Inocência Parte 1/5

09/07/2015

Escrevo essa carta enquanto ouço os passos e vozes ecoando pelos corredores. Preciso ser breve, as cadeiras e a mesa estão apoiadas contra a porta para evitar a entrada forçada, mas não serão o suficiente se descobrirem o que estou fazendo, posso não possuir outra oportunidade. Eles virão pela manhã e sei que essa será a única chance de provar minha inocência. Eles não entendem, mas sei que você entenderá. Meu nome é Mattiya Trauts, tenho vinte e cinco anos e vou contar minha história, para aquele que ler essa carta possa entender que estão todos errados, não sou o que pensam que sou, e que salvei aquela criança.

É sempre culpa dos pais eu imagino, ou é assim que sempre começa, nessa história não será diferente. Meu pai era um bom homem, grande e forte, como um pai deve ser. Trabalhava em uma serralheira e sempre trazia consigo o cheiro de madeira nova recém cortada. Muitas vezes nos presenteava com pequenas lascas e serragens em suas roupas, que me lembrava ainda mais da maravilhosa existência da natureza. Sua barba era escura, que apesar da idade, não perdia a forte cor negra, esta que intensificava ainda mais o verde de seus olhos, porém era espessa e malcuidada. O pouco cabelo que tinha já não escondia o formato oval da sua cabeça. Chegava tarde da noite após um longo dia de trabalho, que provinha roupas e alimentos á nossa família. Ele costumava dizer, “trabalho é o que engorda vocês, você e sua mãe”. Nunca foi um Homem de muitas palavras, mas do seu jeito, nos amava.

Minha mãe sempre foi uma mulher abatida, talvez pelo tempo ou pelas adversidades da vida, nunca foi o que poderíamos chamar de alta, a cada novo dia demonstrava suas tendências a se tornar uma velha senhora corcunda. Mesmo sendo mais nova que meu pai, já surgiam os primeiros sinais de uma velhice precoce, talvez pelas rugas em sua testa, ou pelas marcas de expressão ao redor de seus olhos escuros.

Sempre fomos uma família humilde, o dinheiro que meu pai recebia nunca era o suficiente para boas refeição, e dessa forma, dificilmente poderíamos possuir uma vida saudável. Minha mãe como mulher dedicada que era, vivia para cuidar do “lar”, jamais levantava a voz contra meu pai. Sempre foi uma típica dona de casa, pronta a servir e se dedicar a seu amado e generoso marido.

Em meio a essa vida sempre busquei ser uma criança comum, como todas as outras. Aos meus sete anos, meus cabelos eram curtos e castanho, tinha uma pele muito clara e não saía muito para brincar, não por opção é claro, vivíamos em uma casa bastante afastada o que impossibilitava qualquer possibilidade de interação com nossos vizinhos. Não vou mentir, sempre fomos uma família um pouco reclusa, que se constituiu assim, e com um pouco de sorte, assim deveria terminar.

É claro que isso era tudo que os outros podiam ver, tudo que era permitido que vissem, como em uma hipócrita fachada que diz “Teremos em breve aqui neste local um lar para aqueles que sonham com a casa própria, um lar seguro para seus filhos, tudo que você merece, graças a nosso generoso prefeito”. Palavras bonitas frequentemente usadas por algum burgês safado em campanhas eleitorais, mas caso algum ativista curioso ultrapassasse a fachada encontraria nesse “lar seguro” famílias vivendo em um verdadeiro inferno habitacional, neste caso, este ativista encontraria um menino encarniçado de cabelos castanhos com uma misteriosa falta de dentes, seus braços e pernas estariam cobertos de hematomas. Poderia encontrar também a mãe desse menino que por mais que soubesse de sua aparente falta de dentes e de seus misteriosos hematomas pelo corpo, nada fazia para entender, ou para impedir estes eventos estranhos e “misteriosos” de acontecerem.

Eu acredito, e imagino que você também, que nenhuma criança deveria viver assim, crianças são criaturinhas curiosas por natureza, gostam de sair, perguntar, bagunçar, e isso para muitos é normal, meu pai não compartilhava dessa filosofia, tinha sua própria forma de pensar e também de educar, formas como “cale a porra dessa sua boca e não faça barulho”, ou “Só vai aprender quando levar na cara”, mas crianças tem uma misteriosa dificuldade em aprender por esse método.

