TRILHA DE BAMBUS
Numa província do Rio de Janeiro, ano 1887
O dia lançava seus primeiros raios de sol sobre a cidade, quando uma carroça conduzida por um desconhecido adentrava pelas ruas centrais da praça. Sua chegada coincidia com a partida de um estrangeiro, um caçador mal sucedido em sua tarefa, e que jurara nunca mais retornar ao local. Os olhos dos transeuntes acompanhavam o trajeto de ambos, mas se concentraram naquele que chegava, não necessariamente por ser um estranho, mas por ser um estranho de pele negra.
Eles ainda não sabiam, mas o nome do condutor era Onofre. O vagão da carroça coberta era ocupado por sua esposa, Berenice, e sua filha Dandara, de doze anos, e dos poucos pertences que dispunham. Assim como o inglês que deixava o povoado, o rapaz também era um caçador, não renomado como o estrangeiro, mas que confiava plenamente em sua capacidade. Sua experiência com as armas viera com a participação na Guerra do Paraguai, empreitada na qual se voluntariara sob a promessa de alforria. Apesar das baixas expectativas sociais dos escravos no regresso das batalhas, Onofre conseguiu seu espaço vendendo suas habilidades apuradas para quem se dispusesse a pagar. E, apesar do sucesso que obtivera, a ponto de conseguir comprar a liberdade da esposa, ele também se orgulhava de ser letrado, pois aproveitara, ao longo da vida, toda e qualquer chance para aprender. Assim, seus anos de trabalho nas fazendas alternaram o uso tanto de enxadas, quanto de livros.
Onofre sacudiu as rédeas guiando o cavalo até um garoto de tez parda que tirava água de um poço artesiano.
- Bom dia. Por favor, o rapaz saberia indicar o caminho para a Fazenda Trilha de Bambus
- Desculpe, sinhô, mas não posso falar com vosmecê não.
- Como assim, rapaz? Eu só desejo uma informação. Estou seguindo para um trabalho para o qual fui contratado.
- Eu sei, sinhô. E eles também sabem.
O garoto empinou o queixo indicando a direção da praça, onde as pessoas que instantes antes ouviam o estrangeiro seguiam, naquele momento, em sua direção com feições pouco amistosas.
Onofre, diante da inusitada situação, sacou dois rifles, um em cada braço, apontou para a turba e falou em alto e bom som:
- Eu não tenho chumbo para todos, mas quero ver quem será o primeiro a se colocar no meu caminho.
Diante das palavras e, principalmente, da feição do estranho, as pessoas começaram a recuar.
- Foi o que pensei. E então, rapaz?
- Eles estão assustados, sinhô, todos estamos. Três caçadores foram mortos nessa madrugada. O único que restou dos estrangeiros acabou de ir embora.
- Não quero ser rude, rapaz, mas não tenho nada a ver com isso. Só preciso saber qual caminho seguir.
- Para além do coreto, o sinhô vai encontrar uma trilha de bambus dobrados em forma de arco. Basta seguir por esse caminho que o sinhozinho vai chegar naquele lugar maldito.
Mal terminou de falar, o rapaz correu para longe deixando de lado os baldes que enchia.
- Agradeço, garoto - disse o forasteiro, sacudindo o chapéu de palha no ar.
Com a informação, Onofre mais uma vez sacudiu as rédeas conduzindo a carroça na direção do local indicado pelo moleque. Não tardou para que chegasse até a trilha de bambus. O local era bonito, mas causava uma sensação de desconforto. Parecia que conforme adentravam pelo caminho, a trilha atrás deles ficava mais estreita. A despeito do trotar do cavalo e do atrito das rodas contra o solo irregular, não houve qualquer ruído durante a passagem, até mesmo o trio manteve-se em silêncio.
No final do percurso, o qual pareceu muito mais longo do que a distância parecia sugerir, eles chegaram a uma área descampada ladeada por uma densa floresta de árvores altas com galhos retorcidos e farta folhagem. Adiante, numa extensão coberta por um gramado verdejante, eles puderam descrever a fazenda que buscavam. A porteira já estava aberta e dois homens montados a cavalo os aguardavam.
- Bom dia - saudou Onofre, tendo como resposta apenas um aceno de cabeça por parte dos cavaleiros.
