Chorei no dia do meu enterro
Chorei muito quando vi meu corpo deitado, sem vida, naquele caixão.
Eu me via através do véu que colocaram sobre meu rosto, numa tonalidade mórbida, de olhos cerrados e as mãos sobre o peito. Num terno azul marinho, em uma simulação de sono sem ruído. Saber que não havia ruídos enquanto eu estava deitado ali, é o que me fazia ter certeza de que eu estava morto. Meu sono jamais foi silencioso. Minha vida não foi breve, mas eu gostava muito dela. Por isso eu chorei. Entenda que não é um choro igual ao de quando eu respirava. Agora eu não preciso mais puxar o ar e nem meu peito dói com a dor da vida, nem meus olhos ficam marejados com as lágrimas quentes que queimam o rosto. Mortos não tem lágrimas. Eu tenho apenas o sofrimento, e a dor, e o sentimento, e o choro, de uma forma quase metafórica. Mas não há metáfora no que sinto. Tenho pleno sentimento de que fui antes da hora! Mas não pense que eu choro por mim morto apenas porque eu me apegava à vida como um vivo deve fazer, eu choro por mim porque escuto os choros dos que me acompanharam em vida, ouço seus prantos e sinto seus mais sinceros sentimentos. Fui uma pessoa querida, fui fiel aos meus ideais e às pessoas que estiveram comigo. Fui leal e, de certa forma, fui a tênue conexão entre grupos distintos, que agora nunca mais se falarão ou se lembrarão uns dos outros. Fui minha história e sofro com isso.
Mas como em vida, meus sentimentos e pensamentos passeiam entre estados diferentes de um momento para outro. Vejo pessoas ao lado de minha esquife que eu não gostaria que estivessem ali. Minha tristeza por estar morto, de me ver morto, é substituída rapidamente por uma raiva por ter que servir de espetáculo aos que não merecem!
A raiva logo se abranda, pois ignoro aquelas sombras e foco novamente em mim. Lembro de quase tudo o que fiz em vida. Lembro das coisas boas, das coisas ruins e dos momentos que fizeram tudo valer a pena. Lembro dos arrependimentos e das vezes que eu gostaria de mudar de história, mas não o fazia por medo, preguiça e, principalmente, porque eu reavaliava cada passo e o preço que uma mudança no passado, impactaria muitas alegrias de várias pessoas, inclusive as minhas. Então eu tentava apenas mudar o meu futuro, tentava ser melhor. Esse sentimento me trouxe um certo alívio, enquanto eu estava ali, ao lado do meu corpo, observando com atenção a face inchada e o meu nariz. Nunca tive a oportunidade real de me observar de fora. Eu era bem diferente da imagem que minha mente formava sobre mim. Vemos sempre o reflexo do espelho, mas jamais a imagem como um todo. O resto nós preenchemos com expectativas, medos, pedaços de imaginação e achismos sobre como as pessoas nos percebem.
Minha relação com Deus sempre foi muito repleta de discussões homéricas, do meu ponto de vista, claro. Tenho certeza de que qualquer filósofo menor ou sem muito talento teria soluções para tratar com o divino bem melhores do que as minhas, mas elas, essas discussões, eram únicas e exclusivamente minhas, não pertenciam a ninguém e só faziam sentido para mim. Agora eu ouvia as rezas, que me são tão conhecidas, e elas preenchem todo os espaço. Sei quem não rezará por mim, não que essas pessoas sejam ruins, não, apenas não rezarão, pois tem suas próprias relações complicadas com Deus. Cada um dos que rezam, transbordam energias diferentes. Choro ainda mais.
O representante do cemitério chega. É hora de levar o meu caixão para o túmulo. Passo os dedos fantasmagóricos em meu rosto de carne. Nem sei se tenho dedos mesmo ou se tudo não passa de uma farsa de minha mente. Não tenho mais um corpo e a mente não limita minha consciência, sou emoção, alegria e tristeza, mas de alguma forma que ainda não sei explicar, eu penso e tenho consciência de mim mesmo e das coisas ao meu redor.
Acompanho o cortejo ruidoso de choro até o local onde serei sepultado. Esse movimento falso alivia um pouco minha dor.
O carro para, as pessoas se reúnem ao redor do caixão mais uma vez, pela última vez.
Escuto mais palavras religiosas, não consigo tirar minha atenção de mim mesmo ali, será a última vez que me verei. Isso machuca. Escuto um pequeno grupo lembrar de coisas que fiz e fatos passados. Sorrio apesar do sofrimento. Finalmente o momento mais doloroso. A tampa é colocada sobre o caixão e nunca mais ninguém verá meu rosto. Se eu tivesse lágrimas, elas já teriam secado, pois nunca chorei tanto em minha própria vida, à exceção de um único dia, que jamais abandonou as marcas de minha alma. Sou enterrado. A terra cobre a caixa onde estou. Placas de concreto cobrem o resto. Acabou.
As pessoas começam a se despedir e partir.
Algumas delas jamais se verão novamente. Em pouco tempo eu mesmo serei apenas uma lembrança fugidia na mente da maioria delas. E em algumas será como se eu nunca tivesse existido. Para outras ficarei por mais tempo, sempre ali, num canto, como uma lembrança boa e distante. É assim a vida. É assim a morte.
Ouço então um pequeno grupo cantar uma música que eu era apaixonado enquanto vivo. Isso faz com que eu chore pela última vez, pois sempre amei música, ainda mais essa.
Vejo todos partirem. Olho ao redor, olho mais uma vez para minha sepultura. É hora de eu ir embora também.