204 - Irreverências
Ela era muito prendada e quis fazer-lhe a camisola de malha. Escolheram juntos a lã e o feitio com entrançados no peito e na manga direita. A partir daí, sempre que a usava sentia o peso dos olhos dos outros no que seria um defeito ou uma tolice. Irreverência seria, rebeldia, não-aceitação do certinho convencional e, ainda, uma contestação permanente ao senso comum. Os tempos eram de grande conformação social e ninguém sabia levantar a voz, atrair as atenções ou, sequer, pensar em ser avesso às regras. O Século XX estava condenado a ser de total rotura depois que Duchamp expôs “ A Fonte”, depois que Man Ray mostrou, como obras de arte, os seus ready-made. O mundo assistia ao sucesso dos loucos, ao abalar do que até aí eram regras imutáveis e todos, com maior ou menor esforço, reconheceram que a antiarte era ainda arte, que apenas o espírito avançara por lugares onde as coisas andavam mais livres pelos mesmos caminhos. Um dia Elizabeth Mileu protagonizou um ponto alto da Bienal de Cerveira. Apareceu primorosamente maquilhada, vestida de lilás num cenário muito belo magnificamente iluminado. E o povo aplaudiu. A seguir, evoluindo no espaço, raspando-se em vísceras de porco e peixe cru que metia à boca, sujando-se em pó negro foi até aos antípodas da beleza padrão. O cheiro agora terrível, ela estava rasgada, descabelada e suja e o todo deste fantástico trabalho deixou o público em silêncio. Como se, em choque, precisasse de parar para pensar. Por onde nos levam? Por onde quero ir?