Os homens seguiram na frente, como numa escolta. A carroça cruzou rapidamente a trilha pavimentada que levava à casa grande, onde um homem alto trajado por um terno azul escuro e botinas de serviço lhes recebia de braços abertos. Sua pele de ébano reluzia sob o brilho do sol matinal.
- Bom dia, bom dia! Sejam bem-vindos à Fazenda Trilha de Bambus! Sou o Coronel Bastião Ferreira, seu criado.
Onofre e Berenice se entreolharam. Esse era o nome do contratante dos serviços, mas nem em sonhos eles poderiam imaginar que uma pessoa negra, como eles próprios, poderia ser o detentor de tamanha riqueza.
- Paulínia - gritou o fazendeiro - traga uma jarra de suco de graviola para o nosso convidado.
Uma jovem de cabelos alourados chegou com o pedido do patrão. Só então Onofre percebeu que os empregados da fazenda eram predominantemente brancos, incluindo os cavaleiros que os receberam. Ele já tinha ouvido falar sobre a cada vez maior presença da mão-de-obra imigrante europeia, mas ainda não tinha presenciado nada até então.
- Muito prazer, eu sou Onofre Pereira. Essa é Berenice, minha esposa. E a menina dormindo é a nossa filha, Dandara.
- Ora, rapaz, sei bem quem é vosmecê, e também a fama que o precede. Por isso o contratei.
- Genaro - chamou um dos cavaleiros - leve as coisas do pessoal para a casa de hóspede. Paulínia, leve as senhoras para um desjejum descente. As moças devem estar famintas por conta da viagem. Onofre, se me permite, antes de se juntar a elas para comer, poderia me conceder uns minutos da vossa atenção?
- Com certeza, senhor. Berenice, por favor, acorde a menina e acompanhe a senhora. Logo me junto a vocês.
Logo, ambas já estavam postadas na mesa preparada por Paulínia para a refeição, enquanto os homens discutiam alguns assuntos.
- Escute, Onofre, sei que tudo isso deve soar estranho para o sinhô, eu entendo. Vosmecê não deve ver muita gente como nós dando as ordens por aí. Essas terras pertenciam a uma senhora importante de nome Amélia. Eu era um dos escravos da fazenda, na lida, mas logo fui colocado nos serviços domésticos na casa grande. Com o falecimento do sinhô barão, eu fiquei muito próximo da viúva, se o sinhô me entende. E ela me fez forro, me deu a liberdade. E depois que ela morreu, deixou tudo para mim, já que não tinha filhos nem parentes próximos.
Onofre ouvia o relato atentamente.
- Aí que surgiu o problema, Onofre. Nem os homens bons, nem o governo municipal engoliram tal situação. Veja, eu sou atacado com frequência. Se eu morrer, o governo fica com as minhas terras, entende?
- Entendo, senhor, mas esse tipo de ação fere a legislação e, até onde sei, pessoas alforriadas têm direito a posses e...
- Eu sei, eu sei. A lei diz isso mesmo. Mas eles não fazem isso sob a luz do astro rei não, Onofre. Eles agem na calada da noite sob o pretexto de caçadas, eles chegam cada vez mais perto de mim. Sabe, Onofre, nas madrugadas existem coisas que caçam de tudo, não tem distinção não. Por isso vosmecê está aqui. Para caçar. Pra acaba com as ameaças. Para me proteger de tudo que se move da trilha de bambus para cá. Vosmecê aceita?
- Por isso estou aqui, senhor.
- Excelente! Vosmecê vai ficar umas semanas em teste, sendo bem sucedido terei uma proposta ainda melhor para lhe oferecer. Por enquanto, fique à vontade, todos os homens estão sob seu comando.
Mas, antes do fazendeiro se virar e entrar na casa grande, um dos peões o interrompeu com um sotaque italiano bem marcante, informando que o padre havia chegado.
- Padre? - Questionou o novo contratado.
- Sim, Onofre. Um dos nossos homens foi baleado e morto nessa madrugada. O padre está aqui para os procedimentos do funeral, não se preocupe.
Bastião seguiu apressado na companhia do italiano. Onofre achou por bem ver como estava a sua família.
