A anciã e o defunto
O Dr. Rubens é um renomado advogado na Capital. Sempre que pode, vai ao interior para rever os amigos, os ex-colegas de colégio. No final de semana, houve razão muito forte para ir. O motivo foi a posse de um ex-colega na função de pároco da cidade. Não tinha nenhuma festa, mas o importante era estar junto ao amigo, uma grande pessoa que somente trazia uma verdadeira paz espiritual, palavras sábias e mais do que nunca um genuíno benigno de infância.
A fatalidade não escolhe o tempo, nem mesmo o minuto por onde passa. Quando Dr. Rubens se preparava para a viagem, recebeu uma péssima notícia do falecimento do tio, que morava na cidade mais ao extremo do que a terra natal. Os dois não eram muito amigos, porém a distância da cidade natal do advogado era imensa e a família não estava em condições para a viagem. Então, na mais pura e simples fraternidade, ele se ofereceu para ir ao velório do familiar, contudo ficou triste de não estar ao lado do amigo na posse da paróquia. A caminho do aeroporto, onde fretaria um helicóptero, ligou para o amigo padre e explicou a razão do não comparecimento. A viagem seria muito cansativa. Teria que desembarcar na cidade próxima, fretar um táxi e viajar por mais uns cem quilômetros.
O padre compreendeu o motivo e lhe disse que em oportuno tempo os dois se veriam. Lembrou-lhe que o tio falecido tinha uma pequena rixa com os familiares do advogado. Neste momento, a oportunidade era para o perdão de tudo, principalmente as ofensas, do ódio, do mal entendido.
A tarde passava feito um raio. O calor era forte e dentro da aeronave, o ar condicionado facilitava tudo. O tempo foi rápido e no breve tempo, Dr. Rubens já estava na cidade. Era preciso pegar um táxi e assim o fez. Não demorou muito e já estava novamente na estrada. Parou em um posto de gasolina para o lanche e descanso. Foi curto. Pela sua conta, em menos de meia hora estaria na cidade. O plano era ir ao velório e depois seguiria para o hotel. Pernoitaria e acompanharia o enterro. Seria na parte da manhã. De lá, quando chegasse ao aeroporto, aproveitaria o helicóptero e seguiria para cidade natal. Daria para abraçar o amigo e ficar um pouco na cidade. Retornaria à capital por meio de ônibus.
Tudo caminhava bem, mas o caminho foi interrompido por causa da interdição do trânsito devido a um acidente. O táxi ficou parado por horas e somente chegaram à cidade do falecido já bem tarde. Pagou a corrida e despediu do motorista. Já era perto das onze horas da noite quando ele entrou no velório.
Assim que chegou, foi logo cumprimentando a viúva, os filhos, os netos, os amigos do defunto e algumas pessoas que ali estavam. Chegou à beira do caixão e contemplou o defunto. Lembrou de parte da infância dos dois. Foram separados ainda jovens, mas a figura do tio não lhe soava muito bem. O tio era muito brigão. Escaramuçava com todos. Não gostava muito da família e certa vez foram parar na justiça por coisa mínima. Na partilha dos bens, quando iniciou o inventário, fez inimizade com todos. Quebrou o braço de um, deu facada em outro, deu paulada na cabeça de outro e sempre estava medido em confusão. Foi embora para aquela cidade e não mais voltou. Quando molestava no leito de morte, pediu perdão por tudo e implorou a presença dos irmãos. Não foi possível, mas Dr. Rubens foi o escolhido para representar os irmãos do defundo. Não era tarefa difícil, mas o dever lhe prometia.
Cumprimentou a todos. Um a um. Tinha muita gente e logo as pessoas foram saindo. A madrugada chegava. Barulhos de trovões eram ouvidos. A tempestade aumentava e muitos foram embora. A viúva pediu para ele ficar ali, pois estava adoentada e os filhos iam partir. Voltariam ao amanhecer. Rubens sempre fazia favor a todos. Quando alguém lhe pedia, ele se esforça. No velho ditado que diz: Fazia da tripa o coração.
