A Beleza de Momo

I

O monstro se mudou para a casa ao lado no final de Abril.

Os Caldas viveram ali desde que Vânia podia se lembrar. Lukas, o filho único deles, tinha a mesma idade que ela, dez quando os Caldas se foram. Estudaram juntos por anos e eram mais ou menos amigos. Mais ou menos porque Lukas era apaixonado por insetos. Era a única coisa do que sabia falar. Ele os achava maravilhosos. Vânia não entendia como alguém pode achar lindo uma coisa assustadora quando simplesmente não é.

Quando os Caldas se mudaram, a menina sentiu mais falta da casa do que de Lukas. Era um casarão antigo, mas muito bonito. Ela não entendia porque eles decidiram se mudar para uma casa menor e alugar o casarão.

Poucas semanas depois, quando ela e seu irmão mais novo, Moacir, estavam indo para a escola de manhã, viram um Toyota Etios Cross amarelo parado no quintal do casarão dos Caldas. Quando voltaram ao meio-dia, viram o monstro regando o jardim. Ele não parecia um monstro, na verdade. Era um rapaz alto, parecia ter vinte anos, cabelo e sobrancelhas vermelhos, orelhas grandes e levemente pontudas, magro. Ele sorriu e acenou simpaticamente quando viu os irmãos o observando. Vânia acenou de volta e sorriu, Moacir ficou mais tímido.

Vânia, que em geral era muito esperta (contudo, para algumas coisas, nem tanto) perguntou para os pais quando o vizinho novo havia se mudado, mas eles não viram também. Com o passar dos dias, ela e Moacir se interessaram cada vez mais pelo vizinho. O monstro passava muito tempo cuidando do jardim, que estava ficando maravilhoso. Um dia percebeu o interesse de Vânia, enquanto ela e o irmão brincavam no quintal.

– Crianças. – Chamou, com uma voz simpática. – Eu estou assando biscoitos, vocês querem?

Alguém poderia se perguntar como duas crianças de oito e dez anos, em pleno século XXI, entrariam na casa de um estranho assim. Não foi por falta de instrução dos pais, pelo contrário. Às vezes a superproteção tem o efeito oposto ao esperado. Acontece que Moacir tinha uma doença grave que Vânia não sabia bem o que era, mas fazia com que os pais ficassem de olho nos dois (especialmente no Moacir) o tempo todo (ou quase). Eles nunca podiam sair do quintal de casa, por exemplo. E Vânia tinha que ficar sozinha quando Moacir piorava, sendo internado ou ficando de cama. Assim, eles aproveitavam qualquer oportunidade que tinham para sair da supervisão dos pais. Ainda que não fosse esse o caso, as coisas não teriam sido muito diferentes. O monstro daria outro jeito.

O vizinho deu para as crianças biscoitos e suco de laranja bem gelado, servido em grandes jarras de vidro. Ele era muito divertido. As crianças riam o tempo todo das suas histórias, e elas nunca acabavam. Por isso, as visitas se repetiram nos próximos dias, toda vez que eles podiam escapar da vigilância dos pais. O monstro sempre tinha muita comida, muita bebida e muitas histórias.

Demorou algum tempo para os meninos ouvirem sobre os desaparecimentos de crianças na região. Foram poucas, e com um bom espaço de tempo entre elas. Mas como a tendência das fofocas é aumentar as coisas, logo os pais começaram a ficar preocupados. Assim, as visitas à casa do monstro foram se tornando cada vez mais difíceis. A polícia se negava a alimentar os boatos de que havia algum tipo de psicopata na cidade. O número de crianças desaparecidas naquele ano não era muito maior do que a estatística do ano anterior. Ainda assim, pais superprotetores, em geral, não ouvem a razão.

No final de novembro, Moacir piorou de repente. Ele passou dois ou três dias no hospital, então voltou para casa. Os pais estavam arrasados, como se ele já estivesse morto. Ele ficou mais dois dias de cama. Vânia ficou se perguntando por que eles o mandaram de volta para casa se ainda não estava melhor. Ela aproveitou que os pais estavam concentrados no irmão para fugir para a casa do monstro, a quem perguntou o que ele achava, mas ele também não sabia explicar.

Então Moacir desapareceu. Quando Vânia acordou cedo e foi dar bom dia para o irmão na sua cama, como sempre fazia quando ele estava doente, ele não estava lá. Por um instante pensou que ele tinha morrido durante a madrugada e havia sido levado, mas quando os pais souberam, ficaram histéricos. Ligaram para a polícia, começaram a gritar o nome de Moacir, e a gritar um com o outro. A polícia veio e fez algumas perguntas. Vânia não queria falar sobre o vizinho, mas quando olhou pela janela para a casa dele, seu coração gelou. O Toyota Etios Cross amarelo não estava lá, e ele NUNCA saia de lá.

De fato, o vizinho havia desaparecido junto com todas as suas coisas, tão misteriosamente como quando chegou. A polícia investigou a casa, mas não havia qualquer pista.