Mais de três semanas transcorreram sem que nenhum problema de maior gravidade ocorresse nos domínios da Fazenda Trilha de Bambus. Onofre, plenamente adaptado, comandava os homens nas ações da fazenda. Sua esposa e filha desfrutavam das boas instalações da casa de hóspedes e usufruíam dos privilégios de uma boa vida. Mas, durante a patrulha um pouco antes do anoitecer, Onofre percebeu a presença de alguém na porteira principal da fazenda, defronte à trilha. Acelerando a montaria e de rifle na mão, tratou de interceptar o invasor.
- Parado aí.
- Boa tarde! É assim que recebe um amigo, apontando uma arma?
Onofre apertou os olhos contra a iluminação do pôr-do-sol e descreveu uma imagem familiar.
- Ademar? É você, Ademar?
- Sou eu sim, meu amigo.
Onofre desmontou do cavalo e abraçou o sujeito demonstrando uma afeição pouco perceptível em quem o conhecia.
- O que faz por aqui, rapaz?
- Vim para um serviço, mas quando fui informado de sua presença na região tive de vir até você antes.
- Serviço? Onde?
- Então, Onofre. Você é uma pessoa especial, salvou minha vida lá na guerra e eu prometi retribuir um dia. Escute, vai acontecer algo terrível essa noite e eu gostaria de te pedir para pegar Berenice e a menina e sair daqui sem olhar para trás.
- Ora, isso só pode ser brincadeira. Ademar, estou no melhor emprego que poderia sonhar, eu estou feliz, elas estão felizes, não posso largar isso agora.
- Onofre, as coisas não são como parecem. Há muita maldade nessa terra, coisas que eu jurava existir só em pesadelos. Estou a par de tudo acerca dessa região, fui contratado para ajudar a cidade, mas não quero que nenhum mal ocorra a vosmecê e sua família. Por isso te peço, vá embora. Ainda há tempo.
- Eu lhe receberia como a um irmão, mas você vem até minha casa para me pedir isso? Ora, Ademar. Eu que tenho que lhe pedir para ir embora e para não voltar com tais sandices. Vá embora, Ademar. Estou aqui para proteger a fazenda e não hesitarei, nem mesmo diante de alguém que tomava como um amigo.
Onofre montou em seu cavalo e saiu num galope acelerado de volta à fazenda, ao passo que Ademar também tomou assento em sua montaria, mas permaneceu por um tempo olhando para o vazio antes de seguir seu caminho.
- É uma pena, meu amigo. De verdade, uma pena.
O capataz da fazenda retornava para a patrulha, quando percebeu ao longe o patrão sinalizando para ele da varanda da casa grande.
- Onofre, venha aqui, meu filho. Preciso lhe perguntar uma coisa.
- Pois não, coronel.
- Escute, eu nunca tive filho, também não tenho parentes. Na verdade, desde que dei liberdade para o nossos irmãos daqui da fazenda, e eles foram embora, tive de contratar essa gente branca para a lida. Com isso, acho que vocês são a única família que tenho.
- Coronel...
- Não me interrompa, por favor, Onofre. Quero te fazer uma proposta. Você aceitaria ser o herdeiro do meu legado?
Os olhos de Onofre faiscaram. Ele vislumbrou a imensidão de riqueza que se oferecia ao alcance de suas mãos. Nunca mais teria de matar para colocar o pão na mesa de sua família.
- Aceito, senhor. Com honra, continuarei seu legado na nossa causa.
- Obrigado, Onofre. Quando te chamei perguntei se você era banto, como eu, como meus antepassados na Mãe África.
- Sim, senhor, eu...
- Estique o braço.
Bastão, com habilidade, fez um pequeno talho na pele de seu empregado, levando a lâmina rubra até a ponta da língua.
- Sim, somos do mesmo povo - sentenciou.
Onofre sentiu ojeriza com o que viu, mas a ambição selou seus lábios, os quais permaneceram calados até que o patrão ergueu uma taça e lhe ofereceu.
- O que é isso, senhor. Eu não bebo álcool...
- É apenas água, Onofre. Brinde comigo. Considere como um batismo.
O rapaz tomou o objeto nas mãos e sorveu o líquido gelado.
- Boa sorte, rapaz. Agora você está preparado para enfrentar a caçada que se avizinha. Que você tenha forças para subjugar o horror que os meus olhos cansados insistem em fugir.
Onofre nada disse.
