O encontro precipitado dos seres

“Tudo o que vemos ou nos parece vermos não é mais do que um sonho dentro de outro sonho”.

Edgar Allan Poe

O caminho escuro e longo servia de rota de tráfico à noite e durante o dia era utilizado pelos agropecuaristas com seus tratores e caminhões. Nessa noite, entretanto o caminho estava deserto e silencioso. Apenas uma lua pálida e distante acompanhava o percurso da estrada que se estendia entre plantações de milho.

Porém, como não há silêncio que seja eterno, os ruídos de fundo começaram a surgir. Primeiro em forma de uma caminhonete que se aproxima em alta velocidade. Depois, como se acordados pelo barulho do motor e pela fumaça que se desprende do escapamento, começam os rumores da noite. Aves voam de algum arbusto à beira da estrada. Pequenos répteis aguçam o olfato, roedores levantam as orelhas. A caminhonete se aproxima como um incômodo despertador noturno.

Só uma figura não desperta porque nunca dormiu. O espantalho com suas roupas juninas e seu semblante redondo. Está levantado sobre uma estaca como um Cristo das plantações. Ao seu redor uma pequena clareira feita por aqueles que o puseram ali. Ele, talvez seja o maior de todos e lá do alto contempla indiferente os poucos pés de milho. Está de costas para o plantio e observando a estrada. Parece um general antigo à frente do seu exército perfilado.

O espantalho cumpria um destino de rei: ser sozinho e ser servido. Toda aquela vastidão de terra ao seu redor e tudo o que nela havia era tido como posse sua. No entanto, a altura, a cara hedionda e a secura do seu corpo reinavam apartadas.

O vento noturno do outono balançava as vestes esfarrapadas e punha areia nos olhos e galhos nas roupas encardidas. Se houvesse cólera em um corpo sem coração o espantalho transmitiria a quem o visse o furor do ódio. Mas, havia beleza na secura: a lua alta e dourada era a sua coroa. Afora isso, o farfalhar das incontáveis folhas e o zumbido da vida ao redor completava o seu império.

O reinado verde-pálido banhado pela luz da lua principiava a se mover. O milharal movimentava os braços acionados pela ação do vento. As longas e ásperas folhas se tocavam e tocavam a terra logo abaixo fazendo com que um séquito de pequenos seres acordasse também. Formigas, gafanhotos, abelhas e vespas despertavam do sono da natureza. E permaneciam, de início, silenciosos à espera de uma ordem ou da iminência do perigo. Ouviam, entretanto, a si mesmos e ao seu instinto. Também ouviram os ruídos humanos a que chamariam música alta e escapamento rachado, se pudessem falar.

O barulho aumentava e se aproximava aos solavancos pela estrada de chão batido. O espantalho e seu exército aguardava a aproximação da parafernália humana. Por fim, com fumaça e uma freada brusca a caminhonete parou. Lá dentro, um par de olhos vermelhos e respiração ofegante miravam a tela do celular. Os dedos gordos e curtos tentavam digitar números que se confundiam na pouca claridade do ambiente. Atrapalhou-se com o aparelho que caiu no assoalho do veículo. Praguejou. Esticou a mão ao lado do banco do carona e puxou, de um golpe só, o litro de cachaça. Levou-o à boca e bebeu como se bebe água. Depois parou, limpando os beiços na manga da camisa. Serenou por um instante e nesse instante olhou para fora.

O espantalho indiferente com seu peito estufado e seus olhos escuros como alguém que espia do fundo da noite. A boca do espantalho era um risco, um risco apenas, mas seu longo bigode e a vasta barba que derramava sobre o peito lembrava uma figura antiga e bíblica ditando o que pode e o que não pode ser feito. Estava olhando, pensou o homem, e olhar não é pecado. Ambos miravam um ao outro e se compreendiam na mais angustiante das compreensões: a solidão.

O homem resolveu descer do carro - acompanhado de sua garrafa quase vazia e de um revólver que retirou do porta-luvas - recostou-se à porta da caminhonete e alternava goles e cuspidas na terra vermelha.

Estava pensando que tinha deixado para trás alguém que havia lhe deixado para sempre. Pelo menos foi isso que ele entendeu do que foi lhe dito. Do que foi gritado a plenos pulmões ao portão de uma casinha qualquer. Nesse momento e sob o efeito da bebida poderia ouvir qualquer coisa, pensou. Qualquer coisa que viesse daquela boca tão amada. Mas o que ele ouviu, no silêncio premeditado da noite, não poderia vir de qualquer boca, de quem quer que fosse.

O chirriar estridente e de mau agouro de uma coruja que passou voando a dois palmos da sua alcoolizada cabeça e derrubou-lhe o boné. A ave sinistra ainda pousou sobre o chapéu escuro e nefasto do espantalho que com o peso pendeu a cabeça para o lado. A coruja voou novamente em diagonal e continuou soltando os lancinantes gritos de ave funesta. Com uma ira surda o homem tirou a arma da cintura e fez mira em círculo ao redor. Disparou dois tiros aleatoriamente. A coruja pousou com suas garras afiadas sobre o pescoço caído do espantalho. O homem fez mira e disparou repetidas vezes em direção à coruja que alçava voo.

Com a fumaça ainda saindo do cano quente, com o sangue exaltado pelo álcool e pela raiva a vista do homem vacilava em direção ao espantalho que agora se dependurava na estaca com apenas um braço. O outro balançava ao sabor do vento e parecia indicar e ordenar com sua mão de trapo a invasão de uma horda de seres.

Uma rajada de vento rebelde levantou completamente o braço do espantalho e derrubou outra vez o boné do homem. Ele ainda pensou em pegá-lo no chão vermelho, mas o buraco que havia no rosto do espantalho se assemelhava a uma boca cruel e sem dentes rindo sarcasticamente em sua direção. O homem se virou e entrou como uma flecha na caminhonete.

O espantalho caiu sentado ao pé da estaca no exato momento em que uma horda de seres chegava à clareira. Junto ao sereno da noite, à poeira da estrada e ao zumbido de todos os insetos o espantalho reinava, finalmente, sentado.

Sentado, e em velocidade, também estava o homem aos solavancos dentro da velha caminhonete. O suor descia-lhe pelo rosto e entrava pelos olhos. Ardia. Tinha uma mão no volante e a outra no revólver que começava a esfriar. Esqueceu, por um segundo, as dores de amor. E por mais dois segundos teve um medo abissal quando viu sobre o encosto do banco do carona uma corpulenta coruja marrom. A seguir nada mais viu, pois o carro entrou rápido e completamente dentro de um açude na beira da estrada.

make
Enviado por make em 06/06/2020
Código do texto: T6969581
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