Foram todos embora. Restaram somente ele e o finado tio. A tempestade não veio, mas uma leve chuva caia lá fora. Rubens, já cansado, pegou uma cadeira maior e a colocou perto do caixão. Esticou os pés na cadeira, desapertou a gravata e ficou ali.
Contemplando o defunto, recordou de tudo de errado que o tio cometera. Batia nas irmãs, brigou por causa de herança, apropriou de terras que não lhe pertencia, deu pontapés, socos e mais. No íntimo ele pensou:
- É, meu tio. O senhor não foi nada bom. Foi um carrasco. Maltratou muita gente. Tirou sangue em minhas tias e até quebrou o braço de minha mãe. Será que o inferno vai lhe aceitar?
- O capeta deve estar esperando. Imagine (com ar de risos e rindo bem baixinho) ele lhe esperando com um grande garfo e lhe espetar no traseiro...
- Então ele farará: Este é para o braço quebrado de sua irmã, este é pela terra tomada do seu irmão...
Desta forma, Rubens foi falando tudo o que o tio cometeu na vida. Lembrou de todas as passagens vividas e até a saída definitiva dele para aquela cidade.
- Deve ter feito o mesmo aqui. Olha, não tem ninguém para tomar conta de você, somente eu.
- Lembra de quando você roubou as minhas galinhas e fez festa para seus amigos?
- O capeta vai cobrar isso. Lembra de quando bateu no Marcos, porque ele viu e disse que você furtou as vacas de minha avó. Você bateu muito nele. Hoje, ele é homem de Deus, vai tomar posse na paróquia.
- Estou morrendo de rir das contas que irá acertar.
Falando as expressões acima e mais coisas, Rubens foi esticando o corpo. O cansaço era imenso e não lhe restou cochilar por um bom período. Sonhou e viu o tio padecer nas garras do capeta. Ria, teve até crise de risos. Sonhou que o tio estava bem frio, muito gelado que mal podia locomover dali.
O tempo passou. Um cochilo de quase duas horas e Rubens estava prestes a acordar.
Por volta das quatro horas da madrugada, quando os galos ensaiavam a serenata, Rubens foi acordado com alguma coisa fria, bem fria, junto ao pescoço. Apavorado, não sabia o que era. Para ele, era a coisa mais gelada que o envolvia. Pensou a todo instante o pavor da revanche do tio falecido. O frio ia envolvendo todo o corpo. Uma voz trêmula dizia algo, mas o pavor, o medo da vingança do tio, por Rubens ter falado algumas palavras de desabafo, o envolvia mais. Não compreendia o que estava falando. O suor envolvia o rosto e o gelo aumentava mais a região do pescoço. Eram mãos que ali estavam. Pensou que o tio havia saído do caixão e estava tentando lhe enforcar.
- Pelo amor de Deus, perdoa-me pelo que eu disse. Não me mate, o capeta não vai lhe receber. Você foi uma boa pessoa e merece ser acolhido pelos anjos da glória. Por favor...
Não se sabe como Dr. Rubens calçou os sapatos e saiu derrubando cadeiras, abrindo as portas com rapidez e saindo correndo pelas ruas da cidade até que parou perto da praça. Lá estavam alguns policiais e logo Rubens disse o que havia acontecido. Imediatamente, um dos policiais acalmou o advogado e arrumou um táxi para levá-lo para outra cidade.
Com a estória contada por Rubens aos policiais, eles se dirigiram ao velório. Encontraram o caixão do defunto todo quieto e sem ninguém. Quando olharam para o canto, no fundo da sala, viram um anciã de mais de cem anos que ali estava. Ela contou que Rubens cochilava e estava quase caindo. Ela foi até ele. Ele não acordava. Então, resolveu chamá-lo pelo ouvido e apoiou as mãos no pescoço dele. Ele saiu correndo e quase a derrubou.