A noite chegou, e com ela um plenilúnio esplendoroso, como há muito não se via no céu da cidade. O círculo amarelo e gordo esparramava sua luz melancólica e fria enquanto os habitantes da Trilha de Bambus se preparavam para o que quer que fosse acontecer naquela noite.
- Onofre, meu filho. Eu vou me trancar na casa grande, peça para a senhora Berenice e a sinhazinha Dandara fazerem o mesmo.
O rapaz observou Bastião ganhando as dependências da residência, mas não sem antes selar a soleira da porta com um rastro de pedras de sal. Olhando com mais atenção, ele percebeu que as portas e janelas exibiam o mesmo procedimento até onde sua vista alcançava.
- Faça o mesmo em sua casa, Onofre. E tranque as damas lá - completou Bastião antes de entrar, oferecendo um olhar legitimamente assustado.
O capataz foi até sua residência, ficou alguns instantes com a filha no quarto, deu um beijo na mulher e saiu. Mas, diferente do orientado, não se preocupou com o conselho acerca do rastro de sal.
Conforme a noite adentrava, os homens intensificavam as patrulhas em cada recanto da imensa propriedade. Os peões percorriam as trilhas em pares, ao passo que Onofre preferiu seguir sozinho até os limites da trilha de bambus, pois achava que rendia mais dessa maneira. O cavalo trotava lentamente, os pensamentos do rapaz voavam longe e ele já imaginava que nada de anormal viesse a acontecer naquela noite, afinal. Entretanto, de modo tão súbito quanto o arrepio que lhe percorreu a espinha, a sensação de um impacto nas costas o atingiu de forma tão abrupta a ponto de lhe lançar de encontro ao chão. A montaria saiu em disparada, deixando o homem entregue à própria sorte. A morte poderia chegar de diferentes formas.
Logo, uma agitação tomou conta de toda a Trilha de Bambus. Uma patrulha que rondava próximo ao riacho percebeu o cavalo em passo acelerado e correram em auxílio, no entanto, o que viram fez com que seus planos mudassem. Não havia mais tempo de socorro para ninguém, a não ser, talvez, para eles próprios.
Ambos sacudiram as rédeas e apertaram as esporas contra o dorso das montarias. Tiros foram disparados para o ar ao passo que um uivo alto, alongado e aterrador ecoou em todas as direções. Apressados, os cavaleiros da fazenda se juntaram defronte à casa grande, mas, ao contrário do esperado, eles seguiram com urgência até o estábulo e lá se trancaram, não sem antes um deles despejar um rastro de sal na entrada, enquanto os demais faziam o sinal da cruz.
O demônio galopava enfurecido pelo gramado da fazenda, levantando terra e inspirando o ar noturno. Ele seguiu até a entrada da casa grande e perscrutou as portas e as janelas, arranhou a madeiras envernizada arrancando lascas com o ato, mas não conseguiu adentrar, pois uma força desconhecida o impedia. Contrariado, ele rodeou a residência causando enorme aflição em todos no interior, mas sem conseguir uma única passagem livre. Resignada, a fera tratou de buscar um novo alvo e não tardou a encontrá-lo. Do alto, sua mãe, plena e amarela, parecia lhe guiar. O luar iluminava a entrada de uma nova oportunidade. A noite não lhe oferecia segredos. Seus olhos a tudo enxergava e seu olfato percebia o medo oriundo daquela casa.
A besta se pôs de pé, e, como um homem, caminhou até seu desejo. Um choro sofrido vinha do interior da casa, alimentando mais ainda a sanha e o apetite da criatura. Com as garras saltadas, ela deslizou lentamente os dedos na madeira da porta, torturando suas futuras vítimas. Não demorou para que percebesse que ali não havia nenhum impedimento e, com uma ínfima pressão, conseguiu vencer as trancas e adentrou pelo espaço.
Ele farejou o ar, percebendo suas presas. Pé ante pé, seguiu até a origem dos soluços contidos. Uma gosma esbranquiçada vertia farta de sua boca semiaberta, de onde duas fileiras de setas aguçadas e brancas aguardavam para retalhar o que se escondia do outro lado da porta do quarto.
- Não! Não! Por favor, vá embora. Socorro! - Berenice gritava em desespero, enquanto agarrava Dandara nos braços. Ambas desoladas e encolhidas num canto. Um armário, a cama e toda sorte de objetos escoravam a porta contra a fúria da criatura, do outro lado.