II

Depois que Moacir desapareceu, os pais, estranhamente, diminuíram sua proteção sufocante sobre Vânia. Das milhares de explicações para esse fenômeno que ela foi bolando durante a adolescência, a que mais fazia sentido era que eles se sentiram fracassados como pais e decidiram simplesmente desistir. Também desistiram do casamento, pouco tempo depois.

O ponto de virada na vida da moça foi quando, voltando da escola no ônibus, já no último ano do Ensino Médio, viu aquilo pela janela. Ela estava vivendo em outra cidade com a mãe. Foi um daqueles pequenos incidentes que mudam vidas e a gente finge que foram escolhas nossas. Lá estava o Toyota Etios Cross amarelo, em frente a outro casarão antigo, com um belo jardim.

Imediatamente ela fez sinal, desceu do ônibus e foi até o velho casarão. Como ela podia ter certeza que aquele era exatamente o carro certo? Quando se aproximou e olhou por cima do baixo muro da casa (ela nem precisava se esticar), reconheceu a placa: PAN-6951, da cidade Neverland.

Seu corpo todo ficou esquisito. O que você faz quando espera anos por uma batalha e ela está prestes a acontecer? Como agir a seguir? Pensou em chamar a polícia, mas não havia qualquer prova contra o vizinho, de modo que isso só o alertaria a fugir misteriosamente como antes. Ela precisava entrar e achar alguma coisa.

A porta da casa se abriu, ela se escondeu do outro lado da rua. Providencialmente, o monstro saiu. Ele parecia tão jovem e tão bonito como antes. Desceu a rua, desapareceu na esquina. Deixou o portão aberto. Ela entrou, a porta da casa também estava aberta. Ele sempre fora muito distraído, nada de anormal.

Essa nova casa era tão bonita quanto a dos Caldas. Não havia muitos móveis, eram praticamente os mesmos que o monstro usava há anos, só que um pouco mais gastos. Ela vagou pela cozinha, a sala de estar, os muitos quartos. Tudo parecia horrivelmente normal, exceto pelo fato da casa parecer estar adaptada para vários moradores.

Finalmente, ela achou o porão. Tocou na maçaneta. A porta estava fechada, ea única fechada da casa, mas não trancada. Sentia como se todos os nervos vibrassem. Respirou fundo. Esperava encontrar corpos despedaçados, cabeças arrancadas, sangue por toda parte. Mas o que encontrou ao abrir a porta foi ainda pior.

As coisinhas olharam para ela, assustadas. Tinham cerca de um metro de altura. Eram bustos vivos de crianças, da cabeça até as costelas. Os cabelos longos, como se não fossem cortados há anos. O rosto muito magro, quase cadavérico. Os olhos sem pálpebras pareciam que iam saltar para fora da face. O nariz era pouco mais do que dois buracos no meio da cara. Algumas meninas tinham projetos de seios. Abaixo do que antes era o peito das crianças, duas grandes patas parecidas com a de uma galinha ou dinossauro, com cinco dedos e grandes garras afiadas. As crianças estavam todas vivas e respirando.

– Você continua boba como sempre. – Disse o monstro atrás dela, rindo. – Você acha que eu não vi o teu cabeção por cima do muro?

Vânia ficou paralisa. De um lado, as pequenas criaturas assustadoras. Do outro, o monstro. Ela esperava que ele a qualquer momento se transformasse em alguma criatura abominável, mas isso nunca aconteceu.

– Por que você está me olhando assim? – Disse ele, ainda em tom de deboche. – Sou eu, o Peter, você adorava conversar comigo!

– Você é um monstro!

– Eu não sou um monstro. – Respondeu, fingindo indignação.

– Claro que é! O que você fez com essas crianças?

– Eu não fiz nada de mal – Ele disse, calmo, e deu um passo para perto dela.

– Não se aproxime de mim!

– Calma, calma. Eu não vou te fazer nada...

– Como não? – Ela olhou novamente para as criaturas. – Você transformou essas crianças nessas... nessas... coisas! O que diabos é isso?

– Você não entende, Vânia? Se não fosse por mim, todas essas crianças estariam mortas.

– Como assim?

– Eu pego crianças em estado terminal e transformo nessas criaturas. Assim elas podem viver mais uns anos. Eu queria fazê-las voltar a ser crianças normais, mas não consigo. Isso é tudo o que consigo fazer. Então, quando elas estão prontas, eu as deixo partir. Elas não podem ser eternamente jovens como eu, mas podem viver mais um pouco. Olhe só.

Peter apontou para as criaturas. Uma delas veio andando, aproximou-se de Vânia. Tinha um longo cabelo negro e liso. Sua boca se abria em um largo sorriso sem dentes, os olhos pareceram se arregalar mais ainda. Era Moacir.

– Momo? – Vânia o chamou pelo apelido que só ela usava e o abraçou, chorando. Finalmente entendeu como alguém pode achar lindo uma coisa assustadora quando simplesmente não é.