A hora do demônio
Henrique despertou e, ainda deitado, espremeu os olhos buscando desembaçar a visão. A garganta estava seca e com um travo, como se tivesse adormecido de boca escancarada. Beberia um garrafão de água naquele instante se pudesse.
Observou o relógio na cabeceira. Sinalizava 02h50. Saltou da cama languidamente e calçou os chinelos. No intuito de ir até a cozinha beber água.
Mirou a janela ao lado da cama. A noite silenciosa, estática, era açoitada apenas pelo coaxar de sapos nos arredores da casa. Seu quarto, apenas silhuetas escuras e insinuantes.
Ao pisar no chão as tábuas rangeram sob seus pés. Abriu a porta e adentrou ao corredor.
No recinto apenas a luz bruxuleante de uma vela, iluminando quase nada, o presenteava. Entregou-se a obscuridade com certo receio. Não costumava levantar de madrugada para chafurda na cozinha. Mas a garganta ressequida não podia esperar a alvorada.
Enquanto caminhava, tropegamente, avistou os contornos de uma sombra negra, que zarpou como se fosse em direção a cozinha.
Henrique soltou um grunhido e recuou: “Pai Amado, mais o que foi isso?”
O coração dele sobressaltou-se. Ficou ofegante pelo susto. Era possível sentir o “latejar” dos batimentos cardíacos nos ouvidos. Com a voz tremula e extremamente aguda proferiu:
"Pai, é o senhor que está na cozinha?"
O pai tinha, de fato, a mania de comer nas altas horas.
Apenas o silencio e a escuridão lhe responderam...
“Se não for o pai pode ser um ladrão, não posso voltar ao quarto, tenho que averiguar” Pensou.
Como se aquelas palavras mentais lhe injetassem uma dose de coragem, o rapaz catou uma guarda-chuvas fechado que repousava encostado na parede e em posição de ataque caminhou pelo corredor até a cozinha. O corredor estava com iluminação queimada, então a sua frente só dava para mirar os rabiscos das coisas.
Chegando no cozinha....
As pernas vergaram e um nó na garganta se formou quando percebeu que o local repousava solitariamente na escuridão. Aparentemente não havia ninguém ali. "Mas como?"
Arremessou pra longe a sombrinha e tateou nervosamente o interruptor. Achou. Acendeu a luz da cozinha e a mirou minuciosamente: estava, de fato, vazia, silenciosa e segura.
Inspirou prazerosamente e deu um gemido de satisfação. Com certeza fora algo da sua cabeça.
Soltou um risinho de canto da boca. Imaginou como aquela cena seria constrangedora se tivesse sido presenciado por alguém.
Tratou de tomar dois grandes copos de água bem gelada. Aproveitou que já estava ali e abriu a geladeira. Inclinou-se em direção ao seu interior.
Com a mão no queixo pensou por instantes no que levaria para beliscar no quarto e acabou por escolher um pote pequeno de iogurte e um pedaço de bolo de chocolate.
Antes que ele fechasse a geladeira escutou uma tábua ranger na sala escura. Quase derrubando a comida Henrique deu um salto virando-se para a outra direção: “Pai? Mãe? Oi?”
A luz da cozinha delineava, debilmente, os móveis da sala. O rapaz mirou tudo com cautela. Não havia nada fora do comum ali também. “Uau, hoje foi o dia dos sustos da madrugada” disse a si mesmo.
Com uma das mãos ocupada, e ainda voltado para sala, o rapaz empurrou a porta da geladeira com o pé. Fechando-a.
Cantarolando baixinho, desligou a luz da cozinha para zarpar rumo a seu quarto.
Antes que pudesse acessar o corredor novamente sentiu uma baforada quente no cangote. Os pelos eriçaram. Os olhos arregalaram e toda a comida foi ao chão fazendo grande barulho. O rapaz não conseguiu dar nem mais um passo.
Às suas costas uma voz gutural proferiu com autoridade “Henrique, não deveria estar fora de seu quarto agora. Essa é a nossa hora!!”
O rapaz, pálido, girou nos calcanhares e pode contemplar o dono daquele ruído estrondoso:
A escuridão delineava orbitas grandes que cintilavam em vermelho vivo. A criatura emanava muito calor. Era encorpada e muito alta. Duas vezes maior que um ser humano médio. O calor trazia consigo um odor.... Enxofre ao que parecia.
Ela levantou a mão em direção a Henrique. Como se ordenasse que ele não saísse do lugar. Mais não emitiu ruído algum dessa vez. O corpo parecida todo coberto com penas negras.
Henrique tentou gritar. Mas o som não saia. As pernas, que o sustentavam de pé, não obedeciam ao seu desejo de correr. Lágrimas brotaram-lhe dos olhos.
A criatura defronte dele observava calada o desespero estampado em suas expressões.
De repente, o ser ergueu a outra mão em direção a Henrique. E tudo ao seu redor do rapaz foi se embotando. As pernas fraquejaram e ameaçaram vergar mais uma vez.
Antes de apagar por completo, ele ainda pode contemplar os cantos da boca da criatura se partirem escancarando uma cavidade malcheirosa gigante com uma língua longa e bifurcada. Ciente que viraria refeição de um ser das trevas, tudo escureceu por completo.