Minha curiosidade e minha dificuldade em aprender as lições do meu pai me renderam muitas surras. Você pode se perguntar, “Um puxão de orelha não mata ninguém”, mas não era tão simples assim. Meu pai possuía uma grande habilidade com ferramentas e um grande apego também, especialmente se tratando do martelo. Ele adorava aquele martelo, sempre o carregava preso a cintura para o caso de “ter que ensinar uma lição sobre obediência á alguém”.

Em muitas vezes fui “ensinado” pelo meu pai. Alguns vezes nas costelas, outras nos braços, até as costas fizeram parte das aulas. Tive meus dedos salvos graças aos cinco minutos de prorrogação do jogo de futebol.

Por muito tempo achei que minha mãe fosse surda ou tivesse algum problema de audição, ela nunca se manifestava sobre a metodologia do meu pai. Ainda lembro de uma das aulas, quando ele me dava uma lição sobre não deitar no sofá. Minha mãe que não se demorava quando era obrigada a me olhar, me fitou nos olhos, de uma maneira tão profunda que me fez entender que ela não era surda, escutava e entendia perfeitamente, mas simplesmente não se importava.

Para uma criança de sete anos que nunca havia vivido algo diferente toda essa vida era normal.

Por muito tempo vivi nesta casa, boas lembranças. Morávamos no ponto mais alto da montanha, com uma bela vista para nossa pequena cidade, ou para o abismo que a precedia, tudo dependia do ponto de vista. Em um bom dia, estando a favor do vento e se concentrando, era possível ouvir os sons distantes do comércio, dos pequenos festivais e até das grandes festas onde todos mantinham uma vida feliz e agradável, tão distante que minhas pequenas mãos, por mais que eu tentasse, jamais alcançavam.

Nossa casa não era muito diferente das que encontramos hoje em filmes do diretor James Wan. Isolada no topo de uma montanha e cercada por enormes pinheiros que nos acompanhavam por todo o caminho até a cidade. Sua estrutura era de madeira questionavelmente velha que rangia de forma assustadora a cada nova lufada de vento, que sempre abalava sua tão forte estrutura. Tínhamos dois quartos, sendo um meu e o outro dos meus pais. Claro que meu quarto se assemelhava mais a um estoque com cama, ainda hoje consigo sentir o cheiro de mofo e cerveja velha que se espalhava pelo chão. Nossa sala era pequena e fazia parte da cozinha, eram separadas apenas por um balcão de madeira que minha mãe herdara da minha avó. Muitas das coisas herdadas dela eram estranhas, um balcão de madeira para dividir cômodos, uma estátua de cachorro que se parecia muito com uma capivara, dentre outras coisas. A única herança que realmente me importava eram os talheres. Suas bordas eram ornamentadas com desenhos em espiral que nunca deixaram de me fascinar. Não tínhamos muitos quadros, e o papel de parede ja havia sido azul anos atrás, mas com o tempo se transformou em algo mais similar a cores encontradas em tocas de rato. Apenas duas das três lâmpadas da sala e da cozinha funcionavam, o que não fazia diferença alguma durante o dia, mas a noite gerava um breu assustador entre a sala e a cozinha, nem o cão “coragem” se aventuraria por lá.

Todos os dias nos reuníamos pela manhã para o dejejum. Uma prática que já não existe, mas se tratando da minha família, muitas coisas eram diferentes. Meu pai comia pão com ovo, as vezes acompanhado com presunto e raramente com alguma fatia de queijo, minha mãe preparava meu leite enquanto fazia o café. A comida não era abundante, então minha mãe e eu comíamos as fatias de pão que meu pai não comia, geralmente aquelas que ninguém quer, com casca dura que ficam no fim do pacote.

Sempre assistíamos ao jornal enquanto comíamos, em uma televisão velha sem controle e cheia de botões duros cobertos de poeira. A cada vez que ligava parecia que algo queimava dentro dela, e quando desligava emitia um som que se assemelhava a uma maquina de lavar no final da centrifugação. Já caia aos pedaços como uma múmia que persiste em viver na “nova era”. Durante as noticias da manhã eu não entendia muito o que o repórter com gel no cabelo falava, mas sabia que ele informava as pessoas sobre onde estava acontecendo uma guerra ou como andava a política, em algumas ocasiões também acertavam a previsão do tempo, mas eram raras essas vezes.