O demônio projetou o corpo contra a folha de madeira uma... duas vezes. Na terceira, a porta veio abaixo, oferecendo o prêmio desejado. Berenice se colocou na frente da filha. A fera saltou, mas não encontrou o alvo, pois um impacto o atingiu nas costas, despejando um veneno prateado em seu corpo.
Ademar, o amigo de Onofre, surgia no vão com um rifle nos braços.
- Berenice, vamos, tire a menina daí, rápido. Saiam daqui.
A mulher pegou a filha da melhor maneira que pôde, se postando por detrás do homem. Atordoada, a criatura se pôs de pé, balançando os braços para o inimigo.
- Hoje eu pago a minha promessa.
Ademar ergueu a arma e mirou entre os olhos do demônio. O disparo fez uma nova bala de prata se alojar no crânio da criatura, dessa vez pondo um fim em sua existência.
- Berenice, tire a menina daqui, por favor.
Mãe e filha se afastaram, dando o espaço solicitado por aquele que lhes trouxera a salvação. Ademar, decidido, sacou uma lâmina curva da cintura e, com um alguns golpes, decepou a cabeça da fera. Desmembrado, o corpo humano revelou a identidade daquele que era pai, esposo e amigo.
- Onofre, meu amigo, não era desse jeito que eu pretendia salvar a sua vida, mas, agora, sua alma está livre, sua família está a salvo e minha dívida está quitada.
O caçador deixou o aposento, apressado, encontrando aquelas a quem acabara de salvar no caminho.
- Não vá até lá, Berenice, é melhor. Venha comigo, isso ainda não acabou.
Do lado de fora, muitos caçadores, sob o comando de Ademar, aguardavam.
- Ricardo, proteja as senhoras. Zé Pedro, leve seu grupo até o estábulo. Mantenha aqueles homens lá. Os outros, venham comigo.
Ademar e os outros seguiram a pé até a entrada da casa grande.
- Tirem esse sal daí, depressa.
Mal o obstáculo foi retirado, a porta veio abaixo com Bastião projetando o corpo pelo vão. O fazendeiro caiu no chão, colocou-se de pé, mas logo foi para baixo mais uma vez, como se um grande impacto o tivesse atingido nas costas. Ele gritou em desespero.
- Esperem - ordenou Ademar.
Bastião arrancava a própria pele fazendo uso das unhas e dentes, cada vez maiores e incisivos. Pelos espessos e negros ocupavam rapidamente o espaço deixado pela pele dilacerada. Seus ossos se contorciam como uma marionete manipulada pelo inferno. Logo, um novo demônio mostrava sua face sob a luz do luar.
- Agora!
Os caçadores, de modo simultâneo, lançavam mão da carga de prata de seus rifles, não dando chance para qualquer tipo de ação da criatura que caiu abatida e sem vida no gramado. Mais uma vez, com a lâmina em punho, Ademar foi até o demônio caído para decapitá-lo. Em instantes, os traços de Bastião ficaram evidentes novamente.
- Homens, juntem os corpos e ateiem fogo.
Os empregados da casa grande apareceram na porta, e Paulínia acenou para Ademar, que retribuiu retirando o chapéu da cabeça. Logo, os peões que estavam no estábulo surgiram escoltados pelos caçadores. A madrugada lançava seus últimos suspiros sobre a Fazenda Trilha de Bambus.
- Ademar, por Nosso Senhor, onde está meu marido? Onde está Onofre?
- Berenice, pegue sua filha e vamos embora daqui. Vamos sair desse lugar amaldiçoado.
Um dos homens trazia o cavalo de Ademar atrelado a uma carroça. Mãe e filha tomaram assento e a carruagem rumou para a trilha que dava nome à fazenda.
- Escute, Berenice. Você sabe a resposta, só precisa aceitá-la. Seu marido salvou minha vida na guerra e eu havia jurado retribuir. Quando fui contratado para esse serviço, para acabar com a fera, não esperava encontrar com ele por aqui. Eu fiz o que pude para que ele fosse embora daqui, que levasse você e Dandara para longe da maldição que rodeia essa fazenda.
Berenice permanecia em silêncio, enquanto o caçador falava.
