205 - Perdido
Via-os dali. Postos assim os olhos, a rua mostrava-se ao nível do asfalto e dos que passavam via as pernas do joelho para baixo. Tinha, na janela com gradeamento sujo, a entrada de ar que havia. Trincava de lado a broa dura e um naco de carne recuperado do balde que destinavam aos porcos. Fora uma sorte achar aquela cave abandonada e mudou o que foi possível para arranjar o canto onde dormia. Recolheu do lixo as coisas que usava e tinha particular cuidado em evitar restos de comida no espaço para não atrair os ratos. À noite fechava com um cartão a comunicação com a rua e acendia fogo no meio da cave. Morava ali há uns dias. Viera de uma sombra tão densa que não sabia quem era. Tudo nele eram instintos. Depois, aos poucos, retomou a lucidez, a capacidade de pensar e defendia-se agora melhor. Tinha medo dos outros, falava apenas consigo mesmo e parava onde persistia a noite na sua memória. Era um homem de cabelos e barbas longos, unhas negras, boca sem alguns dentes. Quando estava ali, via e lia o mundo pelas pernas, pelos detalhes do calçado, pelo tecido das calças, pela pele raspada das mulheres. Raras vezes escutava palavras mas uma vez soube da história de alguém que nunca voltou para casa. Pareceu-lhe que poderia ser ele o desaparecido mas ficou a tremer de medo por não ter a certeza. - Se a memória me voltar, regresso. Se ainda tardar, arranjo um cão.