sobre sua família. Percebia e fitava o amarelo vívido e brilhante de seus cabelos que voavam. Alexei possuía grandes olhos inocentes e ao falar, assemelhava-se à uma robusta ave que se exibe à luz do meio dia.
Com sobressalto, entendi finalmente de quem se tratava. Era o pássaro. O passáro que viera me reclamar a vida perdida. A doce ave usada como vingança de meu ego. A sobremesa de Nikolai, cruelmente executada outrora para fazer justiça, agora na forma de um menino, cuja pulsação suculenta e doce voz seriam propícios para gozar de cada grito unânime entre presa e predador.
Agora, meu caro leitor, tremulo sob o peso da verdade. Nikolai deseja o seu sangue, e por ele me entregaria à mercê da carne. Jamais lhe privaria de qualquer capricho, me apaixonei por tão estupenda e insaciável entidade, e ainda assim terei de traí-la. Inocente de cada pecado, íntegro bem de toda minha vida! Não suportaria confessar-lhe o medo da ave, não poderia permitir que me desonrassem ao ínfimo título de assasinado… Terei de reinar sob minha própria morte. Meu doce e predileto, o Nêmesis de mim mesmo, precioso Nikolai, terá de encontrar um súdito mais forte, mais fiel, alguém cujo orgulho não possa ser maior que a própria loucura.