- A história dessa fazenda é antiga e longa. Pelo que os meus contratantes me disseram, o casal formado pelos antigos donos da fazenda numa tentativa de dominar todo o comércio de café nessas paragens fez um pacto com o inferno para tivessem êxito em seus anseios. Eles tiveram a ajuda, mas em contrapartida precisaram oferecer o único filho para os serviços do cão. Esse rapaz viria a se transformar num demônio sob a luz da lua cheia.
- Sua fazenda prosperou nos negócios locais, pois ninguém mais queria administrar plantações de café nas redondezas, visto que eram atacados e mortos pela fome da criatura. Ninguém ousava interferir, pois eles tinham excelente relação com o imperador, além de um considerável contingente armado. Mas o que mais lhes afligia era o receio de serem interpelados pelo cão em pessoa, ou por seu mensageiro. Assim, a cidade nada pôde fazer. Até que o filho, cansado da própria situação, tirou a própria vida, não sem antes levar o pai consigo. A improvável longevidade que lhes abraçava começou a ruir. A viúva tentou manter a essência do mal desposando um escravo, Bastião, e oferecendo-o ao inferno. Só que, ao que parece, ele se voltou contra ela, infligindo sua morte e herdando a Trilha de Bambus.
- Mas por qual motivo a cidade não investiu contra ele? - Quis saber Berenice.
- Porque isso tudo começou há muito tempo. A história se mesclou entre crendice e realidade. Ninguém poderia investir contra a fazenda em plena luz do dia. Alguns homens da cidade e políticos eventualmente contratavam milícias para tentar acabar com a suposta criatura e, assim, com a força do fazendeiro.
-Mas, o que o pobre do Onofre tem a ver com essa história toda?
- Isso só descobrimos recentemente, com a ajuda de Paulínia, a governante imigrante da fazenda. Ela superou o medo e nos contou tudo o que precisávamos saber. Bastião não queria ser o demônio. Ele conseguiu um jeito de transferir a maldição e manter suas regalias junto ao inferno, pois existem muitas maneiras de ser amaldiçoado com o legado. A mais simples é oferecê-lo a alguém com algum laço próximo. Bastião procurava ex-escravos com a mesma linhagem sanguínea que ele e simplesmente oferecia seu legado. A contraparte aceitava, tendo em mente alguma herança. Com seu marido, ele ainda ofereceu a água da fonte que a fera bebe, que é outra maneira de se tornar um monstro. Ele fez isso por décadas, sempre substituindo uma perda por outro escravo da lua. A despeito do original, nenhum desafortunado tinha consciência da própria situação. Tendo alguém para se transformar em seu lugar, Bastião conseguia manter sua forma humana, mas uma vez que não houvesse uma fera viva, o demônio tomaria seu corpo, como presenciamos.
- Mas isso é horrível, Ademar.
- A última criatura foi abatida por caçadores ingleses, vocês devem ter presenciado o enterro do infeliz.
Berenice ficou em silêncio. Seu coração sofria pelo triste destino do esposo. Sofria ainda mais pela filha que cresceria sem o pai. As lágrimas rolaram em filetes tristes por sobre seu rosto.
- Paulínia, mesmo ameaçada por Bastião, aproveitou-se de uma ida a cidade para fazer o seu relato, ainda que acompanhadas por homens do fazendeiro, os quais ele jurava que lhes eram fiéis, mas o medo falou mais alto. Meus caçadores e eu fomos contratados para por um fim nessa história de horror. E conseguimos.
- Mãe - chamou Dandara que até então não emitira uma só palavra e não despejara uma só lágrima.
- Sim, minha filha.
- Você se lembra que o pai antes de sair para a patrulha ontem foi se despedir de mim no meu quarto.
- Sim, Dandara, eu me lembro sim.
A carroça atravessava os limites da fazenda, deixando aquelas terras de dor para trás. O toque parco do luar, que até então se infiltrava tímido pelas frestas da vegetação, se expandia farto no descampado.
- Ele me disse que esperava um grande futuro para mim e que em breve eu herdaria tudo o que era dele. E me perguntou se eu estava feliz com isso. Então, eu disse que sim.
Não é possível afirmar se fora por conta do metabolismo acelerado da infância, mas a transformação fora tão imediata quanto o ataque e as mortes. Um novo demônio nascia naquele momento, mas, dessa vez, livre das amarras da Trilha de Bambus.