Mas o programa que meu pai gostava de assistir era o que passava depois do jornal, um de mecânica Auto motiva. Quando ele estava de bom humor me deixava assistir também, sempre me dizia as mesmas coisas “Os políticos desse país são todos safados e corruptos, não querem trabalhar como homens de verdade. Deveriam sujar um pouco as mãos de óleo, para variar”. Eu não entendia o que significava corrupto, e confesso que ainda hoje não devo entender, mas gostava muito de mecânica, acho logo na infância eu havia encontrado minha vocação.

Momentos como esse foram raros durante minha infância, momentos bons e agradáveis, como uma família deveria ter, pai e filho assistindo televisão enquanto a mãe prepara o almoço, mas é claro, além de raros eles não duravam muito. Mesmo gostando desses programas era impossível evitar as perguntas. O que eram Discos e pastilhas de freio, Pistão, quais eram os tipos de motores usados em veículos pequenos e grandes, o que era uma roda do tipo PDC 5/120. Mas como você ja sabe, a filosofia do meu pai era bem clara com relação a perguntas, não demorava muito para que eu me lembrasse disso. Depois de um tempo aprendi a prestar atenção nos homens da televisão e aprender, e o mais importante, fazer isso sem abrir a boca.

Durante o almoço não falávamos muito, meu pai era o único que almoçava, fazia questão de todos estarem presentes, comia uma montanha de arroz com algumas fatias de carne acompanhadas de duas ou três cervejas, em algumas ocasiões minha mãe ficava com o pouco que sobrava no prato e eu, com o que sobrava depois dela. Quando terminávamos, meu pai saía para trabalhar e minha mãe sentava no sofá para assistir televisão. Ela mudava para um canal em que uma mulher gritava para a plateia enquanto fazia outras pessoas discutirem e levantarem das cadeiras querendo brigar, o nome era “casos em famílias”, ou estou confundindo as datas? De qualquer forma, ela adorava o programa. Uma vez me disse que isso é que dava audiência, além do mais, quem não gosta de uma boa briga?

A pesar de ser criança, eu não era nenhum burro, lembro-me de uma vez em que perguntei por que ela não procurava essa mulher da TV para falar sobre o pai, ela não deveria gostar de não poder falar nada, era uma mulher adulta e com voz, assim como meu pai, não era justo ter que viver em silêncio. Posso não lembrar as exatas palavras, mas a resposta dela foi algo como, “Não fale bobagem, seu pai trabalha duro para sustentar você, só o que ele quer é que se comporte e não faça merda. Nunca pedimos para você nascer, o mínimo que podes fazer é ficar quieto e me deixar em paz”.

Durante as tardes em que meu pai trabalhava e minha mãe assistia, eu brincava com as coisas que encontrava em meu quarto. Fazia enormes castelos com garrafas de cerveja e usava as úmidas roupas azuis para fazer rios em volta desse castelo. As vezes ele ficava tão grande que podia me abrigar no centro, fingia que lá era meu reino, onde somente eu poderia ficar, que ninguém passaria pelas águas e rios, e que lá eu estaria a salvo de todo mal.

É engraçado dizer que aos meus sete anos eu nunca tinha ido á escola, sabia que existia e que lá eu iria aprender a ler e escrever. Meu pai dizia que isso não me daria nenhum futuro, que eu só ganharia dinheiro trabalhando e que estudar transformava as pessoas em vagabundas. Contava sempre que o dono da mercearia nunca tinha estudado e hoje tinha seu próprio negócio, ganhava muito dinheiro com ele. Mas o que meu pai não sabia era que o filho do dono não faltava a aula.

Durante o inicio de cada mês vivíamos bem. Sem marteladas e com comida na mesa, mas na medida em que os dias passavam meu pai mudava. Havia alguns meses em que ele dizia que estava “apertado”, e as marteladas eram mais frequentes.

- Por que a louça ainda esta aqui? - Martelada nas costas.

- Junte essas roupas do chão, quer ficar sem nenhuma? - Martelada nos braços.

- Mandei arrumar essa bagunça, não ouviu da primeira vez? Se a orelha não serve para escutar acho que não vai precisar dela.

Minha vida não era ruim, mas fiquei feliz quando as coisas mudaram.

Hayran
Enviado por Hayran em 09/06/2020
Código do texto: T6972166
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.