O Fantasma do Vale Wuñay - Parte I

O Fantasma do Vale de Wuñay

“Essa insegurança da vida, que é habitual e permanente nas campanhas, imprime, a meu parecer, no carácter argentino, certa resignação estoica para a morte violenta, que faz dela um dos acidentes inseparáveis da vida, uma maneira de morrer como qualquer outra”

-Domingo Sarmiento.

I

O aborígene que lhe servia de guia havia desaparecido, levando consigo as provisões necessárias em tão longa viagem em lugar quase inabitado. Encontrava-se sobre uma mula, sozinho, diante daquele vasto deserto tingindo por muitas tonalidades, do vermelho sangue até o amarelo, cercado pela serra que se erigia do solo como imponentes gigantes dorminhocos, alguns tão elevados que tinham neves eternas sobre suas cabeças. Lamentava-se Manuel Diez, funcionário a serviço do governo argentino, estatístico, responsável pelo primeiro censo que se realizaria no país.

E pensar que tudo aquilo havia lhe parecido ótima ideia. Alegrou-se quando lhe foi determinado que viajasse ao noroeste do país. Além de prestar um serviço ao futuro da nação, poderia escapar um pouco de Buenos Aires, onde uma terrível epidemia de febre amarela assolava a população. Deixou Buenos Aires, e em alguns dias estava em Santa Maria de La Luz, maior cidade da região, onde faria suas pesquisas. Despendeu alguns longos dias na cidade que já não era cidade: fora quase que totalmente destruída por um terremoto uns dez anos antes. Santa Maria de La Luz em nada agradava a Manuel Diez, exceto talvez pelo nome, que remetia a uma santa católica naquele lugar onde ainda se sobrepunha o paganismo1.

Melhor teria sido permanecer na cidade, em vez de, estupidamente, embrenhar-se em terras tão agrestes. Depois de pensar qual seria o melhor a se fazer, decidiu-se por seguir caminho, acreditando que mais cedo ou mais tarde dar-se-ia com algum povoado miserável.

Lentamente ia percorrendo as serras, vez ou outra aproximava-se imprudentemente de algum abismo, e se não fosse pelo instinto de sobrevivência que existia no animal que o transportava, morreria no primeiro perigo que o tortuoso caminho lhe apresentasse. Talvez pelo calor ou pela monotonia que a paisagem lhe inspirava, Manuel Diez estava em um estado quase sonâmbulo. Com o passar do tempo, e com o cansaço da difícil viagem, muitas daquelas formações rochosas pareciam-lhe em muito assemelhar-se a imagens grotescas, algo parecido quando alguém se deita sobre o chão e olhando o céu, decifra figuras nos contornos das nuvens. As montanhas provocavam-lhe arrepios, e, talvez, afetado pelo aspecto visual que o cenário lhe suscitava, passara também a escutar um ruído quase mudo, que lembrava o lamento de uma viúva que, chorando baixinho, jurava vingança pela morte do marido assassinado. Ainda era dia, e o sol banhava aquelas terras, quando a serra se bifurcou e surgiu um vale. O viajante percebeu que o vale tinha algo de vegetação, pequenos arbustos, um tipo de erva que desconhecia ocupava a quase tudo. Sentiu-se bem, sentiu-se acolhido pelo lugar, encheu-se de energia. Ao longe pôde divisar um pequeno povoado, não mais que um punhado de casebres que jaziam solitários no vale.

Continua na parte II.

1- Santa Maria de La Luz fora filha de um mouro e uma cristã de grande beleza, e quando sua mãe morreu, o perverso pai decidiu que se casaria com a própria filha, esta ainda mais bela que a mãe. Diante das muitas recusas que a filha fez a nefasta proposta do pai, o mouro , enfurecido, acabou por degolar a linda e casta Santa Maria de La Luz.

Esteban Donato Ardanuy
Enviado por Esteban Donato Ardanuy em 07/06/2020
Reeditado em 07/06/2020
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